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sábado, 31 de outubro de 2015

Crítica: Rastro de Maldade

Faroeste de horror desconstrói ideais do Velho-Oeste pela violência e comédia.

Por Pedro Strazza.

Em primeira análise, chega a ser curioso que Rastro de Maldade estreie no 2015 do ápice do feminismo e da problematização da real igualdade de gêneros. O filme, que no primeiro ato já admite de maneira indireta a vontade de fazer um faroeste "à moda antiga", refaz a provação de virilidade típica dos clássicos, incluindo clichês como o da donzela em perigo e dos indígenas vilanescos, na trajetória traçada por seus cavaleiros em sua jornada de resgate que em teoria legitimaria sua masculinidade e superioridade perante a natureza.

Mas tais quais os eventos mostrados mais para frente na história, aqui nem tudo é exatamente o que parece.

Escrito e dirigido pelo estreante em longas S. Craig Zahler, a trama acompanha quatro homens de uma cidade localizada na fronteira dos Estados Unidos que saem para salvar a mulher do aleijado fazendeiro Arthur O'Dwyer (Patrick Wilson) de um grupo de índios "trogloditas". Entre eles, além do marido, temos o xerife Franklin Hunt (Kurt Russell), o pistoleiro engomadinho John Brooder (Matthew Fox) e o delegado suplente Chicory (Richard Jenkins), todos silenciosamente buscando tirar da missão uma prova subentendida de sua eficácia no mundo violento ao seu redor - e já muito bem estabelecido na violenta e crua sequência de abertura da obra.

Esta demonstração empreendida pelos quatro homens é desenvolvida por Zahler de forma discreta nas mais de duas horas de duração do filme, em atos pequenos mas bastante evidentes. Da verdadeira via crucis empreendida pelo fazendeiro - claro protagonista central nessa provação, vale acrescentar - em andar quilômetros a pé mesmo sem condições ao aparente desprezo do pistoleiro com relação à mulher ("os homens que se casam são mais fracos"), existe em Rastro de Maldade um viés ultrapassado dos protagonistas em testar o ideal de macho alfa que há dentro deles, cada um com uma motivação diferente e de acordo com seu estereótipo.

Mas o que torna o filme de fato interessante ocorre a partir do momento em que o grupo se aproxima de seu destino, pois apesar de certa maneira realizar essa virilidade de seus personagens ele também não esconde o ridículo da situação. Entra aí o lado de horror da história, que pelas mãos dos velozes índios canibais (representados aqui como verdadeiras forças maléficas da natureza, com seus gritos guturais e animalescos) começa a dar cabo dos ideais de superioridade de cada um, em cenas de puro gore e humilhação. Nesse momento, Zahler também não esconde seu escárnio com os próprios personagens, como comprova o "Vocês são idiotas?!" proferido pela esposa de O'Dwyer, ao saber que o marido aleijado está vindo ao seu resgate, e a progressiva revelação da falta de adequação do envelhecido delegado suplente para a tarefa, interpretado muito bem por Jenkins com discretos e bem pontuados toques de humor.

Embora se demore nessa virada de roteiro e até chegar nele soe como um eficiente porém obsoleto exemplar de gênero, Rastro de Maldade funciona por contestar essa masculinização subentendida do faroeste por meio de uma combinação com o terror de sobrevivência. O fim simbólico de tais convicções, presente no encerramento do filme, vem tanto de maneira honrada quanto última tirada do diretor com a imbecilidade do que retrata, já que a morte honrada não é a mais confortável de todas por somente "vingar os mortos", como um desesperado xerife diz em determinada altura da viagem.

Nota: 8/10

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Crítica: Mistress America

Noah Baumbach realiza a obra mais debochada de si mesmo.

Por Pedro Strazza.

Tornou-se um hábito meio enfadonho dos filmes de Noah Baumbach que sua temática principal seja sobre jovens adultos que resistem a todo custo ao amadurecimento. Essa refusa em aceitar a vida adulta, acompanhado de um tom de inevitabilidade em obras como Frances Ha e (principalmente) Enquanto Somos Jovens, ocorre sempre em personagens pertencentes à geração Y, cuja adolescência já passou e sofre agora com os efeitos da tão temida crise dos 30 anos. Em Mistress America, porém, Baumbach e sua parceira, roteirista e atriz Greta Gerwig deixam de realizar a refusa em crescer para abraçá-la e começar a batalhar por ela.
É uma mudança simples e pouco perceptível, mas que faz toda a diferença no longa. Em um primeiro momento, ele permite que a história sobre irmãs torne seus personagens mais humanos e não se entregue a pessimismos artificiais; mas mais pra frente, ele abre espaço para o diretor fazer o exercício da autocrítica, em lances de sarcasmo com seus trabalhos anteriores. E se existe algo que funciona em qualquer situação no cinema, este é o rir de si mesmo.
Na trama, acompanhamos Tracy (Lola Kirke), uma caloura universitária que certo dia fica sabendo que "ganhará" uma irmã graças à sua mãe (Kathryn Erbe), prestes a se casar pela segunda vez. Querendo saber mais sobre sua nova mana, ela marca um encontro com a moça que revela ser Brooke (Gerwig), uma jovem adulta em busca de estabilidade na vida e que tenta no momento abrir um restaurante em Nova York. Rapidamente amigas, Tracy começa então a acompanhar e escrever sobre os esforços da irmã em realizar seu sonho, com todo o tipo de julgamento comum nessa idade da vida.
De certa forma, Mistress America ainda é um típico filme de Baumbach, mas com elementos pequenos que alteram todo o seu modus operandi. Os jovens hipsters responsáveis pelo núcleo central da história, por exemplo, ainda encontram no coming of age o principal dilema de suas vidas, mas já o encaram com maior otimismo. Os diálogos dos personagens vividos por Matthew Shear e Jasmine Cephas Jones com o grupo de mulheres grávidas de Mamie-Claire (Heather Lind), exercidos em segundo plano na narrativa, são a prova definitiva disso: por mais que continuem infantilizados e resistentes às tarefas da fase adulta ("Essas grávidas são inteligentes" exclama Shear, quase como se sentisse em outro mundo), o casal não exibe na relação com a gravidez a repulsa que a protagonista de Frances Ha tinha com o trabalho, e até dão leves indícios de assumirem esse papel.
O mais curioso do roteiro de Baumbach e Gerwig, entretanto, é eles tirarem dessa positividade uma verdadeira piada com sua visão anterior sobre o tema. A protagonista Tracy, que escreve sobre a irmã com toda a idolatria possível (o título de seu conto, o mesmo do filme, é uma alusão direta à sua reverência) e representa o pessimismo juvenil com o crescer, vira motivo de chacota dos amigos e da própria Brooke ao ter seu trabalho lido, justamente por neste ato de adoração ela fazer mais críticas que elogios. E é aí que a dupla brinca com seus próprios clichês em clima de socos diretos, sem contudo chegar a um verdadeiro ápice para toda a estrutura satírica.
Mistress America vem sido recebido pelos fãs do diretor com menos entusiasmo que Frances Ha e com surpresa pelas pessoas antipáticas a seu trabalho em geral. É um reflexo direto dessa propensão auto satírica da obra e de seu realizador, que mostra sinais de abandono em relação ao fatalismo da inevitabilidade do amadurecimento. Resta saber se este filme será considerado daqui a uns anos como de transição para a carreira de Baumbach ou apenas de reafirmação, uma pontualidade irônica a toda a sua trajetória até o momento.

Nota: 8/10

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Crítica: Califórnia

Filme de coming of age sofre na indecisão da proposta.

Por Pedro Strazza.

Já se percebe o tom autoral de Califórnia logo nos primeiros segundos de tela da protagonista Estela. Interpretada por Clara Gallo, a moça é visualmente uma versão adolescente perfeita da diretora Marina Person, e a maneira como o quarto e os pertences da personagem são filmados pela cineasta, com todo o ar solene e de preciosidade, acaba com a dúvida em rápidos segundos.
Isso talvez não chegue a ser uma grande surpresa. Estreia de Person em longas de ficção, ela parece usar aqui dos filmes sobre adolescência e coming of age para realizar uma volta ao passado e sua própria juventude, vivida no meio dos anos 80 e da transição da ditadura militar para a democracia. O que ela busca com esse retorno é na verdade a grande pergunta da obra, que acompanha o lento despertar sexual de seu alter-ego em simultâneo com o retorno do tio da personagem (vivido por Caio Blat) da Califórnia.
O estado californiano assume na obra um quê de paraíso, um lugar onde o ápice da juventude parece ser eterno e gratificante. Não à toa, o tio de Estela é tratado pela garota com toda a reverência possível no primeiro ato por ter ido e vivido no local, mas mesmo conforme os porquês de sua volta ao Brasil serem explicados e sua condição decair aos poucos a região não perde no longa o seu quê de paraíso adolescente. Na realidade, ele se aproxima mais e mais, adquirindo quase um tom ameaçador em sua inevitabilidade.
Sim, a Califórnia é a grande metáfora de Person para o crescimento, e a paleta de cores cada vez mais colorida na narrativa atesta isso. A questão a ser problematizada aqui, porém, é se esse desenvolvimento consegue atingir o público sendo um arco particular e autobiográfico de sua própria autora.
Esse problema permeia a trama inteira do filme. Ao mesmo tempo em que o roteiro escrito por Person, Francisco Guarnieri e Mariana Veríssimo estende a mão ao jovem (seu público-alvo, óbvio) se identificar com a história e os personagens, a diretora interioriza a protagonista atrás de uma metáfora para sua evolução como cineasta, com poucas brechas para o espectador se conectar. É um conflito de visão básico, mas que cujo atrai-repulsa acaba sendo determinante para sua eventual fragmentação e aos poucos começa a afetar esses tipos de produção, indecisos entre permanecer no lado universal ou seguir pelo caminho da jornada autoral.
No fundo, Califórnia acaba por funcionar mais como um retrato indireto da geração de jovens desse começo de século que qualquer outra coisa. Embora passado em 1984 e longe de avanços tecnológicos como o celular e o computador, o longa traz saudosismos e modismos que ainda permanecem nos jovens dos dias de hoje, que ainda veem David Bowie como ídolo e dizem ter curtido os irmãos Coen "antes deles serem cool".

Nota: 5/10

terça-feira, 27 de outubro de 2015

Crítica: A Terra e a Sombra

Questão da terra na Colômbia é tratado pelo lado humano em meio ao caos.

Por Pedro Strazza.

O cenário é um canavial cortado por uma rodovia. Nesta, um homem caminha a passos tranquilos, com seu chapéu de palha e vestindo uma camisa branca, carregando uma mala que muito provavelmente tem todos os seus pertences. Quando se encontra na metade do trajeto captado pelo plano, um caminhão vem a toda velocidade e o ultrapassa, gerando uma nuvem de poeira que toma toda a passagem e o força a sair da estrada para se proteger.

Essa cena, que abre os trabalhos de A Terra e a Sombra, resume bem o espírito do longa de estreia do diretor e roteirista colombiano César Augusto Azevedo. Simples e bastante direto, o filme conta a história do retorno desse homem à sua família após um longo período fora, a fim de cuidar do filho doente e tentar corrigir os erros cometidos no passado. Com a ex-mulher e a nora trabalhando nos canaviais para suprir economicamente a casa, resta a ele cumprir o papel de avô com o neto e entrar em contato com os dramas vividos no lar, seja pela condição terminal do filho ou da progressiva destruição do terreno em volta da propriedade, tomado pela plantação de cana que queima todo dia.

Encenado por atores em sua maioria amadores (a atriz Marleyda Soto, intérprete da esposa do filho, é a única experiente do elenco), o filme é claro desde o início na aproximação que faz com o setor primário da economia de seu país. Na revolta dos canavieiros, nas queimadas ou mesmo na maneira como a plantação de cana toma a casa ("bastante coisa mudou com o canavial" lamenta o avô em determinada altura), é latente que Augusto Azevedo condena a tomada industrial na agricultura colombiana e na forma como ela progressivamente acaba com a terra, agora cinzenta e improdutiva. A doença do filho, tais quais tantos outros exemplos possíveis de serem dados, adquire com velocidade na trama a identificação dos efeitos do capitalismo selvagem sobre o indivíduo, que não se importa mesmo em dar assistência a quem trabalha para sua manutenção.

O que faz A Terra e a Sombra brilhar, porém, não é o retrato do processo histórico e a crítica autoral a este, mas sim como ele se aproveita deste grande esquema das coisas para situar uma história de família fragmentada com toques geracionais, similar ao que foi feito no peruano Casadentro. Dotados ainda de significado para a estrutura maior (o avô é o passado da propriedade familiar, o filho a vítima do agronegócio selvagem, o filho o futuro, etc..), o relacionamento entre as três gerações surge como um respiro para todo o caos que acontece à sua volta, um último contato entre três partes num lugar fadado ao desaparecimento. Não é à toa, inclusive, que o diretor de fotografia Mateo Guzmán filme o ambiente desses encontros com cores menos opressivas e um pouco mais vibrantes, seja pela presença do avô ou mesmo da ingenuidade proporcionada pela felicidade da criança.

É essa trama que tira o longa da teoria pura e realça nela o lado humano da questão agrícola, fundamental para o espectador de fato mergulhar no conteúdo proposto. Os personagens de A Terra e a Sombra são capazes de deixar seus papéis predispostos na narrativa para entregar os problemas desse "avanço da máquina" por seu sofrimento, que seja físico (a doença do filho que só piora ao longo da história), emocional (a melancolia do avô em revisitar a sua terra pela última vez, pontuada por um sonho com um cavalo) ou até relacional (o administrador do canavial que resiste a ajudar um ex-empregado) é muito mais eficaz comparado ao anseio do conteúdo pretendido por seu criador.

Dessa forma, não chega a ser surpresa que a dificuldade vivida pela avó de abandonar sua propriedade seja tão bem passada na narrativa. Apesar de assumir o protagonismo somente à partir do terceiro ato da obra, este drama, como os outros, é desenvolvido de maneira orgânica por Augusto Azevedo, que reconhece e usa a humanidade de seus personagens para tratar de uma questão complexa. Inverte-se aqui o conceito do "tomar a parte pelo todo" pelo simples fato de ser muito mais eficaz na hora de se passar a mensagem.

Nota: 9/10

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Crítica: De Longe Te Observo

Cinema de presunções, estreia de Lorenzo Vigas em longa-metragens sofre de indecisão.

Por Pedro Strazza.

A visível constante do uso da falta de foco na construção narrativa de De Longe Te Observo serve para explicitar dois pontos importantes do filme. Por um lado, esta metodologia adotada pelo diretor Lorenzo Vigas funciona muito bem para deixar claro o egoísmo aparente de seus dois protagonistas, que focalizam na cena somente aquilo que os interessa. Por outro, ela também ilustra indiretamente a dificuldade de concentração da própria obra, incapaz de se decidir sobre que temática seguir em sua história.

Vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza, o longa acompanha a vida do cinquentão Armando (Alfredo Castro) e do adolescente Elder (Luis Silva), duas figuras desde o início postas como desprezíveis - o primeiro se masturba pagando jovens para mostrar seus corpos, enquanto o segundo é exageradamente violento em qualquer tipo de situação - que, depois de um primeiro encontro explosivo, começam a se ver com maior frequência e a ajudar um ao outro, em uma daquelas típicas amizades que parecem improváveis de acontecer. A relação, porém, aos poucos evolui para outra coisa, e tanto o dentista quanto o garoto se afligem entre lutar contra ou abraçar isto.

A princípio, o longa surge como uma típica obra estruturada a discutir os efeitos do excesso de violência da sociedade contemporânea no indivíduo, evidenciando que seus dois personagens principais encontram-se acostumados a lidar com a agressividade do dia-a-dia pela incorporação. Mas o roteiro de Vigas (este por sua vez baseado numa história desenvolvida por ele e Guillermo Arriaga) começa a se perder ao tentar encaixar na trama os mais variados temas, buscando talvez uma maior riqueza a ela. Assim, assuntos como relacionamentos homoafetivos, drama de relações paternas e até abismo entre classes sociais se acumulam na narrativa sem qualquer desenvolvimento, e acabam por superficializar o filme e seus protagonistas ao invés de aprofundá-los.

O que constrange em De Longe Te Observo, a bem da verdade, é a falta de atenção. Na tentativa final de aproximar o espectador das aflições de seus protagonistas - que ali e aqui exibem uma intimidade graças aos esforços de Castro e Silva - para tentar dar impacto a seus destinos, ele esquece o próprio primeiro ato, onde os apresenta como pessoas na superfície violentas, e ignora o segundo, no qual apenas faz o início da amizade e presume que o público irá aceitar a passagem de tempo. Presunção esta bastante fatal.

Nota: 2/10

domingo, 25 de outubro de 2015

Crítica: Dheepan - O Refúgio

Ganhador da Palma de Ouro em Cannes elabora bem o arco do imigrante, mas não percebe a própria genialidade.

Por Pedro Strazza.

O drama de imigração geralmente é um tema que consegue funcionar muito bem no cinema devido à combinação poderosa do arco de reinício (ou sua tentativa, pelo menos) com a eterna sensação de deslocamento vivida por tais indivíduos, cuja dor é capaz de despertar simpatia imediata de seu público. Em Dheepan - O Refúgio, essa condição de "peixe fora d'água" ganha uma nova e ambiciosa camada na forma de uma família formada somente para sair do país de origem.
Saídos do Sri Lanka e sob a identidade tomada de mortos, Dheepan (Jesuthasan Antonythasan), Yalini (Kalieaswari Srinivasan) e Illayaal (Claudine Vinasithamby) são três estranhos de histórias de vida diferentes que se disfarçam de família para chegar à França e escapar da terrível guerra civil que assola seu país natal. Acolhidos pelo Estado europeu, eles começam então a viver todo o tipo de dificuldade enfrentada pelo imigrante, desde os aspectos mais materiais (a falta de dinheiro, as péssimas condições de vida) até a dificuldade para se adaptar à cultura e aos costumes de seu novo lar.
Nesse quesito, o roteiro de Thomas Bidegain, Noé Debré e do diretor Jacques Audiard é bastante efetivo, pois faz questão de realçar os problemas de adequação com a sociedade francesa incluindo todo tipo de preconceito, passando pelo racismo, a xenofobia e até o bullying. Mesmo com um teto para morar e ocupações a desempenhar, a "família" de Dheepan encontra-se sempre à procura de um espaço, incapaz de se estabelecer efetivamente ou chamar qualquer lugar de lar. E voltar à pátria não é uma opção, já que o Sri Lanka que conheciam está devastado pelo conflito e agora é um completo estranho a eles, como bem revela o contraste do sonho do protagonista de um belo elefante (o passado idealizado, filmado com toda a plasticidade possível) com as imagens da guerra mostradas por um telejornal (o presente duro e desesperançoso, visto pelo televisor frio).
Mas se na sensação de deslocamento exterior há um bom desenvolvimento, no interior se desperdiça por completo a problematização das relações. Criadas apenas no intuito de se salvar dos horrores vividos no país de origem, a farsa da instituição familiar fabricada por Dheepan, Yalini e Illayaal nunca é explorada por Audiard no intuito de reforçar a própria sensação de isolamento dos três dentro de seu próprio refúgio. Ao invés disso, o diretor francês opta por arcos novelescos e sem maior criatividade, culminando num clímax de violência que, além de ser um pouco xenófobo por tratar o protagonista como uma espécie de ameaça (ainda que heroica), nada tem a ver com a trama.
É o subaproveitamento que a bem da verdade prejudica os efeitos de Dheepan - O Refúgio no público. Apesar de desempenhar muito bem o processo de reinício vivido por qualquer imigrante, o ganhador da Palma de Ouro acaba por se restringir demais ao tratar apenas da questão migratória e ignorar por completo a própria trama complexa que concebeu. E o tema se revela ainda mais fechado por somente tratar da problemática no território francês, algo bastante exposto na Inglaterra idealizada pelo trio de refugiados ao longo da narrativa.

Nota: 6/10

sábado, 24 de outubro de 2015

Crítica: Chronic

Problematização da crise do íntimo ganha contornos de obsessão graças a performance decisiva de Tim Roth.

Por Pedro Strazza.

Existe em Chronic um curioso grau de interesse pela maneira como o protagonista David (Tim Roth) dá o banho em seus pacientes idosos. Presente em pelo menos três momentos da narrativa, essas cenas são filmadas pelo diretor (e roteirista) Michel Franco com a câmera fixada em um ponto do cômodo que consiga ao mesmo tempo mostrar o carinho e o respeito com o qual o enfermeiro realiza a tarefa. O mais fascinante de tais passagens, porém, é que essa dedicação de David com os enfermos quase sempre ganha tons de sensualidade, mesmo que nenhuma das partes obtenha prazer real em tal atividade.
É de relações, afinal, que o filme trata, a partir de seu personagem principal e sua peculiar obsessão. Objeto central de análise, a aparente necessidade do profissional de saúde em tomar conta de senhores e senhoras de idade adoecidos é tratada por Franco como uma relação de dependência mútua: para os doentes, o cuidado de saúde é fundamental; para David, uma maneira de lidar com as dores de seu passado pela amizade, única maneira de escapar da realidade à sua volta. E é um relacionamento que nos pequenos movimentos se faz de forma intensa no protagonista, que não apenas se envolve profundamente com os pacientes como também parece querer se tornar parte deles, adquirindo seus gostos e até considerando-o marido deles.
Mas por que fazer isso? Ao longo do filme, o roteiro revela aos poucos e em diálogos de exposição bem disfarçados os motivos emocionais do enfermeiro, mas no fundo esta condição crônica se faz como um símbolo para o fim gradual das relações. Seja pelo acesso ao Facebook (esse site que é a marca da fragmentação do íntimo) da filha, ou nas conversas com os idosos - em especial nas cenas com Marta (Robin Bartlett) -, David expressa repulsa e desespero em se reconectar afetivamente, e o único meio que pode supri-lo dessa deficiência é a profissão, algo por si só contraditório por essência. Mesmo superficial, os banhos tornam-se assim um ato de conexão máxima, cuja união só pode ser comparada às relações pai-e-filha e, talvez, ao casamento.
A complexidade emocional de tal personagem é lidada com excelência por Tim Roth, que consegue exprimir o sofrimento silencioso do papel em simultâneo com sua obsessão sem perder em qualquer instante o equilíbrio necessário. Especializado em tipos atormentados (ainda mais se forem explosivos), Roth consegue na contenção um personagem fascinante e de alterações mínima porém problemáticas, como as pequenas manifestações de imitação em seu movimento corporal, bastante visíveis em seu primeiro reencontro com Nadia (Sarah Sutherland).
Pessimista no lado social da coisa e muito mais liderado pelo ator que pelo roteiro, Chronic usa de uma história simples para falar de um tema complexo, por meio de personagens em permanente declínio em sua condição física e emocional. Por mais que busque o carinho imediato (e os alcance, de certa maneira), as profundas relações criadas por David com seus pacientes para suprir sua necessidade de intimidade sempre são fadadas ao término súbito, e nesse momento não existe símbolo mais claro que a morte.

Nota: 7/10

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Crítica: Aliança do Crime

Whitey Bulger faz o arco clássico dos filmes de gângster, mas nada acrescenta a este.

Embora abandone em Aliança do Crime a temática da cultura country e redneck dos Estados Unidos (tema de seus dois primeiros trabalhos, Coração Louco e Tudo por Justiça), o diretor Scott Cooper continua disposto a humanizar figuras de ojeriza da sociedade. Depois do bêbado e do ex-presidiário, chegou a vez do gângster convicto, aqui o violento criminoso James "Whitey" Bulger, responsável por inúmeras mortes e uma ampla rede de tráfico de drogas no sul de Boston nos anos 70.
Com base no livro escrito por Dick Lehr e Gerard O'Neill, o roteiro de Mark Mallouk e Jez Butterworth acompanha a rápida ascensão e queda do criminoso, que aproveitou-se de uma parceria feita com o FBI para agir descontroladamente em seu território e derrubar uma família mafiosa. A história é feita nos moldes clássicos e tem poucas novidades aqui: Bulger (Johnny Depp) é retratado como um homem carinhoso e dedicado aos parentes e agressivo e violento nos negócios, começando a misturar as coisas conforme o tempo passa e as mortes se acumulam. Seu relacionamento com o irmão Billy (Benedict Cumberbatch) é o que melhor demonstra isso, tratado por Cooper com todos os tiques de amor fraternal e mostrando sucessivas vezes como o gângster não permite que sua reputação manche a carreira do senador do Massachusetts.
Central à história, essa tarefa de fazer de Whitey um "gente como a gente" se transforma em um arco de manutenção das tradições pela ótica familiar, ancorado pelos atos do protagonista em relação às outras unidades familiares que encontra. Ao passo que seus relacionamentos mais íntimos são perdidos - o filho, a mãe, a esposa (Dakota Johnson) - James se torna mais amargo, incapaz de encontrar algo que substitua em peso e com satisfação o contrapeso para a violência de seu trabalho. Sua agressividade, assim, surge como uma tentativa de manter a ordem das coisas, seja no crime ou no lar, e as cenas na casa do agente e seu contato no FBI John Connolly (Joel Edgerton) são o melhor exemplo disso.
Esse desenvolvimento da trama acaba por não ser suficiente para conduzir sozinha a obra, que no fundo se comporta como o típico filme de atuação. Mas mesmo que possua um elenco gigantesco e extremamente bem qualificado em mãos (além do trio masculino citado e Johnson, a produção conta com nomes como Kevin Bacon, Peter Sarsgaard, Corey Stoll, Juno Temple e Adam Scott), Aliança do Crime mostra dificuldades em empregá-lo da melhor maneira, pondo ótimos atores em posições coadjuvantes - só resta o sotaque a Cumberbatch no papel de Billy - e mais fracos nos papéis principais - Edgerton, por exemplo, faz muito pouco do processo de corrompimento vivido por Connolly e entrega uma atuação próxima do caricato.
Todo o filme, entretanto, é dedicado mesmo a construir Bulger e a atuação de Depp, vendida ao máximo pela produção como seu retorno ao topo depois de uma série de erros. O ator, que surge ameaçador no papel do gângster, entrega uma composição bastante diferente do seu arquétipo de Jack Sparrow que veio entregando nos últimos anos, mas na realidade é ainda uma caricatura tão grande quanto sua maquiagem com toques de Drácula. Algo que, a exceção da comparação com o vampiro, parece repercutir em toda a estrutura e narrativa da obra.

Nota: 5/10

Crítica: Filho de Saul

Ganhador do prêmio do júri em Cannes faz aproximação real com experiência nos campos de concentração nazistas.

Por Pedro Strazza.

Fazer filmes sobre o Holocausto é uma tarefa cada vez mais difícil porque, depois de incontáveis produções sobre o tema, o público começa a não sentir mais um grande choque com o que é mostrado na tela. A crueldade dos nazistas em dizimar os judeus em seus campos de concentração, ainda tão aterrador e agonizante nos dias de hoje, se torna progressivamente anestesiada em tempos de banalização da violência na sociedade, o que por sua vez impede o cinema de fazer o retrato tradicional de tal tragédia e busque novas maneiras de realizá-la se quiser aproximar o espectador do sofrimento experimentado pelas vítimas.

É justamente este ato de chegar mais perto que marca Filho de Saul, primeiro longa-metragem do diretor húngaro Lászlo Nemes e ganhador do grande prêmio do júri no festival de Cannes. O filme, sobre um prisioneiro forçado a queimar os corpos de seu povo em um desses campos e seus esforços para enterrar seu filho morto, traz o público para dentro do horror em seu formato mais literal, colocando a câmera o mais próximo possível de seu protagonista e desfocando quase sempre o que acontece ao seu redor. O efeito é sentido de imediato: por duas horas, o que o personagem sentir também atingirá o espectador, e na esmagadora maioria das vezes o sentimento é de dor.

Para tanto, Nemes não se restringe na tarefa de transportar essas sensações ao máximo para fora da tela. Os planos longos e em movimento, além da câmera tremida, são constantes na obra, que aproveita de tal condição e mergulha na dura rotina ao qual eram submetidos os judeus obrigados a executar, limpar e queimar os corpos de outros prisioneiros. A ausência de foco no cenário, que serve como cortina de fumaça para uma violência já bastante esclarecida em tantas obras e evita o longa de cair no imediatismo do impacto, também é eficaz em mecanizar o movimento dos presos e de seus carcereiros, tornando realidade o processo de desumanização realizado nos campos de concentração.

É nesse ínterim que o arco desenvolvido pelo protagonista Saul (Géza Röhrig) se transforma então num resquício de humanidade, quase uma última tentativa desesperada de manter esperança em meio à tragédia. A religiosidade do prisioneiro, que insiste em enterrar o filho sob as orações de um rabino, é a todo instante motivo de incômodo e até de revolta por parte dos outros presos, mais preocupados em sobreviver e escapar do cárcere, enquanto os poucos momentos de convívio ao qual Saul consegue acesso são impossibilitados de qualquer afeto pelo clima de sofrimento profundo - a passagem pela praia e o encontro com a esposa (Juli Jakab) são os que melhor demonstram essa falta de um lado humano no lugar.

"Já estamos todos mortos" diz o personagem principal em determinado ponto da narrativa após outro lhe dizer que seus atos vão matar a todos, praticamente ciente do fim de sua existência como ser humano após a longa estadia na câmara de gás. Esta consciência, assim como a do filme na dificuldade de retratar um momento histórico tão triste, conduz Filho de Saul por uma trilha sem oportunidades para a redenção ou catarse, que embora clichê não deixa de ser real.

Nota: 7/10

ESPECIAL: 39° Mostra de São Paulo

Do dia 22 de outubro a 4 de novembro acontece em São Paulo mais uma edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que exibirá cerca de 312 filmes feitos em 62 países em diversas localidades da capital paulista.
Este ano, além da perspectiva internacional, a Mostra Brasil e a competição de novos diretores, o festival fará uma homenagem ao centenário do diretor italiano Mario Monicelli - exibindo cinco filmes restaurados do cineasta - e aos 25 anos da Film Foundation, que serão comemorados com uma seleção de títulos restaurados pela organização criada por Martin Scorsese, que também assina o pôster do evento.
A 39° Mostra Internacional de Cinema de São Paulo terá cobertura do site O Nerd Contra Ataca, cujas críticas sobre alguns dos filmes presentes no evento você confere aqui. Bons filmes!

  • Son of SaulGanhador do prêmio do júri em Cannes faz aproximação real com experiência nos campos de concentração nazistas;
  • Aliança do CrimeWhitey Bulger faz o arco clássico dos filmes de gângster, mas nada acrescenta a este;
  • ChronicProblematização da crise do íntimo ganha contornos de obsessão graças a performance decisiva de Tim Roth;
  • Dheepan - O RefúgioGanhador da Palma de Ouro em Cannes elabora bem o arco do imigrante, mas não percebe a própria genialidade;
  • Desde AlláCinema de presunções, estreia de Lorenzo Vigas em longa-metragens sofre de indecisão;
  • A Terra e a SombraQuestão da terra na Colômbia é tratado pelo lado humano em meio ao caos;
  • CalifórniaFilme de coming of age sofre na indecisão da proposta;
  • Mistress AmericaNoah Baumbach realiza a obra mais debochada de si mesmo;
  • Bone TomahawkFaroeste de horror desconstrói ideais do Velho-Oeste pela violência e comédia;
  • Boi NeonGabriel Mascaro aposta na imagem para falar do social;
  • A BruxaTerror de isolamento é enfraquecido por viés religioso em história dominada por 8 ou 80.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Crítica: Sicario - Terra de Ninguém

Exercício de gênero, novo trabalho de diretor de Os Suspeitos faz do literalismo estrela-guia.

Por Pedro Strazza.

A princípio, Sicario - Terra de Ninguém soa como mais um dos suspenses com tons de sadismo do diretor Denis Villeneuve. A invasão de uma unidade do FBI a uma típica casa do interior do Texas, que termina em uma reviravolta digna dos filmes de terror, apresenta todas as características de direção do canadense (planos fechados, claustrofóbicos, enervantes por essência) em uma paleta de cores claras, baseada em um bege claro e forte. Mas como o twist destes primeiros quinze minutos, nada é exatamente o que parece.

A bem da verdade, o longa escrito por Taylor Sheridan é mais um típico faroeste contemporâneo, que situado na guerra do narcotráfico busca tirar do conflito a mesma noção ensinada em clássicos do gênero sobre a questão indígena: o banho de sangue provocado pelas brigas de território sempre envolvem no fim a rivalidade entre grandes famílias que na realidade dependem uma da outra. No caso de Sicario, esse conceito é tão abstrato quanto os domínios territoriais do crime ou os corpos nas paredes de casa, esta última a primeira das muitas metáforas levadas ao pé da letra pela obra.

Aqui bastante íntimo das questões de imigração, essa disputa territorial é tratada pelo filme com todo o ar de inédito, mas no fim acaba por vomitar na tela os lugares-comuns habituais do tema. O estrangeiro como ameaça à família tradicional estadunidense, o uso do mal para derrubar outro mal, a falta de espaço para a pureza e suas noções ingênuas (representadas na solitária figura feminina de uma Emily Blunt exausta)... os clichês se acumulam desordenadamente, entregando a produção a convenções narrativas previsíveis.

O que salva Terra de Ninguém de ser esse "apenas mais um no monte" e traz de fato alguma novidade ao faroeste é Villeneuve, que aproveita da tensão natural da história para fazer seus sets de suspense. Menos inspirado em relação a outros trabalhos (Os Suspeitos continua seu melhor exercício neste quesito) e embalado por uma trilha pouco eficaz de Jóhann Jóhannsson, o diretor é capaz de enervar o ânimo do espectador ao jogar com a incerteza do que está acontecendo. O ápice vem, claro, na ação dentro dos túneis que é o clímax do terceiro ato, onde o clima de insegurança concebido é complementado pelo ótimo jogo de sombras desenvolvido pela fotografia de Roger Deakins - pontuado no início dessa sequência por um belo plano de "mergulho" às trevas.

Também contribui para o filme o ótimo elenco, que mesmo sendo em teoria encabeçado por Emily Blunt reside toda a sua força no personagem de Benicio Del Toro. Cavaleiro solitário da vez, o suspeito agente federal do mexicano carrega todos os tiques da figura consagrada na Trilogia dos Dólares de Sergio Leone, voltadas agora para toda a velha brincadeira do bem com tons de cinza e uma roupa de black ops da história. E se Blunt surge apagada como o contraponto ingênuo de sua existência (a mulher mais uma vez presa a esse velho clichê do faroeste), Josh Brolin é o federal arrogante, a figura de autoridade que somente deseja preservar os valores tradicionais de sua sociedade pela aniquilação da outra.

É curioso que, para um filme que se preze novo e instigante, Sicario seja um exercício de gênero com pinceladas de outro sobre uma discussão que no fundo é um grande Fla-Flu maniqueísta, legitimado na última cena com uma partida de futebol - mais um desses literalismos que a obra parece incapaz de evitar. Villeneuve e Sheridan até tentam propor uma visão do outro lado pelas cenas envolvendo as interações do personagem de Maximiliano Hernández com sua família, mas o moralismo inerente à trama impede qualquer tipo de reflexão maior no âmbito.

Nota: 7/10

terça-feira, 13 de outubro de 2015

Crítica: A Travessia

Zemeckis humaniza torres gêmeas e esvazia o artista de sentido.

Por Pedro Strazza.

Logo no início do primeiro terço de A Travessia, o equilibrista, protagonista e narrador Philippe Petit (Joseph Gordon-Levitt) conta ao espectador como conheceu num dentista as torres gêmeas que compunham o World Trade Center e, em seguida, explica o porquê de ter decidido "pendurar sua corda" no alto dos até então dois maiores edifícios do mundo. A razão é simples e chega a ser um pouco frustrante, ainda que compreensível: Petit resolve atravessar o vazio entre os dois imensos arranha-céus e mover esforços descomunais de um grande grupo de pessoas apenas por querer realizar o maior ato de equilibrismo da História, provando-se ser um dos maiores artistas da humanidade.

Mesmo que mais pra frente ela ganhe maior aprofundamento (mas não muito), esta justificativa inicial do artista ajuda a explicar alguns dos erros e acertos da versão do diretor Robert Zemeckis sobre os fatos ocorridos na manhã do dia sete de agosto de 1974. Enquanto relato de acontecimentos, o filme peca por não conseguir dar a Philippe e aos outros atores participantes do evento alguma humanidade, porém funciona muito bem na hora de abordar esse estranho fascínio que o ser humano tem com as grandes construções.

É uma relação que Zemeckis escancara desde o começo pelo lugar onde o protagonista conversa o público e entra em detalhes sobre sua aventura. Na imensa tocha da Estátua da Liberdade, onde o equilibrista narra a história, o cineasta mira as torres como verdadeiros mirantes, que tal qual a imensa escultura servem de imagem de idolatria a quem quer que as veja ao vivo. O trágico destino do WTC, em nenhum momento mencionado de fato pela produção, é naquele momento um agouro distante, mas parece assombrar o espectador a cada expressão de contemplação dado pelos personagens ou plano que destaque os arranha-céus.

Esta admiração constante, entretanto, tem que ter uma origem, e é justamente esta questão que a obra busca responder pela ação liderada por Petit. Na época, os dois edifícios ainda estavam sendo construídos, e o longa usa disso para retratá-los no visual como construções maciças e amedrontadoras, parte de um capitalismo industrial e feroz. Assim, o que o artista e seus "cúmplices" tentam aqui, na verdade, é dotar tais prédios de uma humanidade, enfrentando o vácuo em um típico duelo de Davi e Golias. "As pessoas passaram a gostar das torres" diz alguém pouco depois do fim da performance, quase que confirmando a existência desse batismo humano.

O problema de A Travessia é que o espectador, até chegar à travessia em si, tem de lidar com a burocracia narrativa. Estruturado em três atos que visam exclusivamente os acontecimentos do último (algo típico dos filmes de assalto), o roteiro escrito por Zemeckis e Christopher Browne não consegue se desviar do WTC para dar atenção a Petit e seus colegas de crime e por consequência os esvazia de qualquer humanidade, tornando-os meras peças de um tabuleiro maior. Esta inversão de valores é um fenômeno curioso, cujos danos só permitem à obra decolar no clímax de seu final. E se isso acontece, é por culpa de seu diretor, que se aproveita do natural encantamento do equilibrismo de Philippe para entregar mais um de seus espetáculos visuais, por meio de sucessivas vertigens acrofóbicas proporcionadas em tal altura.

E é pelo show que Zemeckis parece no fundo ter se interessado mesmo ao decidir por filmar essa história. Por mais que assuma o tom de uma elegia a um monumento do capitalismo estadunidense e desempenhe muito bem este papel, A Travessia encanta ao efetivamente prestar suas homenagens por meio da ação de Petit no alto das torres, em um desses raros momentos de humanização no vazio. Uma pena que fora dos longos edifícios essa noção não se concretize.

Nota: 7/10

domingo, 11 de outubro de 2015

Crítica: Peter Pan

Para bem e mal, roteiro e direção não conversam no prelúdio ao clássico de J.M. Barrie.

Por Pedro Strazza.

Transportar o teatro para o cinema não é exatamente uma novidade, mas pode encontrar diferentes métodos de aplicação de acordo com o realizador ou até a obra. Enquanto a direção de Kenneth Branagh, exemplo contemporâneo mais conhecido, usa da técnica preferencialmente em seu aspecto mais dramatúrgico, o cineasta Joe Wright canaliza as raízes teatrais em suas produções nos detalhes cenográficos, aproximando em caráter decisivo seus filmes dos espetáculos vistos em anfiteatros. Foi assim com o drama de quiprocós Desejo e Reparação, o conto de fadas adulto Hanna e a novelesca Anna Karenina, materializando de maneiras diferentes na tela esse desejo de seu realizador. 
Desses, a adaptação do livro de Liev Tolstói é quem mais se parece com Peter Pan, apesar do filme de origem a princípio encontrar maiores semelhanças com Hanna. O prelúdio, assim como o Anna Karenina de Wright, usa da cenografia teatral em caráter quase literal para estabelecer o "início da lenda" criada pelo escritor J.M. Barrie, aqui concebido como uma peça infantil  que bebe das mais diversas fontes para tornar real seu mundo.
Neste quesito, o longa desempenha-se bastante bem por justamente manter uma organicidade constante em sua Terra do Nunca de afetações. Das minas de pixum (o pó das fadas mineralizado) do vilão Barba Negra (Hugh Jackman), com pegada steampunk movida à base de rock, ao território indígena que visa a exaltação do corpo (tanto é que a morte de seus habitantes humanos são pontuadas por explosões coloridas), Wright traz uma individualidade a cada ambiente por meio de um grande repertório de influências oriundas das tecnicidades do teatro, e em nenhum momento esconde do espectador esse lado. Em termos visuais, isso fica bastante claro na concepção de uma das criaturas da floresta, um pássaro gigante esboçado como feito apenas de esqueleto, penas e dois olhos de vidro gigantescos, e no próprio uso do 3D, trabalhado pelo diretor para sempre se projetar para fora da tela e alcançar o público.
Mas enquanto na imagem Peter Pan é comandado pelo lúdico, na história ele se entrega demais a estruturas e noções conhecidas sem se dar ao trabalho de verificar se estas funcionam aos propósitos desejados. O roteiro de Jason Fuchs faz da origem do menino que não queria crescer um arco de predestinação com toques maternais, típico nos dias de hoje porém pouco adequado a um personagem elaborado no início do século XX, e nesse ínterim confere às relações da obra um caráter superficial. A problematização da ligação de Peter (Levi Miller) com a mãe (Amanda Seyfried), tema central à história, não consegue por exemplo encontrar um espaço adequado para se desenvolver fora da Londres da Segunda Guerra Mundial e seu respectivo teor de escapismo quando contraposto à Terra do Nunca, e acaba relegado ao segundo plano equivocadamente.
E esta não é a única relação problemática do filme. Amizades, romances e antagonismos sofrem de um mau desenvolvimento constante, partindo de situações pré-estabelecidas e que nunca vão a lugar algum, culpa talvez de eventuais planos de dar ao prelúdio novos capítulos. Resta então ao elenco carregar como pode seus personagens, com resultados bastante distintos entre si: Se Hugh Jackman se diverte na caracterização excessiva de seu Barba Negra e entrega um vilão cômico bem trabalhado, Garrett Hedlund é incapaz de manusear a canastrice necessária ao seu (futuro Capitão) Gancho e chega a uma composição muito fraca; e se a Princesa Tigrinha de Rooney Mara encontra-se vezes demais no escanteio, Levi Miller ganha espaço suficiente na narrativa para desempenhar o protagonismo de Peter.
Ainda com um terceiro ato decepcionante por abandonar de vez o ar teatral da produção e dedicar-se à ação - pouco inspirada comparada a Hanna, vale acrescentar - e à jornada de predestinação (que nesse momento em específico lembra muito a empreendida por Uma Nova Esperança), Peter Pan é um prelúdio que poderia ser esquecível se não fosse as inspirações visuais de seu diretor. Tecnicidades, entretanto, não são o suficiente para conduzir um conto de fadas, e a atual onda de obras live-action que adaptam os clássicos infantis é prova cabal disso.

Nota: 6/10

terça-feira, 6 de outubro de 2015

Primeiras Impressões: Star Wars 1/Darth Vader 1

Primeiras HQs da saga na Marvel sofrem com pouca liberdade e se rendem ao fan service instantâneo.

Por Pedro Strazza.

Enquanto HQs que inauguram o reinício dos quadrinhos de Star Wars na Marvel, as revistas Star Wars e Darth Vader mostram em suas respectivas primeiras edições uma forte inclinação a repetir em suas páginas o que deu certo no cinema. É uma estratégia nada desonrosa e até eficaz dado seu objetivo, claro, mas é inegável o leve gosto amargo que permeiam as duas histórias, principalmente se considerarmos os nomes envolvidos no lado criativo.

Bastante conectadas entre si, ambas as séries se passam logo após aos eventos vistos em Uma Nova Esperança, cada uma se dedicando a um dos lados da guerra. Nas páginas de Star Wars, o roteiro escrito por Jason Aaron com arte de John Cassaday segue os heróis liderados por Luke Skywalker e suas ações para minar o poder do Império, aqui uma invasão em uma das bases imperiais; nas de Darth Vader, a história de Kieron Gillen ilustrada por Salvador Larroca acompanha o momento passado pelo grande vilão da saga após a destruição da Estrela da Morte, que faz com que seu relacionamento com o Imperador entre em crise. O ponto de união entre as duas são as negociações das forças imperiais com Jabba, interrompidas pelos Rebeldes na primeira e realizada de fato na segunda.

Essa intimidade entre as tramas, porém, não é o único ponto na qual as duas coincidem. Seja no roteiro ou no desenho, é visível em Darth Vader e Star Wars o uso de estruturas que prezem pelo fan service, muitas vezes forçado para agradar a qualquer tipo de fã da franquia: os diálogos recheados de referências, as locações conhecidas (o palácio de Jabba em Vader, os corredores vazios em Star Wars), a verossimilhança com a realidade... tudo parece preso a diretrizes, o que impede os roteiristas de tentar criar algo a mais em cima dos personagens - embora Gillen, talvez com "maior" liberdade que Aaron para trabalhar, consiga encaixar na história de Vader um arco tímido de provação - e os artistas de se arriscar na representação. Inclusive chega a ser curioso que Larroca e Cassaday, donos de traços e visuais relativamente distintos, se assemelhem aqui na escolha de muitos ângulos e na própria opção pela maior fidelidade com o rosto dos atores.

Muito provavelmente encurraladas pela própria proposta de sua existência e a aparente rigidez com a qual a Disney e a Lucasfilm estão lidando com o rebootado universo expandido da saga (algo que deve estar se repetindo em Princesa Leia, a estrear no Brasil dentro da segunda edição de Darth Vader), as duas séries encontram no início uma grande dificuldade em lidar com a falta de mobilidade no criativo. Se considerarmos o potencial das duplas criativas, é bem provável que esse cenário mude e ambas as revistas se façam nas pequenas brechas dadas dentro da mitologia, mas para isso acontecer será necessário coragem e, óbvio, uma meta mais interessante que o prazer imediato.

domingo, 4 de outubro de 2015

Crítica: A Possessão do Mal

Demônio vira efeito do LSD em história prejudicada por erros bobos.

Por Pedro Strazza.

Percebe-se o desgaste de um tema quando este começa a ser visto pelas maneiras mais inusitadas por novos realizadores. Um bom exemplo dessa tendência criativa é A Possessão do Mal, filme de estreia do diretor  e roteirista David Jung que encara a possessão, este ato demoníaco que em tempos recentes voltou a ser bastante explorado pelo cinema de terror estadunidense, como uma verdadeira viagem alucinógena que deu muito errado no processo.
Só isso pode explicar com suficiência os acontecimentos mostrados na obra, que acompanha os esforços de um documentarista (Shane Johnson) em mostrar ao mundo a inexistência do sobrenatural após o falecimento da esposa (Cara Pifko) em decorrência de um acidente de carro. Para provar sua teoria, ele toma um verdadeiro "coquetel" de rituais satânicos - envolvendo (óbvio) a ingestão de drogas pesadas como LSD e uma fórmula literalmente vendida a ele como "capaz de aproximá-lo da sensação de morte" - no intuito de mostrar sua ineficácia, mas logo percebe que cometeu um erro (óbvio) sem volta.
A partir desta premissa, o roteiro de Jung busca passar ao espectador as sensações vividas pelo protagonista, que no fundo constituem os efeitos de uma típica bad trip. Das formigas que aos poucos se tornam mais presentes na casa do personagem às perdas de consciência sucessivas ocorridas durante a noite, ele constrói um clima de paranoia crescente, levado pelo documentarista no arco clichê de crença. O divertido, entretanto, é que o diretor não tem medo de materializar essa viagem no aspecto visual, encontrando ápices deliciosos na sala de consulta da psiquiatra - cujas luzes estroboscópicas soam ideais para a proposta aqui mesmo deslocadas - e na própria atuação de Johnson, sem medo de abraçar a caricatura quando necessário. Até o pós-festa encontra-se presente na narrativa, com direito a vômito, casa destruída e arrependimento das decisões tomadas.
O que o cineasta mostra de promissor em ideias, porém, ele falta na execução. Não somente por não conseguir encaixar com propriedade suficiente o found footage na história (a desculpa inicial dada pelo protagonista no início não é capaz de alimentar as necessidades do subgênero ou a importância dos segmentos no passado), Jung demonstra em sua estreia uma fácil inclinação ao terror de sustos e aos excessos, estes últimos principalmente no terceiro ato que, preocupado em dar algum otimismo final à trama, acaba por se perder na indecisão. Não bastasse isso, o roteiro tem dificuldades para controlar os clichês dos filmes de possessão, que se acumulam em caráter prejudicial e servem apenas para tornar previsível o rumo dos eventos - e nesse ponto me indago quantas vezes mais seremos obrigados a assistir à colisão de um pombo na janela como forma de terror até perceberem a crescente ineficácia do artifício.
São esses erros de principiante que tiram de A Possessão do Mal o fôlego maior para desenvolver o enlouquecimento de seu personagem pelos efeitos alucinógenos, apesar deste resistir bem como fio condutor. E ainda que mostre essa necessidade de aprender mais do arroz-e-feijão do gênero, seu realizador dá motivos suficientes para ser acompanhado de perto em seus próximos trabalhos.

Nota: 5/10

sábado, 3 de outubro de 2015

Crítica: Perdido em Marte

Otimista, Ridley Scott usa da ciência para brindar à sociedade.

Por Pedro Strazza.

É curioso, mas a ficção-científica precisar de um clima pesado e desesperançoso parece ter se tornado uma regra a ser seguida à risca pelo gênero no começo do século XXI. Como na transição de Kubrick para Spielberg vista em A.I. - Inteligência Artificial, os filmes da categoria que marcaram a década de 2000 e a metade dos anos 2010 abandonaram qualquer indício de esperança com a humanidade, sendo em sua maioria dominados por uma visão pessimista e estabelecedora de distopias de sistemas autoritários ou massacrantes que em comum tem o uso de paletas de cores frias para compor seu cenário. Esta ficção-científica "da depressão" quase alcançou um ponto crítico em 2014 com Interestelar, em que o olhar "realista" de Christopher Nolan tentou destituir a exploração espacial de qualquer encanto.
O gênero, porém, está tentando reencontrar o otimismo há tanto perdido nesta metade dos anos 10, primeiro com a ópera espacial de Guardiões da Galáxia e O Destino de Júpiter, depois com a visão utópica de Brad Bird e seu Tomorrowland - Um Lugar Onde Nada é Impossível. Agora, junta-se à este movimento de retomada Ridley Scott, que com o Robinson Crusoé espacial Perdido em Marte dá sinais de renúncia à frieza que marcou sua carreira na ficção-científica desde os tempos de Alien - O Oitavo Passageiro e Blade Runner - O Caçador de Androides.
Percebe-se essa tendência do diretor em querer ser mais positivo na obra pela maneira como o protagonista Mark Watney (Matt Damon) lida com a solidão na imensidão desértica do planeta vermelho, imposta depois de ser acidentalmente abandonado por sua equipe de expedição na fuga apressada de uma tempestade. Destituído de quaisquer laços afetivos e familiares - algo oposto ao papel de Matthew McConaughey em Interestelar, se é para manter a comparação com o filme de Nolan - o astronauta botânico lida com a situação por um viés mais imediatista e de sobrevivência, a princípio com preocupações de saúde e alimentação e depois de restabelecimento de comunicações com a Terra, ao som dos ritmos animados das músicas do cenário disco dos anos 80.
Esse imediatismo dos fatos abre espaço na narrativa desenvolvida por Scott para uma abordagem bastante social da história, pois embora Perdido em Marte seja um filme que a todo momento pregue a ciência como divindade a ser idolatrada - e o roteiro de Drew Goddard realiza isso muito bem ao não deixar entendiante ou complicado as inúmeras explicações científicas dadas na trama - sua maior veneração é em direção ao coletivo. É pelos esforços conjuntos, diretos ou indiretos, que Watney afinal consegue sozinho manter-se vivo no planeta, seja pelos itens deixados para trás pelos colegas ou nos auxílios dados pela NASA mais tarde.
Aos olhos de Ridley, o indivíduo oferece ao coletivo suas habilidades e características no mesmo passo que o coletivo é feito para servir ao indivíduo, e o cineasta não deixa de ressaltar ao espectador estes benefícios do viver em sociedade. Se no primeiro ato ele dá bastante importância ao isolamento do protagonista em Marte por meio de planos abertos e de grande profundidade (que o bem empregado 3D reforça com naturalidade estonteante), no clímax do terceiro ato o diretor dá destaque ao acompanhamento da Terra em torno do resgate ao astronauta, enquadrando diversas populações ao redor do globo como se o clima fosse o de uma verdadeira noite de ano-novo, com as pessoas ansiosas pelo momento de celebração comunitária máxima. É tanta a importância dada ao social que até a relações públicas da NASA (vivida por Kristen Wiig) tem espaço na narrativa.
A mensagem do filme é bela, mas não impede que a adaptação do livro homônimo escrito por Andy Weir tenha problemas na estrutura. Além das complicações para encaixar peças de roteiro na narrativa de forma orgânica - a ajuda dos chineses lá pro meio do segundo ato surge como um deus ex machina extremamente deslocado, crime capital em uma obra que impõe o racional - o longa mostra dificuldades semelhantes à Evereste (apesar de em menor grau) de equilibrar o gigantesco e talentoso elenco em mãos, com muitos dos arcos narrativos mau encerrados ou por completo abandonados. Os exemplos mais claros desta última são os vividos pelos personagens de Sean Bean, que pelo visto mais uma vez termina um filme em maus lençóis; Kate Mara e Sebastian Stan, cujo relacionamento é imposto no fim do terceiro ato com uma obrigação bastante desnecessária; e da própria Wiig, que, como outros vários, é abandonada pela trama assim que desempenha sua função.
São erros primários, mas que não chegam a derrubar o equilíbrio social-científico estabelecido e pelo qual a obra se guia satisfatoriamente. No mais, Perdido em Marte serve para ressaltar que o famoso jeitinho brasileiro não é exclusividade nossa: mesmo que apoiado em diversas teorias embasadas e calculadas pela ciência, o resgate de Mark Watney é no fim feito à base de sorte - e com um quê de Gravidade, outra ficção científica de viés pessimista que o filme de Ridley Scott tanto confronta.

Nota: 8/10