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sábado, 26 de novembro de 2016

Crítica: A Chegada

Villeneuve aposta no emocional em ficção-científica intimista.

Por Pedro Strazza.

É muito por causa do gênero ao qual ambas as produções se inserem, mas é inevitável comparar A Chegada - o novo longa do canadense Denis Villeneuve - com o Interestelar de Christopher Nolan. Os dois filmes, afinal, são a primeira incursão pela ficção-científica de dois cineastas acostumados com a materialidade da realidade (Os Suspeitos, Incêndios, a trilogia O Cavaleiro das Trevas) e as tramas labirínticas dos dilemas psicológicos (O Homem Duplicado, A Origem), que usam tramas aparentemente complexas para disfarçar estruturas lúdicas bastante simples. Villeneuve e Nolan são diretores apreciados pelo público e a crítica por saberem transitar muito bem entre esferas de narrativa básicas e intrincadas, mas também coletam posições contrárias às suas obras por não mostrarem o mesmo talento na hora de trabalhar o lado emocional da coisa.

O curioso é que é justo na ficção-científica - gênero habituado a trabalhar as emoções humanas da forma mais racional possível - que os dois vejam seu cinema entrar em um ponto semelhante de crise. Pois o foco inesperado que ambos os diretores dão a uma trama sentimental e na maneira como eles optam por trabalhar seus temas a partir desta base, tanto em seus erros quanto em seus acertos, é a maior semelhança que os dois trabalhos compartilham.

Escrito por Eric Heisserer, o filme acompanha a chegada de doze espaçonaves alienígenas a diversos pontos da Terra e as reações de diversos governos e indivíduos frente a este evento extraordinário. A protagonista da história é a doutora Louise Banks (Amy Adams), linguista que é chamada pelos militares estadunidenses para junto do físico Ian Donnelly (Jeremy Renner) tentar decifrar a linguagem e se comunicar com os alienígenas que habitam o estranho casulo localizado na região central do país. Quanto mais eles demoram para quebrar o código, porém, mais tensas ficam as relações entre as nações sobre a questão.

Não convém aqui dissecar a estrutura do longa e o formato ao qual a narrativa aos poucos adquire porque a grande surpresa da obra está justo nestas, mas é válido dizer que como ficção-científica A Chegada é um bom drama intimista. O arco de luto ao qual a personagem de Adams é submetida é o maior ponto de interesse do diretor no filme, com o resto da produção dedicado a alimentar e avançar no desenvolvimento de suas angústias.

Essa afirmação, entretanto, soa quase paradoxal ao gênero, que prescinde os conflitos interiores do indivíduo não para torná-los ainda mais interiorizados, mas sim de extrapolá-los ao campo do dilema existencial coletivo. É aí que Villeneuve se aproxima de Nolan: assim como Interestelar, A Chegada tem em mãos uma trama de relações ao qual busca firmar na ficção-científica, mas não exatamente almeja usá-la a seu favor, relegando-a no processo à função de um mecanismo que movimenta a história. Se a odisseia espacial de Matthew McConaughey aproveitava o lado racional apenas para chegar a um propósito fantasioso que não compreendia o lado lógico (é bom recordar, toda a situação no buraco negro se apoia no sentimentalismo barato), a história de Banks flerta a todo instante com o cenário político e o mistério em cima dos alienígenas para no fim somente usá-los para mover a trama. À obra só interessa mesmo a parte interior, a emoção em seu estado mais primário.

É um viés que se percebe aos poucos no roteiro, mas que ocorre justo nos momentos onde o longa mais tem chances de decolar e não o faz. Cenas como do clímax ou do primeiro encontro de Banks e Donnelly com os extraterrestres - a narrativa vai em uma escalada para privilegiar essa situação e no fim a suprime sem grandes retornos, algo infelizmente repetido em todos os momentos de contato da dupla com os aliens - e elementos como discursos políticos e últimas palavras antes da morte - usados mais para alimentar alguma tensão ocasional - servem como reforço da dedicação exclusiva do filme com a situação emocional de sua protagonista, que nunca chega a ser extravasada ou contamina o ambiente ao seu redor.

E esse sentimentalismo, no fim, também é usado por Villeneuve como artifício. Pois A Chegada, afinal, também é mais um filme do diretor em que a trama é mero dispositivo lúdico e onde a reviravolta é a grande arma para arrebatar o espectador. Mas se em outros trabalhos essa estrutura tinha uma justificativa (mesmo Sicario conseguia encaixar isso em seus sets de suspense), aqui ela apenas esvazia a proposta da história e torna seu lado emocional mais brega - um fim curiosamente parecido com o da ficção-científica de Nolan.

Nota: 5/10

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Crítica: Animais Fantásticos e Onde Habitam

Apesar das boas intenções, derivado não encontra unidade entre narrativas.

Por Pedro Strazza.

Os filmes da franquia Harry Potter sempre funcionaram em um meio-termo estranho entre a grandiloquência e o drama particular, trabalhando a partir de histórias simples de colegial, crescimento e descobrimento do mundo cenários de grandiosos conflitos cujo formato se enquadraria melhor ao épico. Essa dicotomia de realidades - que atendia às necessidades do desenvolvimento do jovem protagonista e sua entrada no universo mágico sem deixar de lado sua jornada para se tornar "o escolhido" - no fundo foi a grande responsável por tornar a série tão bem sucedida nos cinemas, virando uma fórmula que agora busca ser reproduzida em seu derivado Animais Fantásticos e Onde Habitam.

Pois mesmo que se localize em um momento histórico diferente e almeje outras questões, o filme dirigido por David Yates - que retorna à franquia depois de dirigir os últimos quatro capítulos - é uma grande tentativa de refazer essa estrutura em outros termos. A grande mudança proposta aqui pelo diretor e o roteiro de J.K. Rowling, autora dos livros da série, passa por uma troca de gêneros no núcleo mais íntimo: sai o drama adolescente refletida no coming of age, entra a temática mais adulta do preconceito, encarnado no clima de enfrentamento entre trouxas e bruxos nos Estados Unidos dos anos 20 que encontra seu ponto de crise quando o pesquisador inglês Newt Scamander (Eddie Redmayne) chega ao país e deixa escapar de sua mala diversas criaturas mágicas proibidas pelo governo.

É dessa busca de Scamander por seus animais que Rowling e Yates então refazem a narrativa conhecida da série, enquadrando-a na trama de um estrangeiro perdido em um lugar desconhecido. A ideia parte do princípio simples da rápida conexão com o protagonista, que de início funciona em seus intentos - como Newt, o espectador não sabe como é o lugar onde se passa a história, e conforme ele é introduzido a este a falta de conhecimento do público se transforma em fascínio - mas aos poucos revela o quão inconsistente essa transfiguração  da estrutura da história se faz. Se nas aventuras anteriores a atribuição profética dada a Harry dava sentido a maiores inserções suas nos grandes acontecimentos do mundo bruxo, Scamander não poderia estar mais deslocado dos eventos ao seu redor, que envolvem desde grupos contra bruxos a magos terroristas.

Esse descompasso entre o que se passa com o protagonista e o cenário histórico habitado gera fraturas sensíveis na trama, que incapaz de conciliar as duas partes apela para ajustes e aumentos de ritmos na sequência de acontecimentos quando precisa realizar tais intersecções. O resultado é um filme desconjuntado, que almeja simultaneamente a alegoria social (os segundo salemistas, o arco do personagem de Ezra Miller, os simpáticos papéis de Dan Fogler e Alison Sudol), a mensagem ecológica (a busca pelas belas criaturas de CGI) e o drama de personagens (a referência ao relacionamento de Newt com a família Lestrange, situação deixada em aberto no longa) sem nunca conseguir de fato uni-los sob um mesmo objetivo. A impressão é que Rowling aqui escreve mais um de seus livros sobre o mundo bruxo sem antes adaptá-lo ao formato de um roteiro: existem tramas cuja relação com o filme soam muito periféricas (o núcleo liderado por Jon Voight, por exemplo) e mistérios com soluções escancaradas pelo visual dos elementos de cena.

Isso não impede a escritora, porém, de fazer bem aquilo que já provou no passado ser mestre. Embora a dissonância na narrativa imobilize a produção e a torne arrastada, Rowling concebe personagens carismáticos e um mundo bastante atrativo, ao qual Yates a trancos e barrancos preserva (ou, sob o viés da repetição, tenta emular o possível das obras de Chris Columbus na série) o senso de descoberta e maravilhamento com seu funcionamento. A franquia, afinal, também vive desse encantamento, e a produção mantém erguido este alicerce pela maleta de seu protagonista e nas criaturas e suas aplicações que são apresentadas por ele às irmãs Tina (Katherine Waterston) e Queenie (Sudol) e o trouxa Kowalski (Fogler).

O deslumbramento com esses animais e até mesmo com a Nova York dos anos 20, entretanto, é um efeito passageiro. Por mais que busque tornar o encanto com o visual seu item central, Yates não consegue esconder o filme difuso que faz, cujas ambições a todo instante são frustradas pela inexistência de uma falta de escalada e concentração. Se o mundo bruxo de Animais Fantásticos e Onde Habitam provoca fascínio a primeira vista, por baixo dos cenários e seres belos parece existir um vazio sem rumo e de boas intenções desperdiçadas.

Nota: 5/10

domingo, 13 de novembro de 2016

Crítica: Pequeno Segredo

Representante brasileiro no Oscar 2017 é relato pessoal que busca a distância do impessoal.

Por Pedro Strazza.

Há muito de um propósito pessoal que reverbera por toda a estrutura de Pequeno Segredo, novo trabalho do diretor David Schurmann que se tornou centro das atenções na mídia após ser escolhido para representar o Brasil na disputa pelo Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2017. Pessoal não apenas porque o filme tem viés autobiográfico (ele é baseado em uma história de vida passada pela família de velejadores ao qual o cineasta pertence), mas também por causa da própria proposta da produção, que no fundo se faz como um drama de relações familiares cujos conflitos surgem e permanecem dentro de quatro paredes.

Essa necessidade de contenção nunca chega a ser uma temática, mas aos poucos se faz como uma regra involuntária da narrativa do longa, cuja premissa surge da promessa de intercalar duas tramas aparentemente sem qualquer relação. De um lado, a história de amor do neozelandês Robert (Erroll Shand) com a brasileira Jeanne (Maria Flor) e da relação complicada do primeiro com a mãe, Barbara (Fionnula Flanagan); do outro, o cotidiano dos Schurmann nos dias em que a filha caçula Kat (Mariana V. Goulart) volta à escola e entra na puberdade.

De certa forma, Pequeno Segredo sofre de um conflito eterno entre essas duas partes, ainda que não de forma direta. Mesmo que concilie as duas narrativas sem mostrar maiores problemas, Schurmann mostra-se ineficiente para mesclar o relato familiar com a dramatização, confundindo as necessidades do roteiro (escrito junto a Victor Atherino e Marcos Bernstein) com as suas de manter o respeito pelas pessoas retratadas.

O resultado é um filme de drama que a todo instante quer evitar o drama, restringindo-o à quatro paredes distantes das quais o espectador está inserido. É um paradoxo que nunca deixa de ser interessante: Quando a produção parece almejar algum conflito maior entre seus personagens, ele logo a dissipa e já pula para a situação seguinte como se nada tivesse acontecido. Ainda que existam cenas pesadas na história (incluindo aí um acidente de carro e o pequeno segredo do título), o longa insiste na sublimação e na permanência de uma realidade onírica, algo que por sua vez torna incoerente várias passagens da trama - o principal talvez seja o motivo da inclusão da personagem de Flanagan, cuja participação é das mais periféricas.

Porque no fundo Pequeno Segredo é um filme que insiste por buscar a serenidade do sonho em todos os momentos, evitando quaisquer nuvens negras formadas no horizonte. Se Barbara é feita de vilã, é porque os eventos que aconteceram em sua vida a levaram ao isolamento, e isso pode ser reparado; se Robert decide voltar para casa sem Jeanne e ao se arrepender ele volta somente para testemunhar uma tragédia, essa crise no relacionamento é logo resolvida; se Kat tem os problemas típicos da puberdade, eles também passam sem produzir qualquer cicatriz. E se a terra é um lar de dificuldades e conflitos, o mar está logo ali para trazer paz à alma de qualquer pessoa.

O longa então torna-se em uma cornucópia tola, que pressupõe todos os problemas com solução já definida mas não necessariamente precisando ser mostrada, como uma grande saudação a um pôr do sol inacabável. É claro que Schurmann toma esse relato (do qual nunca se envolve junto do irmão, os dois passando a história inteira sem rosto ou fala) como uma forma de homenagear a irmã falecida sem de fato envolver-se em questões mais profundas acerca de sua família, mas a justificativa para tanto nunca se apresenta de fato. Se há uma grande incongruência em Pequeno Segredo, é essa imposição de um trabalho pessoal que no final acaba por ser tornar o mais impessoal e distante possível dos eventos apresentados.

Nota: 4/10

Crítica: Snowden - Herói ou Traidor

Oliver Stone busca em analista de sistemas uma figura de contenção, mas se perde no equilíbrio entre real e ficção.

Por Pedro Strazza.

No Brasil, a cinebiografia de Edward Snowden estrelada por Joseph Gordon-Levitt ganhou o bizarro subtítulo Herói ou Traidor, uma referência direta ao debate midiático sobre o ex-agente da CIA e da NSA ter sido correto ou não ao revelar para o mundo o fato dos Estados Unidos estar quebrando as leis de vigilância próprias e de outros países para satisfazer suas preocupações com segurança. Um adendo bizarro e bastante incoerente com o teor do filme dirigido por Oliver Stone, já que este não está interessado em debater o posicionamento de Snowden em relação ao governo estadunidense e sim de consagrá-lo como herói por seus feitos contra um sistema ameaçador.

Para isso que aconteça, Stone e seu parceiro no roteiro Kieran Fitzgerald aproveitam a oportunidade de recontar a trajetória do agente - desde seu início frustrado no exército militar do país até o presente, centralizando-se nos momentos anteriores à publicação do artigo escrito por Glenn Greenwald (Zachary Quinto) com suas declarações - para torná-lo em uma figura de contenção, primeiro à favor das intenções do governo e depois como uma maldição de fato. A dramatização da história aqui se aproxima muito de uma via crucis de informação, onde Snowden é submetido a constantes provas de resistência a cada volume de dados sigilosos que recebe em ordem de perceber até que ponto ele é capaz de guardar para si esse material sem que se autodestrua - algo melhor evidenciado nos altos e baixos de seu relacionamento com a namorada Lindsay (Shailene Woodley).

Esse processo de interiorização, que passa por verdadeiros testes de limite físico (graças ao histórico médico de epilepsia do protagonista) e psicológico, serve a Stone para distanciar Snowden de sua imagem midiática e aproximá-lo de um perfil mais humano, alimentando a jornada de herói concebida por ele ao analista de sistemas. No fundo, o diretor cria aqui mais uma de suas típicas narrativas sinergéticas, que concilia os dramas pessoais de Snowden (a falta de conexão com o mundo, o isolamento social por essência) com o período histórico de crise ideológica passado pelos Estados Unidos do governo Bush e Obama. Tanto que a decisão do protagonista por ir contra o sistema ocorre na produção no momento no qual a vigilância chega a seu próprio território, numa das únicas cenas do longa capaz de emular bem a sensação de Big Brother criada pelos aparatos da NSA.

Stone, porém, mostra-se tão preocupado em ratificar sua posição política na obra que sua proposta com o personagem acaba por perder força. O filme muitas vezes interrompe o fluxo narrativo para dar explicações verborrágicas e criar dilemas rasos sobre as questões que trata, perdendo o foco no personagem para ilustrar a situação política. Uma operação um tanto quanto canhestra, já que no fundo ela prejudica o equilíbrio entre o cenário individual e geral e torna Snowden um personagem sem rumo definido na história.

Essa falta de direção também ocorre porque a "dramatização" dita por Stone no início do filme aos poucos se revela uma novelização disfarçada de documentário. A verborragia dos diálogos, que vem como forma de informar e aumentar a paranoia do espectador sobre os fatos, não esconde a dificuldade do longa em estabelecer uma unidade entre as situações de choque entre os personagens, dando a sensação de que todas as cenas funcionam à base do impacto imediato. Nem mesmo o relacionamento de Snowden com Lindsay (aqui retratada como mero apoio emocional) escapa desse problema: em um momento, o protagonista, sentindo a pressão do trabalho e do excesso de vigilância, briga com a namorada por sua responsabilidade em protegê-la "da verdade"; no outro, essa tensão se dissipa, dá lugar a um caso de falta de confiança e ciúme que ele tem com ela sem qualquer motivo aparente.

No fim das contas, Snowden - Herói ou Traidor sofre com o dilema de unir realidade com a ficção, tirando de uma realidade pungente e atual um processo imagético que transforme uma figura pública em um personagem de fácil conexão. Quando ao final do filme Stone substitui um Gordon-Levitt de voz forçada pelo próprio Snowden, essa problemática do roteiro se acentua: se a cena vem para consagrar o retratado como herói e dar peso "real" à história, ela apenas soa como uma cartada final desesperada, que ressalta a falta de recursos do diretor em dar conta do processo ao qual se submete.

Nota: 4/10

sábado, 5 de novembro de 2016

Crítica: Doutor Estranho

Filme segue a cartilha do estúdio, mas encontra bom equilíbrio entre humor e drama. 

Por Pedro Strazza.

Lidar com a estrutura já tradicional e imposta pela Marvel Studios é um peso que toda produção do estúdio precisa carregar, e no caso de Doutor Estranho essa regra prevalece. O longa centrado na figura de Stephen Strange (Benedict Cumberbatch) é mais um a contar uma história de origem de um personagem egoísta que é introduzido a um mundo novo e precisa enfrentar um mal antigo para salvar o dia e ficar com a garota, tudo isso dentro de uma história que apesar de bastante séria é desarmada constantemente pelo humor.

Mas se em outras ocasiões essa adesão à fórmula só se provou prejudicial, tornando as obras um tanto quanto esquecíveis - dos últimos trabalhos do estúdio talvez só se salvem Homem-Formiga e Guardiões da Galáxia -, no filme dirigido por Scott Derrickson ela acaba por provocar o resultado contrário. Ainda que permaneça refém da pasteurização no processo, Doutor Estranho consegue se sobressair de outras produções da Marvel Studios por possuir alguma consciência das limitações que apresenta ao realizar tal movimento e de, mais importante, atuar no sentido de tentar reparar alguns dos problemas conhecidos  da estrutura dentro desta cerca ao qual se insere.

Esta tendência se percebe aos poucos na trama escrita por Derrickson, C. Robert Cargill e Jon Spaihts, que segue Strange a partir do fim de sua carreira como brilhante neurocirugião após um trágico acidente de carro e acompanha seu treinamento no Kamar-Taj sob a tutela da Anciã (Tilda Swinton), Mordo (Chiwetel Ejiofor) e Wong (Benedict Wong). O teor mais "adulto" do roteiro anuncia um filme pautado na temática da morte e nas formas de se lidar com o inevitável fim, algo que o longa constantemente busca equilibrar com o clima despretensioso e bem humorado que se vê obrigado a possuir.

E por mais artificial que essa combinação soe a princípio, ela funciona. Não apenas porque a produção carrega dentro de si uma influência escancarada pelo cartunesco, digno das insanidades visuais e cômicas de desenhos animados - o visual dos múltiplos universos apresentados e, principalmente, o Manto da Levitação, que em seu efeito de humor lembra o tapete do Aladdin das animações da Disney -, Doutor Estranho demonstra ter uma noção muito boa dos momentos em que precisa desenvolver o drama e a comédia. É um equilíbrio muito sensível e muitas vezes beira ao colapso - depois de uma tragédia no início do terceiro ato a tentativa de suavizar o trauma é muito equivocada -, mas Derrickson concebe uma narrativa capaz de manter uma uniformidade saudável entre as duas partes, algo que se prova cada vez mais raro dentro dos longas da Marvel.

Há outros elementos que também passam por essa reforma, principalmente na questão de figuras tradicionais dos filmes do estúdio - o vilão Kaecilius (Mads Mikkelsen) mostra-se um personagem mais funcional que outros antagonistas por alimentar as questões de mortalidade presentes na trama, enquanto a doutora Christine Palmer (Rachel McAdams) é um interesse amoroso menos figurante -, mas a obra se sacrifica nesses momentos por estar preso ao já testado e por apostar no garantido. Aonde ela se destaca é no campo visual de seus clímaxes, onde a Marvel teima em deixar a ação no campo do real e no qual a produção tem espaço para ser criativo. Derrickson a todo instante cria maneiras divertidas de deixar aflorar o lado mágico do filme, inventando espaços de combate que se diferenciam uns dos outros e sempre fascinam o espectador - e o clímax final é o que mais se destaca por aproveitar de vez o viés de videogame da obra.

Doutor Estranho talvez soe como uma decepção para quem busca do longa um compromisso da Marvel com histórias mais sérias, muito porque a empresa agora embala uma sequência de tramas mais dramáticas e apocalípticas (Thor Ragnarok, Pantera Negra e a chegada de Thanos na franquia Vingadores) em compasso com outras de puro descompromisso (os novos Homem-Aranha e Guardiões da Galáxia). Não foi aqui que o "jeito Marvel de ser" mudou de fato, mas por trabalhar no intuito de tornar mais orgânica a estrutura consagrada e trazer peso a esta sem esquecer o que a torna tão especial Derrickson já proporciona algo de diferente nesse pequeno, fechado e repetitivo modo de produção.

Nota: 7/10

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Entrevista: Joel Saracho (Canção para um Doloroso Mistério)

Ator discute os desafios e a complexidade de se fazer um filme de oito horas.

Por Pedro Strazza.

Novo filme do filipino Lav Diaz, Canção para um Doloroso Mistério vem chamando a atenção do público desde que estreou e ganhou o prêmio Alfred Bauer no festival de Berlim desse ano, mas muito por causa de sua duração. São pouco mais de oito horas de duração, que acompanham primordialmente a jornada de personagens em busca do corpo de Andrés Bonifácio, um dos principais líderes da Revolução Filipina e cujo túmulo permanece perdido até hoje.

Em São Paulo para divulgar o filme, que teve duas sessões na 40° Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o ator Joel Saracho - que faz Karyo, no longa o único homem do grupo de busca comandado pela esposa de Bonifácio, Gregoria de Jesus (Hazel Orencio) - concedeu uma entrevista ao O Nerd Contra-Ataca, dando detalhes sobre como é trabalhar nas filmagens de um projeto tão grande e discutindo o conteúdo do filme, que combina elementos históricos, mitológicos e mesmo da literatura filipina. Confira a transcrição do bate-papo abaixo:
Joel Saracho
Como é trabalhar num projeto com uma duração tão grande? Qual é a diferença em relação à experiência de trabalhar com um filme de noventa minutos?

Deixe me contar primeiro o processo do nosso diretor. Quando ele [Lav Diaz] me convidou para trabalhar no filme, nós apenas conversamos sobre o perfil do personagem que eu interpretaria: um senhor de idade que se junta a esse grupo de mulheres na busca por um corpo. “Você irá procurar e morrer em determinado momento do filme”, era isso que eu sabia. Nós nunca tivemos a chance de ler o roteiro inteiro e final, eu só li o primeiro rascunho há cerca de 17 anos, que era bastante diferente do que foi filmado. Então todo dia você recebia no set uma folha de papel com as cenas que iam ser filmadas e os diálogos que tinha que dizer. Então eu pensava: “como vou fazer isso?”. Há um monte de cenas que são só sobre os personagens andando na floresta, então eu tinha que perguntar pro diretor coisas como há quanto tempo estávamos andando para mudar meus trejeitos, a forma de andar e mesmo a tosse, que eu tinha de intensificar aos poucos. Diferente de outros diretores, que diriam como mexer sua cabeça, quando olhar e mover suas mãos, Lav te mostra o plano e te diz “Este é seu espaço, você pode atuar aqui, daqui pra ali. Considere esse seu quadro e ‘pinte’ sua própria cena”. É realmente um grande desafio para atores. Você tem que focar no que você fez, no que você fará, daonde a cena vem e para onde ela irá. É divertido, mas também difícil.

Quanto tempo durou as filmagens? Qual foi seu maior desafio durante essas filmagens?

Você talvez não acredite nisso, mas as filmagens duraram apenas 24 dias. Nós concentramos as filmagens primeiro na parte sul das Filipinas. Ficamos lá por 21 dias e depois fomos para outra parte do país para filmar por outros três dias as cenas que ficamos sentados nas casas. A parte mais difícil foi de achar os fundos para custear o filme, mas depois disso tudo fluiu muito bem. Não sei quanto isso dá em dólares, mas o filme custa algo em torno de 12 milhões de pesos, o que é muito pouco.

Esse não é seu primeiro filme que você trabalha com Lav Diaz, você fez anteriormente um filme de cinco horas e meia chamado Do Que Vem Antes. Como ele trabalhou com você o personagem? Houve uma grande diferença na relação que você teve com o diretor de um filme para outro?

Não foi muito diferente. Deixe-me contar primeiro como é a rotina do Lav no set: Ele acorda às 3 da manhã, toca seu violão e mais tarde escreve seus roteiros para o dia, baseado no que ele escreveu inicialmente. Todo a produção acorda, toma o café-da-manhã, o assistente do diretor passa aos atores o roteiro do dia. Aí você está no set, ele fala pra você “você vem dali e vai pra lá, esse é seu enquadramento, você se pinta nele”. O problema é que ele gosta de fazer planos longos, então você tem que memorizar bem suas falas. Se você comete um erro você tem que refazer tudo desde o início. Você discute seu personagem com ele, mas ele não deixa muito implícito como você deve “atacar” o personagem, ele assume que você saiba. Em Canção você tem esses dois atores que fazem Isagani e Simoun, os dois revolucionários filipinos, que são atores muito populares no país. No primeiro dia de filmagens com os dois, eu nunca me senti tão estúpido na minha vida. Sabe, eles não estão acostumados ao modo de trabalho de Lav. Em filmes comerciais, o diretor te fala exatamente como fazer a cena; no cinema de Lav ele te dá o quadro e você se insere nele, e isso é uma experiência muito diferente pro ator. Como é um plano longo, chega um ponto em que você não sabe mais o que fazer, então algo orgânico só surge se você internalizar e entender a cena e seu personagem.

O seu personagem passa grande parte do filme com um grupo de quatro mulheres. Considerando o processo que vivemos hoje no cinema mais mainstream, em que a figura e o papel da mulher nesses filmes está mudando drasticamente, você chegou a considerar essa relação com essas mulheres na hora de trabalhar seu papel?

Não exatamente. Acredito que o cerne do personagem era de servir a Revolução. Ele queria se juntar à revolução, mas teve sua participação negada porque estava doente, tinha tuberculose. Mas ele queria participar da luta, então quando ele descobre que Gregoria de Jesus está atrás do corpo de Bonifácio, seu marido, acredito que ele toma como missão ajudá-la nessa tarefa para auxiliar a revolução, pelo menos até seu encontro com o tikbalang, um ser mitológico das Filipinas que diz ter a poção que pode curá-lo de seu mal. Então em termos de objetivo do personagem foi bastante claro o que ele queria, ele queria ajudar Gregória de Jesus em sua procura, e isso é a parte mais importante até o momento que ele quer ir embora.

Canção Para um Doloroso Mistério trabalha com elementos de religião cristã, como padres, cruzes e até uma Virgem Maria, mas também com um lado mais místico, a exemplo das criaturas mágicas e as brumas da floresta. Qual sua opinião sobre essa relação no filme?

Eu fiz exatamente esta pergunta para Lav no set. Nós temos três camadas no filme: Temos o lado histórico, que trata da procura pelo corpo de Andrés Bonifácio e é baseada em fatos; os dois revolucionários, que são personagens literários do livro de Doutor José Rizal; e o mito, que são as criaturas mitológicas que acompanham o tikbalang, uma criatura mitológica da cultura filipina que te desvia do caminho. Eu perguntei pro Lav como essas camadas iam se encontrar, e ele respondeu que elas iriam se encontrar na floresta. Na época eu não entendi. Depois tivemos aquela cena do grande jantar celebrada pelo culto, que mostra eles festejando, e essa é a única parte do filme que todos os personagens se encontram. Foi depois dela, quando fui descansar, que me dei conta que “Ah sim, é uma floresta da mente, tudo pode acontecer!”.

Então basicamente são os pensamentos, a consciência de Lav, sua mente pensante que possibilita que esses elementos possam se encontrar, porque a totalidade disso é o que faz o filipino. Literatura, História e mitologia estão incutidos no povo. É a grande consciência, os personagens mitológicos são simbólicos da religião, do mito, e eles podem te levar para a redenção ou te desviar do caminho. Me fascina como ele conseguiu pensar tudo isso para fazer o filme. Tem uma cena que o grupo que está à procura do corpo e as criaturas andam em volta de uma árvore. É muito teatral e representa como eles se perdem na floresta. Essa cena depois é incrível, mas na hora de filmar me soou muito estúpida. Eu me perguntava “O que nós estamos fazendo? O que é isso?” e tudo que podia fazer nessa hora era confiar no diretor.

De fato essa combinação de elementos faz muito sentido dentro do filme.

É, ela é incrível. Inclusive antes do filme ser terminado nós tínhamos medo de que o público não fosse entender como esse três elementos funcionam juntos. Foi somente quando o filme ficou pronto que a equipe falou “É, isso realmente funciona!”.

O mais interessante disso é que, quando o filme foi lançado nas Filipinas, depois da passagem do filme por Berlim, a produção ficou preocupada que o público não iria curtir essa complexidade e aguentar o tamanho do filme, abandonando-o na terceira hora. Surpreendentemente, o público no fim de semana da estreia ficou até o fim da projeção e aplaudiu! Então o filme funciona, e isso que é o mais importante.

O filme é muito sobre arrependimento e perdão. Há o homem que acompanha Isagani (Simoun) e uma mulher no grupo que de formas distintas traem a revolução e acabam com ela... mas tudo isso ocorre em um espectro regional, da realidade histórica filipina. Como então passar o filme desse caráter local para um mais universal, como fazer o público estrangeiro sentir o impacto do longa?

Eu acredito que a beleza do filme é que o diretor não tenta impor uma lógica de que “é assim que o mundo funciona, é assim que as coisas são”. Ele só fala que isso que é o que está acontecendo com o povo filipino, isso é o que temos, isso é o que fazemos e é assim que nós atuamos nessa situação particular. Essa particularidade ressoa para outras realidades porque é muito específica e real, então você enxerga a realidade de seu país de origem ali, a própria luta de seu povo. Não sei se isso faz sentido, mas é assim que eu encaro o filme. É sua particularidade temporal e espacial que o torna tão universal. Quando o filme estreou em Manilla as reações não foram unânimes: Teve quem gostou e quem não gostou. Mas o fato delas terem permanecido por oito horas no cinema e na maneira como o filme virou alvo de discussão em outros ambientes... nesse sentido Lav e o filme foram muito bem sucedidos.

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Crítica: Animais Noturnos

Pautado pelo estilo, Tom Ford trabalha história maternal em universo machista.

Por Pedro Strazza.

Assim como Garota Exemplar e as aventuras protagonizadas por Robert Langdon, Animais Noturnos parte da missão difícil de adaptar para as telas um livro que tem no gênero do suspense sua maior e talvez única ferramenta. Baseado em um livro best-seller escrito por Austin Wright, o filme dirigido por Tom Ford tem em mãos uma história pura de relações, ao qual precisa injetar algo a mais para fazer funcionar no cinema o que parece ter funcionado na literatura.

É por essa questão que o diretor então opta por um filme de estilo, capaz de aprimorar seu cinema e ao mesmo tempo dar sustentação à trama pelo visual. O longa conta a história de Susan (Amy Adams), administradora de uma famosa galeria de arte que certo dia recebe pelo correio o manuscrito do novo livro de seu ex-marido, Tony (Jake Gyllenhaal). Com seu novo cônjuge (Armie Hammer) viajando a trabalho e sozinha em casa, ela começa a ler o texto, que trata de uma história horripilante envolvendo uma família de férias na estrada e os tormentos passados pelo pai (também Gyllenhaal), algo que logo a faz se envolver profundamente.

Daí em diante, Ford passa a alternar entre as duas histórias, intercalando-as afim de revelar tanto o trágico fim do livro que Susan lê quanto seu passado com Tony e suas atuais aflições. Esse exercício de montagem até certo ponto entretém, ainda que soe muito forçado pela própria incompatibilidade de tensão entre as duas partes. Se na realidade a protagonista está inserida em o que parece ser um thriller psicológico, os caminhos tomados na obra que lê estão ligados a um faroeste de vingança de ambientação contemporânea, algo bastante claro na figura de xerife interpretado por Michael Shannon.

Os problemas de Animais Noturnos surgem, porém, a partir do momento que o diretor tem de tratar do conteúdo presente no roteiro - que por si só está ligado a disfunções graves - e nas formas que encontra para materializar este na tela, a começar pela própria protagonista e o arco que percorre. Retratada como típica mulher frígida pela paleta de cores frias, a personagem de Adams vive dramas de quem está inserido num universo machista, mas Ford não compreende isso e transforma tudo em um filme de culpa e maternidade centrado na figura de Susan e sua relação com o marido.

A partir daí é ladeira abaixo. Conforme o seu passado é revivido, a protagonista aos poucos perde a pose de poder que possui e se torna subserviente ao sofrimento por não atender demandas masculinas - as revelações envolvendo seus dois maridos funcionam neste sistema -, ao passo que o ex-marido possui uma trajetória de mais pura reafirmação de sua virilidade pelo “eu” alegórico criado no livro, ressaltado no longa pelo papel duplo desempenhado por Gyllenhaal. É o típico filme de machismos subjetivos, que presume a mulher em um papel de drama íntimo e ligado à reprodução e o homem em uma jornada de provação.

Isso não quer dizer que Animais Noturnos não tenha seus momentos, mas quase todos provém de um ridículo não planejado. Dos acessos de gritos do overacting de Gyllenhaal – que só fica mais evidente (e engraçado) quando posto ao lado da atuação controlada de Shannon e da caricata de Aaron Taylor-Johnson – a mesmo as tentativas de alinhamento entre as duas narrativas, Ford não consegue evitar de fazer um filme de exageros involuntariamente cômico, que ridicularizam até mesmo os caminhos tomados pela história conforme ela se mostra numa trama sobre um “oi sumida” com plot twist. A grande dúvida é se o diretor está ciente ou não desse lado do roteiro.

Nota: 3/10

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Crítica: A Garota Desconhecida

Irmãos Dardenne usam suspense para esticar mais uma história sobre comunidades.

Por Pedro Strazza.

Diretores que são conhecidos por trabalhar o cotidiano em seus filmes e donos de um cinema mais cru na abordagem, os irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne vem mantendo em seus últimos trabalhos um foco maior sobre populações mais regionalistas, imbuídas de um senso comunitário forte. A Garota Desconhecida não foge a essa regra, mas como nos filmes anteriores da dupla ele trabalha esse senso de “cuidar um do outro” à base da desconstrução.

Na trama, acompanhamos uma jovem médica (Adèle Haenel) que trabalha numa pequena clínica, mas aspira chegar ao setor privado – e portanto mais rico – da profissão. Certa noite, após brigar com o estagiário e na pressa para chegar a uma festa do novo emprego, ela recusa um paciente por ter chegado uma hora depois do fim de seu expediente, mas no dia seguinte descobre que a pessoa, uma garota sem identificação, foi encontrada morta pouco depois de bater à sua porta. Sentindo-se culpada pelo fato, ela então parte numa busca para saber quem é a mulher ao qual recusou acolhimento e tratamento.

Os Dardenne aqui flertam bastante com elementos dos suspenses hitchcockianos, trabalhando em seus planos longos a tensão de uma história cuja investigação central é um macguffin clássico, situado em um mundo comum de pessoas comuns. Não interessa aos irmãos saber o que de fato aconteceu com a menina morta, mas sim as relações que a protagonista tem com a comunidade ao qual se insere enquanto procura saber a verdade.

É nesse momento que A Garota Desconhecida encontra muitas semelhanças com o filme anterior dos diretores, o épico cotidiano Dois Dias, Uma Noite estrelado por Marion Cottilard. Além de ambos serem protagonizados por mulheres, os dois longas no fundo se estabelecem dentro de um campo de evidenciação da falsidade das relações comunitárias, de forma a revelar o quão egoístas as pessoas presentes nesse âmbito podem se revelar em momentos de crise. 

A diferença é que enquanto o último realiza esse processo por uma situação de mais puro enfrentamento - a personagem de Cottilard tem de ir de em porta em porta perguntar aos colegas de trabalho se irão ajudá-la a manter o emprego ou ficar com o bônus do salário – este novo trabalho diagnostica o fracasso dessas relações por uma narrativa de trajetórias opostas. Se a médica sai de uma situação de egoísmo puro para encontrar sua real vocação auxiliando os outros, estes últimos mostram-se mais dispostos a manter a privacidade de suas vidas que de ajudar a médica a encontrar um nome para a garota do título. O suspense injetado pelos Dardenne potencializa esse clima cai-não-cai, ainda que não seja lidado com o maior dos interesses pelos irmãos.

Esse cenário desenhado pelos diretores não esconde também algumas das precariedades do roteiro. Não apenas pela resolução simples e um pouco preguiçosa (soa como se as ações da protagonista não importassem no fim das contas), o longa deixa a impressão inicial de ser um curta esticado em mais dois atos, já que seu primeiro terço se resolve por si só. É como se os Dardenne tivessem resolvido fazer um filme mais pautado pelo gênero – algo atípico em suas carreiras – apenas para dar ao projeto mais tempo para desenvolver suas questões, algo que se por um lado se prova uma ótima decisão (o mistério intriga e o suspense é bem construído) também revela a linha tênue em que a produção se equilibra.

Nota: 7/10

Crítica: Cameraperson

Filme de contradições encontra no lado humano a resposta para suas questões envolvendo a imagem.

Por Pedro Strazza.

Em um dos momentos finais de Cameraperson, a diretora Kirsten Johnson retorna a um dos locais de gravações de um dos documentários que trabalhou com o propósito de mostrar a uma família que fotografou cinco anos antes o resultado final do projeto. Depois de exibidas as cenas, ela diz ao grupo por meio de uma tradutora que se sentiu emocionada com as cenas cotidianas que filmou no período, carregando memórias bonitas mesmo que estas fossem compostas no geral de relatos sobre assassinatos e tragédias.

Essa situação, uma das várias reunidas para compor o filme, traz um pouco do jogo de contradições que permeia a produção, verdadeiro mosaico de imagens coletadas por Johnson em quase duas décadas de trabalho como documentarista. Trabalhando em obras como Fahrenheit 9/11 e Citizenfour, a cineasta realiza essa composição para compreender um pouco mais de sua própria profissão, buscando desvendar o encanto criado nela em tais situações.

É claro que o projeto passa por motivações muito individualistas (essas são imagens que fascinam a realizadora e não necessariamente o espectador), mas Cameraperson acaba funcionando pelo jogo de opostos mencionado acima. As relações entre duplos como vida e morte, objeto e observador e tragédia e beleza soam muito difusas a princípio, porém com o tempo ganham nas mãos de Johnson uma coerência que tem na imagem seu norte.

Isso ocorre porque o filme consegue transitar muito bem entre a esfera mais analítica e quase metalingüística do documentário – a cena da limpeza do vidro do carro talvez seja o ápice disso – com o relato pessoal da cineasta, que ocorre principalmente nos momentos que passam por sua vida familiar e a relação com a falecida mãe, mas também encontram espaço em situações como a de sua emoção com o relato de um entrevistado que perdeu o olho mesmo sem compreender sua língua de origem. Johnson procura aqui um significado oculto para suas imagens por meio da correlação, de conexões capazes de ressaltar a complexidade que enxerga nestas.

A proposta rende alguns resultados bonitos, mas não pelas vias que Johnson acredita estar trilhando. Se na desconstrução das imagens o longa soa artificial – a destruição de um pen drive qualquer em um local desconhecido ou a fabricação de uma cena não causam o impacto desejado –, nos momentos que mostram intimidade ele ganha força, seja da diretora ou dos retratados. Cenas como a de um boxeador estadunidense revoltado por perder uma luta ou de uma parteira nigeriana que trabalha para manter vivo um recém-nascido – além da relação da realizadora com a mãe em seus últimos momentos de vida - geram comoção não somente porque trazem relações fundamentais de vida, mas porque evidenciam de forma discreta o lado mais belo e emocional da imagem, algo que chega ao clímax quando a própria cineasta reconhece esse processo na situação citada no primeiro parágrafo.

É isso que materializa a tentativa de Johnson de no fim se aproximar de seus objetos de estudo, criando intimidade e legitimando sua maior emotividade com o que aborda. O que ela não percebe nessa trajetória – e também torna Cameraperson um projeto muito bem sucedido, na verdade – é que o público também percorre esse caminho, sendo capaz de aproveitar melhor essa relação de maneiras ainda muito misteriosas a ela e qualquer documentarista.E a bem da verdade esse é um mistério cujo segredo merece ser preservado.

Nota: 7/10