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Nos Cinemas #1

Nossos comentários sobre O Dia Depois, Submersão e Com Amor, Simon

Jogador N° 1

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sábado, 21 de abril de 2018

Nos Cinemas #1: Com Amor Simon, O Dia Depois, Submersão e mais

Nossos comentários sobre algumas das estreias das últimas semanas.

Por Pedro Strazza.

  • Antes que Tudo Desapareça

Os filmes de Kiyoshi Kurosawa quase sempre partem de um entendimento muito sóbrio e desgostoso da humanidade, então chega a ser uma surpresa quando alguma de suas obras busca o exato contrário. Este é o caso de Antes que Tudo Desapareça, sua produção mais recente que surge como um olhar analítico bem-humorado de algumas das deficiências mais graves do psicológico social e que resulta em uma mensagem de otimismo muito distinta na carreira do cineasta japonês.

Tudo isso acontece com base em outro de seus exercícios de mesclagem de gêneros, com o diretor estabelecendo-se de início na ficção-científica para depois ir arriscando trazer elementos da comédia e - mais timidamente - da ação. A trama, que acompanha um pequeno grupo de alienígenas em sua missão de apreender o máximo de conhecimento sobre os humanos antes de uma grande invasão à Terra, pode ser muito direta em sua abordagem e jogo de simbolismos (toda vez que os aliens sugam os valores que procuram de suas "vítimas", elas começam a agir desprovidas do peso emocional daquele conceito), uma frontalidade que nem sempre Kurosawa é capaz de abarcar como deveria e que acaba desprovendo a narrativa de um formalismo melhor apurado ou talvez prestigiado. É uma explicação, pelo menos, para a sensação de cafonice que permeia grande parte das escolhas tomadas pelo filme, seja no roteiro que se resolve em mais um final pautado sobre o "poder do amor" ou na estética sem graça, uma característica que soa tão anômala ao cineasta mesmo ele não sendo famoso por isso.

Há muito do que gostar em meio a todos estes entraves, porém. Ao contrário de O Segredo da Câmara Escura - uma aventura atrapalhada do diretor pelas estruturas do horror do cinema francês - Antes que Tudo Desapareça encontra força nos momentos que mostra a operação dos aliens, seja pelo valor imediato da comédia (a cena do chefe virando criança depois de "perder" o conceito de trabalho é hilária) ou na carga emocional que traz nesta busca pela real identidade da condição humana. Fica o lamento, porém, da ausência do uso desta objetividade usada por Kurosawa para fortalecer a coesão geral do filme e impulsionar esta mensagem final na intersecção de gêneros.

  • Com Amor, Simon

Representação é um valor do cinema que nos dias de hoje se tornou mais do que fundamental, mas ao mesmo tempo em que há muito a se explorar e se beneficiar de suas vantagens o tema também oferece uma gama própria de desafios criativos que podem se converter em problemas narrativos. Não é de propósito, mas Com Amor, Simon acaba por ilustrar muito bem esta questão. De certa forma a primeira grande comédia romântica adolescente de estúdio que tem um personagem gay como protagonista, o filme de Greg Berlanti sabe como se aproveitar do ato representativo que serve para impulsionar sua trama de coming of age açucarada, mas a partir do ponto em que precisa lidar com questões um pouco mais complexas ele parece se perder em uma espiral de resoluções apressadas e que tentam não prejudicar sua estrutura central, representada na investigação de Simon (Nick Robinson) para descobrir seu correspondente virtual anônimo. 

Antes de mais nada, é válido apontar que todo este arco principal de auto-afirmação da própria identidade traçado pelo garoto na história funciona em seus fins de relação com o espectador, mesmo que limitado em todas as convenções normativas ao qual se submete - estamos falando de um protagonista que começa a história ganhando um carro de presente, afinal. O que não funciona, pelo menos não como deveria, é tudo que cerca este desenvolvimento de Simon: com a exceção dos pais (que estão envolvidos em caráter direto a esta "saída do armário"), todos os personagens coadjuvantes tem sua participação neste processo reduzida ao essencial do ponto de vista central, uma medida que quebra com o esforço do filme de mostrar o quão natural é se descobrir gay dentro da sociedade. Do menino que descobre o segredo de Simon e passa a chantageá-lo à melhor amiga que nutre por ele uma paixão secreta, todas estas relações são trabalhadas de forma a antes aumentar o peso dramático da situação que contribuírem para uma maior complexidade emocional em torno do protagonista dentro do núcleo que habita, uma noção que se sente mais quando o longa tenta sem sucesso fazer o personagem principal reconhecer o dilema de outro - seja este o da amiga de pais divorciados ou mesmo da que nutre uma paixão secreta por ele.

Talvez pela afinidade da própria temática, os problemas narrativos de Com Amor, Simon acabam criando um diálogo até que muito evidente com Me Chame Pelo Seu Nome, outro coming of age de forte atração ao público que fez passagem recente pelo circuito comercial brasileiro e também encontrava seus maiores entraves nos círculos externos a seus protagonistas. Mas enquanto que o filme de Luca Guadagnino era capaz de tornar o caráter vago de seus coadjuvantes em ferramenta para sua proposta sensorial, o apoio da direção de Berlanti no texto torna seu longa refém da própria narrativa, incapaz de resolver seus tropeços, um resultado estranho se considerar que a origem do diretor está ligada ao público adolescente graças às séries que toca no the CW.

  • De Encontro com a Vida

A premissa de De Encontro com a Vida é simples: o alemão de pais imigrantes Saliya (Kostja Ullmann) tem como sonho perseguir a carreira de hotelaria, mas por conta de um doença genética acaba perdendo 95% da visão no fim de sua época no colégio. O jovem, porém, não deixa de acreditar que é possível trabalhar no ramo e resolve esconder sua cegueira para poder estagiar em um prestigiado hotel de Munique para provar que sua condição não lhe serve de obstáculo.

É à partir desta busca por adequação que o longa do alemão Marc Rothemund se envereda por uma narrativa típica das comédias românticas mais leves, uma que não só busca tornar mais fácil a história difícil e baseada em fatos reais como também torna a jornada do protagonista pelos diferentes ambientes de aprendizado do hotel em grandes fases de um videogame onde o principal objetivo é se formar no curso de aprendiz. Cada novo espaço apresentado ao espectador possui um desafio diferente ao personagem, um que diretor se aproveita da deficiência de seu personagem para compor uma dinâmica narrativa sensorial, permeada (ou talvez contaminada, aos olhos dos mais céticos) pelo bom humor e o tom leve e adocicado do gênero ao qual pertence.

Neste sentido, De Encontro com a Vida cria uma identidade que é um tanto diferente em relação ao oscarizado Estrelas Além do Tempo, outra produção recente cuja história real também tinha como fim esta jornada de provação dentro do bom mocismo e das estruturas meritocráticas da sociedade, um paralelo que logo deve vir à mente do espectador mais atento. Apesar de ambos os filmes terem no drama edificante ingênuo sua meta final de existência (muito por conta da dívida que nutrem com suas contrapartes da realidade), a comédia alemã se distancia do longa dirigido por Theodore Melfi por assumir o lado lúdico como modo de operação puro, um olhar que o isenta parcialmente de suas responsabilidades mais enfadonhas. Por outro lado, esta decisão criativa não funciona tão bem com os momentos mais dramáticos do filme, em especial no terceiro ato quando a produção precisa intensificar o drama para criar suspense e acaba perdendo o tom no processo.

  • O Dia Depois

O cinema de Hong Sang-Soo nunca foi um pautado exclusivamente no tom leve apesar de manter o humor presente em suas narrativas, mas suas últimas comédias passam por um tom mais grave que é difícil não sentir. Se em Na Praia à Noite Sozinha o cineasta sul-coreano tirava de sua passagem recente pelos tabloides nacionais o motor de sua trama ácida, O Dia Depois encontra momentos dramáticos ainda mais intensos para contar a história de uma mulher (Kim Min-Hee) que começa a trabalhar em uma editora apenas para se ver acusada de ser amante do chefe (Kwon Hae-Hyo) logo no primeiro dia de expediente.

Ainda que as duas produções sejam muito próximas em termos de estruturas narrativas, o elemento que une os dois filmes de fato é desconstrução do cineasta enquanto autor masculino, uma que em Na Praia... é conduzido sob as vias da chacota mais ferrenha e no O Dia Depois assume o peso moral da responsabilidade que ele assume (ou deveria assumir, pelo menos) nos efeitos de suas decisões nas relações amorosas. Esta é uma gigantesca pulverização da figura do macho escroto que só ganha em humor por conta da auto-consciência de Sang-Soo neste processo (ele é o principal afetado nestas dinâmicas de seus longas), mas aqui a presença do drama funciona muito porque ela só aumenta esta perspectiva entre criador e criatura e se vê potencializada naturalmente pela costumeira direção talentosa do cineasta - sua encenação pautada por longas cenas guiadas por zooms momentâneos é tão ideal para organizar o drama quanto o é nas comédias.

Talvez seja por conta deste aumento maior do escopo de seu jogo que o diretor opte por terminar o filme desta vez forçando uma conciliação entre as partes envolvidas. A decisão soa (e é) uma grande quebra de tudo que vinha sendo desenvolvido até ali e contraria até os caminhos narrativos de Na Praia..., mas para Sang-Soo o alento de que estas relações prejudicadas pela postura superior do autor possam ser reparadas com pedidos de desculpas sinceros deve ser suficiente para apaziguá-lo momentaneamente de qualquer culpa interior que sinta, mesmo ele sabendo não ser verdade.

  • Ella e John

Ella e John surge de uma proposta um tanto tola - ela é mais uma história de idosos contemplando o fim da vida a seu modo particular - mas logo nos primeiros momentos o filme busca instaurar um viés de análise que parece anular por um instante esta impressão inicial. É logo na sua abertura que o longa do italiano Paolo Virzì mostra um subúrbio com sinais de apoio ao futuro presidente americano Donald Trump, uma sensação inicial de mal estar que tentará servir de assombro à viagem de carro empreendida pelo casal Spencer - vividos por Helen Mirren e Donald Sutherland com a pose de democratas mais ou menos liberais.

Virzì não renega nem por um instante a posição de "olhar exterior" ao cenário americano, promovendo o contraste da beleza pastel das locações passadas por seus protagonistas com a crueza presente nos mesmos e o clima agitado passado pelo país naquele momento, mas ao mesmo tempo o diretor não é capaz de promover efetivamente esta narrativa dentro de seu próprio filme, o que por sua vez gera um tom geral de promessas vazias bem evidente na produção. Se a jornada final dos dois idosos antes de serem separados pelos filhos acena para uma abordagem de contexto histórico a princípio, no fim este subtexto é abandonado em prol de mais uma trama de acerto de contas emocional, um melodrama onde a morte funciona no intuito de acelerar enfrentamentos há tanto tempo postergados.

Não é algo que chega a prejudicar Mirren e Sutherland, porém. Enquanto o filme ruma ao enfadonho, os dois atores fazem o máximo para tornar seus papéis dignos de nota, tentando elevar o material simples a um campo mais profundo de dramaturgia e evitando a acentuação pura e simples das deficiências como caminho de interpretação de seus personagens. O resultado obtido por eles é digno no que toca os protagonistas, ainda que não seja suficiente para salvar o longa de si mesmo.

  • Submersão

A trajetória recente de Wim Wenders é marcada por mais baixos que altos, com seus últimos documentários orbitando a esfera da pura reverência (a exemplo de O Sal da Terra) e suas ficções buscando uma experimentação de resultados bastante conformados com sua falta de ineditismo, como Tudo Vai Dar Certo bem atesta. Submersão, seu novo drama protagonizado por Alicia Vikander e James McAvoy, faz pouco para melhorar este esquema de produção atual do diretor alemão, ainda que no fundo ele parta de uma proposta de renovação de seu cinema por uma estrutura mais básica.

O longa, afinal, é estruturado à partir de um romance cuja tragédia é ancorada na premissa de duas tramas inconciliáveis, com tanto o personagem de McAvoy quanto o de Vikander sofrendo com uma síndrome de isolamento por conta da dedicação exclusiva dada a suas carreiras intensas - ele sendo um espião, ela como pesquisadora da vida marinha do fundo do oceano. Esta "submersão" do título, oriunda da claustrofobia cada vez maior e sentida pelos dois amantes, é conduzida por Wenders de forma a emular os grandes temas que circundam os personagens e alinhar causas ecológicas com humanistas, mas este procedimento aos poucos se perde em um desinteresse palpável do cineasta pela narrativa que constrói.

A sensação de piloto automático é óbvia desde o começo mas só vai beirar ao insuportável no final, quando fica claro que o cineasta não encontrou o que esperava no livro escrito por J.M. Ledgard e passa a recontar sua história pelas vias do melodrama mais rasteiro. Sua narrativa é permeada de debates rasos e sofrimento calculado para não incomodar ninguém, uma dinâmica que só ressalta o nível do jogo falso e trajado de grandes questões que parece ter contaminado a ponto de fatalidade (e do esquecimento) a carreira de Wenders nestes últimos anos.

domingo, 15 de abril de 2018

Crítica: Baseado em Fatos Reais

De volta aos suspenses psicológicos, Roman Polanski desconstrói a própria posição de autor com desinteresse.

Por Pedro Strazza.

Roman Polanski é "atormentado" por seus casos de estupro e pedofilia desde as primeiras acusações em 1977, mas parece que só recentemente o diretor começou a sentir o peso das alegações que recebeu. Seguindo na via contrária de seus trabalhos anteriores, sua produção nos anos 2010 se vê enxuta de maiores ambições temáticas externas e adquiriu uma conotação muito franca e direta com a relação do autor com suas obras e o público, retrabalhando os seus eternos jogos de dominação e submissão do sexo a uma dinâmica escancaradamente interiorizada. Tanto que Deus da Carnificina e A Pele de Vênus, os dois primeiros longas do cineasta nesta década, dividem além do fato de serem baseadas em peças a semelhança de possuírem uma configuração narrativa quase elementar: um único espaço, um grupo bastante reduzido de atores e uma câmera.

Existe muito de uma restrição orçamentária (afinal, a reputação de Polanski não deve ajudar muito no financiamento de seus filmes) e da permanência dos crimes no imaginário público que devem ganhar responsabilidade neste processo, mas é também verdade que o cineasta anda muito introspectivo na questão da posição de seu cinema dentro de sua mentalidade um tanto distorcida e culpada. Esta metodologia auto-consciente, que mora na divisa entre a ficção e o real, serve novamente e obviamente de centro nervoso ao diretor em Baseado em Fatos Reais, produção que como o título bem deixa implícito tem na intersecção entre o ofício do escritor e a relação do criador com seu público o ponto de partida para mais um destes seus divãs autorais.

Na trama, Delphine (Emmanuelle Seigner) é uma celebrada escritora presa no meio de um bloqueio criativo que durante o sucesso do lançamento de seu mais novo livro conhece Elle (Eva Green), jovem misteriosa e fã de seu trabalho com a qual passa a nutrir uma relação quase exclusiva em sua vida. A exemplo dos anteriores, Polanski se cerca de grandes nomes exaltados no meio (Alexandre Desplat compõe de novo a trilha sonora, Olivier Assayas é autor do roteiro junto do cineasta, os próprios nomes da esposa Seigner e de Green no elenco) para traduzir a obra literária homônima de Delphine de Vigan para a telona em uma narrativa simples e de objetivos revelados do princípio, com o thriller psicológico e suas ambições de turva os limites entre o real e imaginário expostas logo nos primeiros momentos. Seja no nome da personagem ou no uso da fotografia do polonês Pawel Edelman (a mulher nunca está presente na perspectiva visual de ninguém além de Delphine), o público já parte conscientizado do fato de Elle estar presente apenas na imaginação de sua protagonista, servindo a esta como uma materialização do tormento que passa.

É um jogo de cartas abertas bastante explícito que o filme encena, uma dinâmica que parece acelerada de forma a reduzir interpretações do espectador ao essencial e não hesita em tornar todas as batidas conhecidas do gênero visíveis a cada instante. Da duplicidade das figuras de Seigner e Green à claustrofobia crescente sentida pela protagonista conforme a trama avança - passando pelo óbvio enevoamento dos fatos mostrados - tudo é posto na tela sem maior delonga pela narrativa, que mostra alguma pressa para chegar ao que lhe interessa. 

O que Polanski procura com Baseado em Fatos Reais é muito similar ao resultado obtido com A Pele de Vênus, onde ele colocava a imagem do autor em uma rota de subjugação e humilhação dentro de um esquema de dominação sexual antes controlado que, claro, encontra uma forte identificação com a realidade do cineasta. O que muda de lá para cá é em especial a exclusão do elemento masculino (se antes Seigner era a musa pronta para destruir o criador, agora ela é a criadora destinada a entrar em colapso) e a substituição deste elemento vexatório por uma percepção desta crise de identidade como motor de criação, no qual estas agruras do autor retroalimentam seu trabalho.

Mas por mais instigantes que estas mudanças na proposta possam ser à codificação deste seu cinema, porém, Polanski no fim acaba por mostrar um raro desinteresse pelo projeto e todo o jogo de gato e rato entre Delphine e Elle, com a narrativa aos poucos exaurindo suas opções de metalinguagem e de alegorização em uma execução um tanto feita no piloto automático. A exposição antecipada de todos os posicionamentos simbólicos da história não ajuda, e o filme que começa sob a promessa de um suspense psicológico acaba restrito em seu desenrolar a um senso de paranoia um tanto redundante - uma sensação que talvez reflita melhor a posição atual de seu diretor sobre si mesmo.

Nota: 4/10

quinta-feira, 5 de abril de 2018

A Arábia do desencanto

Conversamos com os diretores de Arábia sobre o filme que estreia nesta quinta nos cinemas brasileiros.

Por Pedro Strazza.

Affonso Uchoa e João Dumans nunca estudaram em uma faculdade de Letras, mas o conhecimento de ambos sobre literatura pode levar qualquer um a concluir o contrário. Embora sejam de pontos diferentes do interior de Minas Gerais - o primeiro é de Contagem, o segundo de Ouro Preto - os dois cineastas viram o interesse fervoroso por obras literárias nacionais e internacionais unir suas carreiras profissionais quando ambos trabalhavam em A Vizinhança do Tigre, o trabalho de estreia de Uchoa na direção.

Foi da vontade de ambos de incorporar traços de um movimento literário particular da produção nacional ao cinema, inclusive, que nasceu Arábia, projeto escrito, filmado e montado pela dupla ao longo de quatro anos. "Nossas referências mesmo tem mais a ver com a literatura moderna brasileira de Graciliano Ramos, de João Antônio, de Oswaldo França Júnior e etc, que eram coisas que a gente lia e que tinham uma tradição artística brasileira que para nós estava um pouco esquecida" afirma Dumans em entrevista ao O Nerd Contra-Ataca, feita durante a divulgação do filme que estreia nesta quinta-feira (4) nos cinemas brasileiros; "Existe uma tradição literária forte no Brasil, especialmente na primeira metade do século 20, que tem a ver com tentar construir um retrato do país e da realidade brasileira através da perspectiva dos trabalhadores e de pessoas comuns. E isso pra gente era uma coisa muito marcante, tanto como gesto artístico quanto como gesto criativo" ele continua.

Dumans se refere, claro, a Cristiano, personagem interpretado por Aristides de Sousa que faz na história uma pequena odisseia trabalhista pelo Estado em busca de bicos para sobreviver. Esta jornada interiorana também parte de outra origem do filme, que a princípio tinha seu trajeto determinado de forma a conectar as duas cidades natais de seus diretores, determinando uma conexão íntima entre a História e o cenário de Minas. Foi uma noção que depois acabou sendo alterada - Dumans conta que a descoberta de uma indústria de bauxita há cinco minutos do centro histórico de Ouro Preto transformou a visão dos dois sobre o projeto - mas que ajuda o espectador a entender parte dos motivos pelo qual o filme pode lhe ser tão magnético em seus ciclos trabalhistas tão bem encadeados na narrativa poética amarrada pelos cineastas.

Outro destes motivos reside na própria performance de Sousa, cuja atuação e narração em off são capazes de impulsionar o misto de simplicidade pessoal e complexidade mística que paira sobre seu papel. Mas o trajeto de "Juninho" (como os diretores o apelidam carinhosamente), tal qual o seu personagem, foi bastante tortuoso: embora fosse um dos principais motivos para o projeto existir, ele foi parar na prisão por um ano e meio por conta de um crime pequeno que cometeu em meio a um momento difícil de sua vida. A depressão e a possibilidade de perder o trabalho no filme, porém, não o abateram, e três dias depois de ter terminado de pagar a sentença ele já estava no set trabalhando - um esforço que só acrescenta à admiração que Dumans e Uchoa nutrem pelo ator.

A grande gema preciosa de Arábia, porém, está no clímax final do filme, um grande monólogo dito por Cristiano na fábrica onde trabalha sobre o cenário que se situa. A cena, cuja sensação palpável de desencanto reflete no fundo um sentimento nacional nestes anos pós-lulismo e ajuda a canalizar todos os temas propostos pela produção, foi curiosamente pensada muito tempo depois, durante a montagem. "A gente filmou essas imagens depois de ter o filme pronto, e só fomos escrever o texto mesmo depois de já ter tudo praticamente montado, de já conseguir entender um ritmo" afirma Uchoa, enquanto Dumans diz que ambos gostam da ideia de trabalhar o filme na sala de edição sem saber qual será o final da história que contam.

Se a surpresa por esta imprevisibilidade da dupla é grande, não fique: o próprio método dos dois diretores para criar Arábia vive destas experimentações. Tanto que o projeto partiu como um média-metragem co-protagonizado por um jovem adolescente, que descobria a carta de Cristiano depois dele sofrer um acidente na fábrica. Ainda que tenha sido preservado como espécie de prólogo ao longa, a premissa inicial deste trecho reflete o que os dois classificam como "um processo de criação conturbado" no bom sentido. "O nosso método é meio bagunçado mesmo, a gente faz testes, experimenta ver se acontece e aí vai construindo as coisas a partir do que a gente tá vendo." comenta Dumans sobre este lado do cinema dos dois;  "A gente não consegue sentar em um escritório em Belo Horizonte e escrever uma história, fazer um casting de atores e colocar tudo na tela imediatamente. Essa não é a nossa onda, a nossa onda passa um pouco por experimentar nesses diferentes processos".

Confira o nosso bate-papo com Affonso Uchoa e João Dumans na íntegra a seguir.


Eu queria começar perguntando como é que vocês conceberam este projeto. Da onde ele vem? Ele é tão anômalo dentro da produção nacional e ao mesmo tempo não é, há algo de muito único dentro de toda a sua proposta.

JOÃO DUMANS: Bom, o filme começa um pouco antes e dentro do contexto onde estava fazendo outro filme chamado A Vizinhança do Tigre, que foi o primeiro longa que o Affonso dirigiu e eu também trabalhei. O A Vizinhança teve um processo muito longo, foi um filme que durou quatro ou cinco anos para ser finalizado e foi feito de uma maneira muito independente, com equipe pequena de duas ou três pessoas às vezes. E aí quando a gente estava fazendo A Vizinhança a gente resolveu pensar num outro filme que envolvia questões que para a gente eram importantes em relação às nossas origens - o Affonso é de Contagem e eu sou de Ouro Preto. E a gente queria trabalhar um filme que colocasse estes dois universos que são tão distantes, de uma cidade industrial como Contagem e de uma cidade histórica como Ouro Preto, e entendesse que ressonâncias e conexões essas cidades tinham. A gente tinha essa convicção de que tinha alguma coisa a ser explorada. 

Então o filme começou como uma espécie de cartografia de Minas Gerais?

JD: É, começou com uma cartografia que passava por esses dois lugares, que saía de um lugar contemporâneo para chegar num lugar histórico. Só que de repente a gente resolveu transformar esse lugar histórico também num lugar contemporâneo, vamos dizer assim, onde se pode pensar a situação real de uma cidade que está ali presa a uma certa imagem colonial, uma certa imagem arquitetônica e certos clichês visuais inclusive, mas que a cinco minutos deste centro histórico tá uma fábrica de bauxita que está instalada ali há 50 anos e que de certa forma reproduz uma estrutura de poder e de exploração que é muito parecida com que Ouro Preto tinha durante o século 18. Isso chamou muito a nossa atenção e a gente resolveu transformar esta vila operária de novo no centro do nosso filme. Ao mesmo tempo, existia vindo do Vizinhança esse personagem (essa personalidade na verdade) que é [interpretado pelo] o Aristides, que é o protagonista. E aí a gente resolveu começar a construir uma história em torno desse personagem histórico que nós mesmos escrevemos, mas inspirados um pouco pelo ator, que nós chamamos de Juninho. E aí construímos.

Na verdade, o filme tem muitas origens diferentes porque o processo foi muito longo, e aí várias coisas foram se depositando ao longo desse processo. Então primeiro tinha ideia desse encontro de cidades, aí tinha essa coisa do Juninho e da gente construir um personagem ficcional para ele. Tinha outros elementos que foram aparecendo, tinha nossa vontade de trabalhar com certas referências literárias que a gente tinha em comum...

E uma delas é o Arábia do James Joyce, presumo.

JD: Não só. Na verdade o Joyce era um disparador, mas nossas referências mesmo tem mais a ver com a literatura moderna brasileira de Graciliano Ramos, de João Antônio, de Oswaldo França Júnior e etc, que eram coisas que a gente lia e que tinham uma tradição artística brasileira que para nós estava um pouco esquecida. 

Vocês podem comentar um pouquinho mais sobre isso? Admito que fiquei curioso com este lado da produção.

JD: Existe uma tradição literária forte no Brasil, especialmente na primeira metade do século 20, que tem a ver com tentar construir um retrato do país e da realidade brasileira através da perspectiva dos trabalhadores e de pessoas comuns. Então de Grande Sertão Veredas a Vidas Secas e outros romances brasileiros, além do João Antônio Machado que traz um pouco da coisa regionalista para a cidade, tinha essa ideia de criar narrativas que seriam não só protagonizados como narradas por pessoas comuns, fossem eles criminosos, bandidos, loucos ou trabalhadores, e muitos destes romances exercitaram um pouco essa forma de narrar das pessoas comuns. E isso pra gente era uma coisa muito marcante, tanto como gesto artístico quanto como gesto criativo, de tentar criar espaço para que estas pessoas contassem sua própria história. Então de São Bernardo do Graciliano Ramos a Jorge, Um Brasileiro do Oswaldo França Jr., esses romances marcaram a gente pelo esforço de construir histórias que passavam pelo eu lírico e pela subjetividade de pessoas comuns da nossa sociedade de trabalhadores, e não só pela voz do intelectual do escritor.

Vocês queriam levar isso para a realidade de vocês, então?

JD: Na realidade a gente queria trazer um pouco disso para o cinema também.

AFFONSO UCHOA: A gente está falando deste trabalho da literatura como uma influência, como uma fonte de reflexão que fizesse com que a gente olhasse esta realidade de uma maneira diferente. É a partir daí que vem a parte dois do trabalho, que é como fazer essa percepção se transformar em cinema, e o jogo do cinema também envolve outras questões e outras referências. Mas certamente o que une tudo isso é fazer com que esses essas figuras mais marginalizadas da sociedade sejam os protagonistas das histórias. Isto não significa que elas tenham que ser heróis. Acho que isso também é importante dizer porque pode gerar uma confusão esquisita.

E isso no filme se reflete no fato do personagem do Aristides não ser uma figura heroica e sim uma pessoa comum.

AU: Justamente. O que une também o nosso cinema com isso tudo que a gente está falando da literatura é de ver uma grandeza nesse universo, nessas histórias e nessas pessoas. Por que contar a história dessas pessoas? Porque elas são grandes o suficiente para a gente conseguir não só entender melhor o mundo, mas principalmente um Brasil, o que sozinho era uma espécie de ambição da escrita brasileira, mesmo se você pega um Oswald de Andrade da vida com um poema da linguagem e o “mim dá um cigarro”. Sempre lembro muito da frase dita pelo John Dos Passos, um escritor que não é brasileiro e que foi muito influente para o nosso trabalho, que diz que um país é acima de tudo a língua de seu povo. Então a língua que tem que ser escrita e as palavras que tem que ser usadas tem que bater com essa língua e não com a linguagem do bacharel. E como as histórias são protagonizadas por gente que fala desse jeito a gente tem essa perspectiva. É a ralé que a gente quer botar no primeiro plano. 

E isso não é todo processo, ele só vai até a página 2. A gente pensa “beleza, então a partir do momento que a gente coloca esta camada das pessoas das cidades como protagonista e dá poder à fala deles, a parada acabou aí?” e conclui que não, porque muitos filmes já fizeram isso como por exemplo Cidade de Deus e o Tropa de Elite da vida, que são filmes focados em pessoas e situações marginalizadas que vão ali para a periferia tirar todas as suas histórias. Então é isso que a gente tem que fazer? Tem que se contentar com essa fórmula? Não, porque na verdade a gente queria fazer uma coisa diferente. E aí a gente tinha um problema cinematográfico, que era como retratar estas pessoas e este universo. 

A nossa solução foi trafegar por uma espécie de meio de caminho. Ao mesmo tempo em que a gente era muito tocado pela realidade e pela força daquela gente, a gente pensava que o cinema tinha um potencial de invenção na relação com essa realidade. A gente queria fazer um filme muito franco e muito direto na relação com a realidade, mas quis deixar clara a construção dos planos, do roteiro, da encenação e a sensação de que a gente está construindo este filme junto deste universo. A gente não está colocando o cinema em um lugar discreto e do mero registro, de um lugar de apequenamento perante a força da realidade. 

Este filme começou como um média-metragem e só depois se transformou em um longa. Eu queria saber se o que aumentou esta duração da produção foi o prólogo protagonizado pelo garoto e o irmão pequeno.

JD: O que acontece aqui é que nosso processo de criação do filme é um pouco conturbado - e para nós isso faz parte, não falo como demérito e sim como método, cada diretor vai trabalhar com um método específico que ele acredita que é mais viável para chegar onde ele quer. E no nosso caso o nosso método é meio bagunçado mesmo, a gente faz testes, experimenta ver se acontece e aí vai construindo as coisas a partir do que a gente tá vendo. A gente não consegue sentar em um escritório em Belo Horizonte e escrever uma história, fazer um casting de atores e colocar tudo na tela imediatamente. Essa não é a nossa onda, a nossa onda passa um pouco por experimentar nesses diferentes processos. 

Em 2014 a gente filmou a primeira parte da história que era de fato o primeiro momento da história, mas já existia ali a figura do protagonista. Na verdade o Juninho estava preso na época em que a gente realizou essa primeira parte, então um outro ator teve que fazer o papel. Mas existia sim aquela cena do menino encontrando o caderno, só que isso não tinha nesse média-metragem a dimensão que a história do Cristiano tem, ele encontrava uma carta muito longa que tomava quase metade do filme. Só que a gente descobriu ao longo do processo que a força maior do filme na verdade estava ali naquela carta, e aí a gente resolveu abrir essa carta e transformá-la numa coisa gigantesca e com teor de uma novela literária.

Então o filme começou na perspectiva do garoto e só depois se expandiu para o Cristiano? Que curioso.

AU: Sim. Na verdade a gente tinha esse personagem do Cristiano pouco desenvolvido e o nosso principal problema em parte era porque o Juninho estava preso porque a gente queria escrever para ele, só que a gente não tinha como. E aí a gente arriscou fazer um teste com outro ator porque a gente não sabia quando que ele ia ser solto.

Ele foi preso por que?

AU: Ele foi preso por um furto, era um momento muito difícil da vida dele, que foi no final do A Vizinhança do Tigre. Era um momento em que ele estava muito deprimido, muito mal mesmo. E a força com a qual ele superou esta fase, da maneira como ele aguentou ficar preso um ano e meio, ficar esse período todo afastado e achando que perdeu as oportunidades oferecidas é um sinal do quanto a gente se inspira nele. Esse cara sai disso, se recupera e se reinventa completamente.

JD: Ele saiu três dias antes das filmagens começarem. A gente decidiu adiar o filme em quatro dias e ele virou pra nós dois e disse “Não, eu tô pronto. Pode ir, podemos começar a filmar.”. Isso depois de um ano na prisão!

Falando no Aristides, eu preciso perguntar sobre aquele monólogo que ele entrega no final do filme. Da onde veio a ideia daquela cena e como ela foi gerada na produção?

AU: É muito engraçado, a gente filmou o filme em um espaço de tempo de três anos. Filmamos uma etapa em 2014, que foi centrada nesta primeira porção do filme, depois filmamos uma grande parte do caderno em 2015 e a gente só filmou o final em 2016, quando já tínhamos começado a montagem do longa.

JD: A gente já tinha um primeiro corte, aí fomos filmar na fábrica.

AU: Exato. Foi durante a montagem que a gente conseguiu a ideia desse final e a gente foi filmar ele, filmar aquela fábrica em busca daquela cena. Mas quando a gente começa a montar um filme a gente não tem final. 

JD: É, nós só escrevemos o off depois que a fábrica estava filmada. 

AU: Esta ideia deste final só surgiu durante a montagem, a gente filmou essas imagens depois de ter o filme pronto. E só fomos escrever o texto mesmo depois de já ter tudo praticamente montado, de já conseguir entender um ritmo e já ter gravado um monte de off antes.

Eu acho fascinante o desencanto que vocês refletem, ele traz embutido uma forte posição política. E isso é algo que venho percebendo em outros em discussões sobre o filme.

AU: A gente tem uma certa inspiração que acho muito bonita e que vale a pena contar. Tem um poema do italiano Cesare Pavese chamado Disciplina cujos últimos versos dizem exatamente o que dizemos no fim. É algo como “a fábrica nos deixa levantar a cabeça e olhar a cidade, mas sabendo que logo após abaixaremos”. Então o que queríamos com este final é se interrogar se este sujeito não volta a cabeça pra baixo, se ele não levanta a cabeça e ele olha o outro, olha a variedade do mundo na frente dele. E se ele não voltar para o trabalho, se convencer de que precisa voltar? Era um pouco desta pergunta que a gente queria refletir ali. E na verdade esse cenário é uma utopia, porque todo mundo volta a cabeça para baixo de novo, porque a urgência e a necessidade do trabalho se impõe. Mas vamos tentar pensar esse momento quase utópico e ver o trabalhador refletindo sobre o próprio trabalho e sobre si mesmo naquele momento. Acho que esta é a nossa inspiração final, no fim de tudo.