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Jogador N° 1

Spielberg faz seu comentário sobre o próprio legado em Hollywood sem esquecer do espetáculo no processo

quarta-feira, 28 de março de 2018

Crítica: Jogador N° 1

Spielberg enfim faz seu comentário sobre o próprio legado em Hollywood sem esquecer do espetáculo no processo.

Por Pedro Strazza.


Lançado em 2011, Jogador N° 1 na época talvez tenha sido para muitos o primeiro ápice (em termos de conteúdo) de uma cultura nerd e nostálgica que hoje habita o mainstream pop como uma de suas principais engrenagens. Além de toda a profusão de referências a obras e produtos do ambiente cultural estadunidense dos anos 80, o livro escrito pelo então estreante Ernest Cline também se apoiava em narrativas e arquétipos muito celebrados pelo público, seja pelos leitores saudosos daquela época ou os mais jovens e habituado a tramas do tipo. A história de Wade Watts e sua busca pelo easter egg do falecido multimilionário James Halliday na plataforma de imersão Oasis, afinal, estão atreladas à clássica estrutura da jornada do herói, replicada tantas vezes nas diversas mídias ao qual a publicação faz reverência e que traz um protagonista vindo do absoluto nada para botá-lo em uma trajetória onde alcançará tudo que busca.

Mas por mais "fácil" que pareça a princípio adaptar uma premissa dessas para a telona, a realidade é bem outra. Ainda que seu universo de referências e apego material a um cenário do passado seja vasto o suficiente para abarcar todo tipo de público, dos leitores mais descompromissados aos fãs de RPG e adventure games mais ardorosos, a fantasia futurista não deixa de ser construída como uma literatura típica de jovens adultos voltada para nerds oitentistas do sexo masculino, uma medida que ajuda a entender parte do desgaste por trás de certas estruturas da história no contexto maior de questionamento de representatividade no mercado e na produção hollywoodiana de hoje. Nas mãos de diretores mais jovens e guiados pela tendência contemporânea de tornar suas produções em grandes homenagens pop e reverencialistas - caso de cineastas como J.J. Abrams e Jordan Vogt-Roberts - este problema criativo provavelmente passaria despercebido e relegaria a adaptação cinematográfica ao mero papel de nervo central tardio (para não dizer atrasado) de todo o zeitgeist nostálgico vivido pela indústria e o público atual.

A versão cinematográfica de Jogador N° 1, porém, não foi conduzida por uma das crias da Hollywood dos blockbusters e dos produtos de grande orçamento, mas acabou nas mãos de Steven Spielberg, um dos (senão o) membros fundadores desta indústria contemporânea e da nostalgia americana pelos anos 80. Mesmo que feita no impulso de mercado mais óbvio ("quem melhor para dirigir uma obra sobre os anos 80 que um de seus mestres?" deve ter imaginado um dos executivos da produção), a escolha pelo diretor de Caçadores da Arca Perdida e E.T. - O Extraterrestre é no mínimo peculiar e ambiciosa por gerar um encontro entre criador e criatura de altíssimas proporções: pela primeira vez em sua carreira, Spielberg tem a oportunidade de encarar de frente o culto criado em torno de sua figura e de outros colegas, um revisionismo que ao mesmo tempo escapa e se encaixa muito bem na tendência atual de seu cinema.

Spielberg já usou da nostalgia como elemento temático em outros de seus filmes aventurescos recentes como As Aventuras de Tintim e O Bom Gigante Amigo, mas se até então o tema era desenrolado sob uma perspectiva pessoal do diretor - uma noção muito alinhada à sua produção mais "séria" e amadurecida do período, que compreende obras como Lincoln, Ponte dos Espiões e The Post - em Jogador N° 1 ele enfim pode observar este sentimento pela perspectiva de outros e enxergar a si mesmo dentro deste panorama. Quem fornece este contexto na história é o próprio mundo do Oasis, que entre as infinitas possibilidades anunciadas oferece a oportunidade de materializar ao usuário um verdadeiro hall de personagens e situações iconográficas de todas as mídias, tornando a "fuga da realidade" característica da cultura de massa quase uma possibilidade física à população.

"Eu nasci depois dos tempos em que as pessoas pararam de tentar resolver os problemas do mundo e passaram a tentar conviver com eles" narra o protagonista Wade/Parzival (Tye Sheridan) logo no início do longa, enquanto faz seu passeio diário entre as pilhas de contêineres (que servem de moradia a toda uma comunidade) para chegar ao seu recinto particular e entrar no mundo virtual. Esta frase, ausente no livro de Cline, serve a Spielberg como uma espécie de estrela guia a sua produção, cujo trabalho maior aqui é o de botar em perspectiva o próprio culto cerimonialista gerado por esta cultura massificada de produtos reprocessados ad eternum. Embora não renegue ao espectador a expectativa de toda a ação rocambolesca e recheada de referências prometidas pelo livro e sua presença, o cineasta também usa do o filme para fazer um comentário próprio à indústria do qual faz parte, feito nas habituais grandes proporções e estruturação do cinema pipoca que criador e criatura habitam com naturalidade já há tempos.

Neste sentido, é divertido observar como o diretor orquestra a ação em torno deste elemento nostálgico e da história principal, que acompanha a grande caçada de Wade, seus amigos e da maléfica empresa IOI para encontrar o easter egg deixado por Halliday (Mark Rylance) no Oasis que determinará o herdeiro de sua criação e imensa fortuna. Se a princípio o longa ensaia entregar toda a protuberância de referências culturais ao qual está atrelado, proliferando cenas que enquadram grandes halls e ambientes externos povoados por multidões de personagens conhecidos e promovendo logo nos primeiros minutos uma verdadeira montanha-russa pop despirocada na disputada corrida pela primeira chave para o ovo, no próximo desafio Spielberg já reduz esta grande inundação a uma referência pessoal na reprodução literal de um filme de Stanley Kubrick no formato de um parque de diversões próprio - e mesmo neste ato de ludificação extrema o diretor não deixa de carregar um comentário a esta cultura nostálgica, explícita no fato de Aech (Lena Waithe) não conhecer o ambiente ao qual adentra no jogo por "não gostar de ver terror".

Estes dois primeiros desafios, completamente reimaginados para a telona e muito distintos dos apresentados no livro, formam com as cenas ambientadas na realidade uma dicotomia estrutural bastante funcional ao longa, que sabe se alternar entre o meio virtual e real para dar gravidade a toda a caçada. Se o livro de Cline se bastava em repetir estruturas de impersonificação do RPG em roupagem nostálgica e sobrevivia na imersão total no Oasis (com breves e violentos acenos ao mundo fora do game), Spielberg e o roteirista Zak Penn (que escreveu o filme junto do autor) são espertos de manter a realidade presente e jogar com noções mais tradicionais de roteiro, reforçando a vilania da IOI e de seu CEO Nolan Sorrento (Ben Mendelsohn) no contraste com uma revolução mais terrena e representada por Samantha/Art3mis (Olivia Cooke) - ainda que esta organização, bem como a personagem, seja no fim vítima de uma contextualização precária que não a desloque da função de mero (e puído) mecanismo da trama.

Mas dentre os vários malabarismos adaptativos feitos pelo filme (que neste departamento arrisca ser o mais complexo da carreira de seu diretor desde Tubarão), o maior e mais interessante talvez seja o deslocamento da relação com o qual este encara a figura de Halliday. Vivido por Rylance com toda a doçura que lhe é possível (talvez afim de compensar em simpatia a personalidade frágil do personagem), o excêntrico milionário no longa é menos encarado por seu relacionamento sequer iniciado com Kira (uma figura aqui relegada ao pano de fundo dos diálogos) que por sua relação com Ogden Morrow (Simon Pegg), arruinada pela reclusão cada vez maior do criador do Oasis e sua recusa em enfrentar a realidade. Erigindo a conexão entre os dois personagens como seu "Rosebud" espiritual, a produção refaz o trajeto habitual de Spielberg de reafirmar a amizade como valor social máximo, uma noção presente no companheirismo das interações do grupo de Wade e que encontra um contraste na frieza corporativa da IOI - e mesmo dentro da empresa maligna este sentimento de camaradagem se faz anunciar, a exemplo dos momentos finais do último desafio da caça.

Este reenquadramento do criador do Oasis, porém, é feito também porque no fundo ela facilita uma aproximação do próprio diretor com o personagem, um processo de identificação até esperado por parte do cineasta. Longe da pose de artista atormentado ao qual o livro procura pintar os ídolos por trás das obras ao qual faz referência e reverência, Spielberg não demora a encontrar em Halliday uma espécie de representação final de sua pessoa dentro da história, vendo no milionário que ergueu um império à partir das paixões da infância o mesmo jovem que nos anos 80 refundou junto de seus amigos uma indústria inteira por meio de blockbusters altamente lucrativos. E enquanto Halliday falece no início da história e não tem a oportunidade de enxergar o legado, Spielberg prossegue, revisitando em espírito a própria trajetória por meios simbólicos e outros nem tanto, a exemplo da "despedida" do fundador da caça no longa.

Esta conexão permite ora ou outra que o diretor faça alguns comentários alarmistas sem necessidade (a moral "saia do jogo e aproveite a realidade" lembra em alguns momentos o "desliga a TV e vá ler um livro"), mas é por meio dela que Spielberg enfim consegue colocar a própria carreira em perspectiva dentro da metodologia ágil e sempre em movimento de seu cinema. Se Jogador N° 1 nunca deixa de ser uma homenagem à geração oitentista do cinema estadunidense sob a lógica retroalimentada de personagens e estruturas desenvolvidos por esta, ele em simultâneo serve a seu diretor como forma de questionar e investigar o monumento feito à sua própria pessoa, um jogo de constatações que só ajuda a ressignificar de novo os seus principais valores e refundar o legado que está terminando de construir.

Nota: 7/10

quinta-feira, 22 de março de 2018

Crítica: A Melhor Escolha

Richard Linklater canaliza Hal Ashby em filme sobre a crise patriótica americana do pós-11 de setembro.

Por Pedro Strazza.

Como grande parte da produção recente de Richard Linklater (como Boyhood ou Jovens, Loucos e Mais Rebeldes), a premissa de A Melhor Escolha parte de um retorno ao passado que pode ser facilmente confundido com o gesto nostálgico ou de reverencialismo. Além de estar situado em um Estados Unidos do início dos anos 2000 e tratar de militares aposentados, o filme também é baseado em um livro que serve de continuação a A Última Missão, filme de Hal Ashby que rendeu uma Palma de Melhor Ator a Jack Nicholson em 1973 - e como Ashby é uma das influências do cinema de Linklater, é de se esperar um grau de homenagem implícito à obra.

Esta crença inicial de que o novo trabalho do cineasta será feito apenas por mero capricho, porém, aos poucos se dissipa na história, que acompanha os mesmos três soldados do filme original - ainda que com os nomes mudados - em uma nova jornada de carga emocional ainda maior. Se antes a missão do título se referia à tarefa dos soldados Buddusky (Nicholson) e Mulhall (Otis Young) em escoltar o cadete Meadows (Randy Quaid) à prisão, agora é Meadows - apelidado aqui de Doc (Steve Carell) - quem vai procurar os agora amigos Sal (Bryan Cranston, que assume o papel de Nicholson sob a mesma performance expansiva) e Mueller (Laurence Fishburne) para ajudá-lo a enterrar o filho, morto pelo inimigo enquanto servia na Guerra do Iraque.

Tanto A Melhor Escolha quanto A Última Missão são concebidos na mesma jornada de travessia e compartilham a temática maior do patriotismo americano, mas as dinâmicas por trás de seus três personagens não poderiam ser mais diferentes. Lançado próximo ao fim do conflito no Vietnã e com a ressaca moral da derrota militarista estadunidense já anunciada, o longa de Ashby usava muito da crise de identidade nacional e belicista para impulsionar sua desconstrução sobre o personagem de Meadows, que condenado à prisão por um crime bobo no fim mostrava estar aceitando o longo tempo na cadeia apenas por não saber o que era viver de verdade. A produção no fundo era outra das comédias do cineasta dotadas de forte peso dramático e pautadas em um protagonista fechado no próprio mundo, só que impulsionada pela conexão direta ao cenário no qual se situava.

Já esta sequência não-oficial está muito mais ligada às questões de revisionismo de contextos muito específicos ao qual seu diretor anda atrelado nos últimos anos (como os jocks de Jovens, Loucos e Mais Rebeldes), embora reaproveite muito deste equilíbrio entre comédia e drama para sua narrativa pelo viés da sátira - os superiores da hierarquia militar que surgem na tela, por exemplo, estão sempre gritando e sendo inflexíveis apenas porque podem. O longa volta a utilizar a figura de Meadows/Doc como protagonista maior da história (o que não deixa de ser natural, dado a premissa), mas sua atenção recai um pouco mais na dicotomia entre Sal e Mueller, cujos destinos na aposentadoria da vida militar geram dois opostos: enquanto o personagem de Cranston carrega o desencanto nacionalista americano na forma do proprietário de bar que tira sarro de tudo à sua volta, o Mueller de Fishburne traz a continuidade literal de uma crença convicta no sistema sob os trajes de padre que escolheu como profissão. Entre os dois há o Doc de Carell, cuja atuação conduzida na interiorização repercute de maneira silenciosa o dilema de fé instaurado pelo roteiro escrito por Linklater e o autor do livro, Darryl Ponicsan.

Mas por que um dilema de fé? Como em outros trabalhos do diretor, a resposta está intrínseca ao cenário, desta vez no espectro da invasão ao Iraque que paira como um fantasma invisível enquanto os três protagonistas fazem sua jornada para enterrar o filho de Doc no cemitério de sua cidade natal. Há uma crise de valores do patriotismo americano em A Melhor Escolha que nunca chega a ser escancarada como tema maior, uma abordagem que é preterida em prol de um olhar histórico distanciado ao qual a produção tem direito a pertencer - entre o fim do conflito no Iraque e a realização do longa são pelo menos seis anos de distância, afinal. Junto de Ponicsan, Linklater não se interessa muito de tratar ou purgar feridas deixada pelo 11 de setembro pelo filme, mas sim de usá-lo como veículo para enxergar pelos olhos da comunidade militar os sentimentos contraditórios criados pela tragédia e a decisão pela guerra novamente.

Neste viés, a grande tacada de gênio do diretor é a de colocar a história sob uma perspectiva geracional, inserindo à partir da metade um antigo amigo do morto (J. Quinton Johnson) para escoltar o caixão levado pelos três amigos. Longe de deslegitimar o drama da história e junto do tom de "comédia de idosos" e de camaradagem masculina ao qual o filme é intrinsecamente ligado, esta decisão ajuda a sobressair o caráter cíclico e ritualístico da história que é contada e frisar o valor familiar em torno de todas estas questões. É como se Linklater apontasse que a inexistência de uma resolução definitiva a este processo de dor e questionamento não por conta das falhas inerentes ao patriotismo como conceito (uma resolução que talvez fosse muito mais atraente a Ashby no contexto do Vietnã), mas porque estes altos e baixos do nacionalismo do país estão fadados a se repetirem continuamente como verdadeiros ciclos históricos - e nada explicita tanto esta afirmação do diretor quanto o momento em que os três veteranos visitam a casa da mãe do colega há muito tempo morto para contar a verdade sobre o passado distante e descobrem como a realidade já se dissolveu de novo no orgulho patriótico.

Nota: 8/10

quinta-feira, 1 de março de 2018

Projeto Flórida, Cartas Para um Ladrão de Livros e a relação entre os marginalizados e os holofotes

Às suas respectivas maneiras, documentário brasileiro e filme indicado ao Oscar proporcionam um registro similar do mainstream pelo olhar dos que estão de fora.

Por Pedro Strazza.

É no mínimo um contraste curioso, mas entre os filmes dispostos a chegar nas salas de cinema brasileiras e se aventurar neste fim de semana decisivo para o Oscar há pelo menos duas produções ligadas em caráter indireto aos caminhos que percorrem tamanho mundo permeado de celebridades e artistas. Estes dois lançamentos, embora situados em esferas muito diferentes, são situados em cenários à margem do sistema e habitados por personagens que, reduzidos à sobrevivência à parte do sistema, estão em contato constante com os restos dos restos deste luxo e pompa proporcionados pelos grandes estúdios americanos e produtores culturais. E o mais interessante desta conexão é que os dois cenários aqui retratados são totalmente distintos entre si.

Pois ainda que tratem da margem, as fronteiras físicas que separam Projeto Flórida e Cartas Para um Ladrão de Livros são muito claras. O primeiro, novo trabalho do diretor e roteirista Sean Baker e lembrado pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas na categoria de Melhor Ator Coadjuvante, acompanha a vida de algumas crianças que moram nos hotéis baratos dos arredores da cidade de Orlando, na Flórida, à margem da terra de sonhos e fantasias dos celebrados parques da Disney. O cineasta, que vinha explorando os recursos da câmera de celular em seus últimos trabalhos (entre eles o bastante elogiado e belo Tangerine), desta vez retorna na grande maioria do tempo a uma fotografia "tradicional", registrando as atividades dos menores enquanto eles fazem de todo um cenário difícil o seu playground.

De espiar a velha madame fazendo seu topless diário a irritar o gerente do complexo (Willem Dafoe), esses jovens liderados pela boca-suja Moonee (Brooklynn Prince) parecem viver não só nos cantos de um dos grandes centros do entretenimento mas também das próprias histórias. Suas brincadeiras, afinal, estão sempre entrando e saindo das narrativas protagonizadas pelos seus pais, que buscam de diferentes formas manter o "aluguel" de suas "casas" garantido para o mês. Neste sentido, a protagonista verdadeira da trama é Halley (Bria Vinaite), jovem mãe de Moonee que tenta fazer o mínimo possível para manter o lar e a filha, priorizando a diversão e o descanso a todo instante em detrimento das obrigações.

Cena de Cartas Para um Ladrão de Livros
Embora em uma estrutura um pouco mais convencional, esta narrativa do "olhar de fora" sobre a indústria também está presente em Cartas Para um Ladrão de Livros. O documentário dirigido pela dupla brasileira Caio Cavechini e Carlos Juliano Barros se propõe à contar a história de Laéssio Rodrigues de Oliveira, famoso ladrão de livros que foi parar na prisão quatro vezes nos últimos cinco anos depois de ter sido flagrado roubando páginas de publicações únicas e raríssimas de grandes bibliotecas nacionais.

Desenvolvido ao longo de todo este tempo, o longa é um trabalho de humanização da figura do protagonista e de alerta sobre o estado precário da conservação da História nacional, despindo Laéssio de sua imagem como meliante e situando no cenário maior do mercado negro de arte que encontra-se inserido nas elites do país. Tanto que, à partir de certo momento, o filme passa a focar seus interesses nas hipocrisias sistemáticas de diferentes entidades públicas e em como os grandes culpados nunca serão capturados - uma afirmação que inclusive é dita por um dos investigadores responsáveis pela prisão do jovem em certa altura da história.

Esta trama maior de Cartas Para um Ladrão de Livros o aproxima do também recente Todo o Dinheiro do Mundo (deve dar uma boa dobradinha ver o documentário seguido do filme de Ridley Scott sobre o antigo magnata do petróleo e colecionador compulsivo Jean Paul Getty), mas é no ato de repassar as origens de Laéssio que o documentário acaba encontrando um de seus traços mais interessantes. Nas entrevistas com o protagonista, conduzidas em diversas circunstâncias, o ladrão revela que entrou na vida de roubos por conta de sua obsessão por Carmem Miranda e seu desejo de possuir todas as imagens da cantora portuguesa. Segundo o próprio Laéssio, foi procurando nos mercados de pulgas e feiras de usados que ele em determinada altura se tornou um dos maiores detentores de registros fotográficos da atriz do países, tendo de fotos conhecidas até retratos raríssimos da celebridade.

O fascínio de Laéssio pela figura de Miranda, que é forte o suficiente para guiá-lo ao crime e é atribuído pelo documentário a um viés de ascensão social a qualquer custo (ele afirma depois que "não ter dinheiro é uma forma de prisão"), no fundo toca nesta mesma questão do poder da imagem provinda do entretenimento que tanto seduz a comunidade de Projeto Flórida. Fora as eventuais - e óbvias - diferenças regionais, as duas produções vê estes marginalizados como reféns de um sistema que tem na cultura o seu principal motor, seja nas artes das obras roubadas por Laéssio ou no entretenimento do mundo aparentemente doce e cor-de-rosa de Moonee e seus amigos. A imagem disfarça lugares quebrados e serve como escape maior a todas as condições insustentáveis de seus personagens.

Nesta lógica, a tragédia há de soerguer-se como único encerramento possível para estes arcos mesmos estes sendo tão distintos um do outro, uma medida ao qual os dois filmes honram arranjando saídas muito diferentes. No documentário, o constante retorno de Laéssio à prisão é tratada por Cavechini e Barros como a de um Prometeu brasileiro, sugerindo que o protagonista está para sempre condenado à posição de bode expiatório de uma teia de ilusões do qual ele não teceu e não faz parte. O ladrão é uma engrenagem menor confundida com o próprio motor, alguém que ousou desejar objetos e uma vida material que nunca lhe será disponibilizada.

Já o filme de Baker procura na própria fantasia o refúgio final de uma realidade de pura destruição, usando da amizade como meio para este caminho. O diretor volta a utilizar a fotografia pelo celular nos instantes finais para "salvar" Moonee da dura realidade que enfrenta, levando-a ao centro daquele mundo quando a garota está prestes a ser retirada dele e perder todas as bases de sua existência até ali. A resolução de Projeto Flórida, porém, está longe de suavizar os problemas apresentados; ela é na verdade a denúncia maior de toda a fragilidade de relações que ali se instaura, uma parecida ao do Cartas Para um Ladrão de Livros.