terça-feira, 13 de outubro de 2015

Crítica: A Travessia

Zemeckis humaniza torres gêmeas e esvazia o artista de sentido.

Por Pedro Strazza.

Logo no início do primeiro terço de A Travessia, o equilibrista, protagonista e narrador Philippe Petit (Joseph Gordon-Levitt) conta ao espectador como conheceu num dentista as torres gêmeas que compunham o World Trade Center e, em seguida, explica o porquê de ter decidido "pendurar sua corda" no alto dos até então dois maiores edifícios do mundo. A razão é simples e chega a ser um pouco frustrante, ainda que compreensível: Petit resolve atravessar o vazio entre os dois imensos arranha-céus e mover esforços descomunais de um grande grupo de pessoas apenas por querer realizar o maior ato de equilibrismo da História, provando-se ser um dos maiores artistas da humanidade.

Mesmo que mais pra frente ela ganhe maior aprofundamento (mas não muito), esta justificativa inicial do artista ajuda a explicar alguns dos erros e acertos da versão do diretor Robert Zemeckis sobre os fatos ocorridos na manhã do dia sete de agosto de 1974. Enquanto relato de acontecimentos, o filme peca por não conseguir dar a Philippe e aos outros atores participantes do evento alguma humanidade, porém funciona muito bem na hora de abordar esse estranho fascínio que o ser humano tem com as grandes construções.

É uma relação que Zemeckis escancara desde o começo pelo lugar onde o protagonista conversa o público e entra em detalhes sobre sua aventura. Na imensa tocha da Estátua da Liberdade, onde o equilibrista narra a história, o cineasta mira as torres como verdadeiros mirantes, que tal qual a imensa escultura servem de imagem de idolatria a quem quer que as veja ao vivo. O trágico destino do WTC, em nenhum momento mencionado de fato pela produção, é naquele momento um agouro distante, mas parece assombrar o espectador a cada expressão de contemplação dado pelos personagens ou plano que destaque os arranha-céus.

Esta admiração constante, entretanto, tem que ter uma origem, e é justamente esta questão que a obra busca responder pela ação liderada por Petit. Na época, os dois edifícios ainda estavam sendo construídos, e o longa usa disso para retratá-los no visual como construções maciças e amedrontadoras, parte de um capitalismo industrial e feroz. Assim, o que o artista e seus "cúmplices" tentam aqui, na verdade, é dotar tais prédios de uma humanidade, enfrentando o vácuo em um típico duelo de Davi e Golias. "As pessoas passaram a gostar das torres" diz alguém pouco depois do fim da performance, quase que confirmando a existência desse batismo humano.

O problema de A Travessia é que o espectador, até chegar à travessia em si, tem de lidar com a burocracia narrativa. Estruturado em três atos que visam exclusivamente os acontecimentos do último (algo típico dos filmes de assalto), o roteiro escrito por Zemeckis e Christopher Browne não consegue se desviar do WTC para dar atenção a Petit e seus colegas de crime e por consequência os esvazia de qualquer humanidade, tornando-os meras peças de um tabuleiro maior. Esta inversão de valores é um fenômeno curioso, cujos danos só permitem à obra decolar no clímax de seu final. E se isso acontece, é por culpa de seu diretor, que se aproveita do natural encantamento do equilibrismo de Philippe para entregar mais um de seus espetáculos visuais, por meio de sucessivas vertigens acrofóbicas proporcionadas em tal altura.

E é pelo show que Zemeckis parece no fundo ter se interessado mesmo ao decidir por filmar essa história. Por mais que assuma o tom de uma elegia a um monumento do capitalismo estadunidense e desempenhe muito bem este papel, A Travessia encanta ao efetivamente prestar suas homenagens por meio da ação de Petit no alto das torres, em um desses raros momentos de humanização no vazio. Uma pena que fora dos longos edifícios essa noção não se concretize.

Nota: 7/10

0 comentários :

Postar um comentário