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sábado, 24 de setembro de 2016

Crítica: Sete Homens e um Destino

Refilmagem se disfarça de boas intenções, mas se contradiz com o próprio conteúdo.

Por Pedro Strazza.

Assim como Os Setes Samurais, épico samurai máximo do diretor Akira Kurosawa do qual aproveita a trama para ambientá-la no Velho Oeste, o primeiro Sete Homens e um Destino traz em seu âmago uma narrativa que engloba noções de público e privado. Os sete pistoleiros do título, afinal, aceitam de início defender um pobre vilarejo mexicano dos assaltos de uma gangue de 40 bandidos por mera ambição ou necessidade pessoal (a promessa vazia por riquezas, o desafio do combate, o pagamento de dívidas e etc), mas pouco a pouco se envolvem com a população ao qual foram contratados para proteger. A morte de grande parte do grupo no fim da história é a comprovação final do processo, um sacrifício que envolve não só suas vidas como também de seus desejos em prol de um bem maior.

A nova versão do filme, entretanto, não reconhece essa linha de raciocínio. Nas tantas mudanças feitas pelos roteiristas Nic Pizzolatto e Richard Wenk em cima do roteiro do original, se destaca no remake a dissolução da relação intrínseca entre heróis e vítimas, substituída por uma que privilegie os primeiros e relegue os últimos ao segundo plano. Se no longas de Kurosawa e John Sturges a questão principal é o encontro de figuras icônicas com pessoas comuns - o primeiro em forma de enfrentamento, o outro pelo deslumbramento conhecido dos faroestes da época -, a refilmagem dirigida por Antoine Fuqua prefere o espetáculo do duelo de seus mocinhos com o vilanesco industrialista Bartholomew Bogue (Peter Sarsgaard), que quer assaltar a cidadezinha de Rose Creek pelo roubo das terras.

É uma mudança de eixo simples e feita por uma boa causa, mas que traz imensos prejuízos à estrutura da história. Pizzolatto e Wenk buscam aqui expandir e realçar o conflito entre brancos e negros que caracteriza o cinema de Fuqua, contrapondo o elenco multiétnico e em pleno equilíbrio de figuras do Velho Oeste que protagoniza a trama - o delegado negro de Denzel Washington, o branco boa-pinta de Chris Pratt, o confederado traumatizado de Ethan Hawke, o ermitão de Vincent D'Onofrio, o bandido mexicano de Manuel Garcia-Rulfo, o estrangeiro de Byung-hun Lee e o indígena de Martin Sensmeier, todos interpretados com canastrice e sotaques bastante forçados pelos atores - com o vilão capitalista e diabólico, porém nunca conseguem sair da linha maniqueísta e da estereotipação desses personagens. Não existe no filme um esforço de humanização de tipos mas sim um reforço destes, conforme os contatos promovidos entre elementos tão opostos provam-se ineficazes na construção de uma relação mínima entre eles.

Isso porque este Sete Homens e um Destino encontra-se contaminado por uma sede individualista que não se justifica, gerada justamente pelo abandono do alicerce primordial do encontro dos pistoleiros com a cidade. Enquanto os heróis liderados por Yul Brynner e Steve McQueen no longa de 1960 eram aos poucos guiados pela salvação da população, os comandados por Washington e Pratt nunca chegam a se desvincular do propósito único de derrotar os poderosos para se concentrar nos que foram contratados para salvar, como se estivessem lá apenas para se tornarem lendas por derrotar uma força maior. Nos poucos momentos de encontro entre os cidadãos e os pistoleiros, inclusive, a câmera de Fuqua gosta de ressaltar (e não de desconstruir) a hierarquia entre quem protege e quem está sendo protegido, colocando os heróis sempre acima do povo como forma de legitimar seu caráter "lendário".

Para piorar, Fuqua parece estar perdido mesmo em seus propósitos. Se falta equilíbrio nas cenas em que precisa estruturar uma mínima ligação entre os protagonistas, na ação seu descontrole é total, já que promove uma escalada de eventos que repete situações e se interessa em apresentar uma novidade de impacto a cada minuto para prender a atenção do espectador. Clímax do filme, o combate final entre as forças de Bogue e os sete homens do título é confuso e desatento, sendo incapaz até de acompanhar o movimento dos personagens - que não sejam os de Denzel Washington ou Chris Pratt - e manter suas aparições em equilíbrio. Mesmo alguns duelos soam subaproveitados, como o travado entre os dois índios da trama ou o final com o vilão.

Na comparação entre Os Sete Samurais e o Sete Homens e um Destino original, o último saía perdendo por não conseguir dar cabo da tarefa de transportar para seus pistoleiros a sensação inequívoca do longa de Kurosawa de que o sacrifício dos samurais no fundo representava também o fim de seu valor para a sociedade, um sacrifício simbólico que repercutia em sua queda final como figura fundamental do imaginário japonês. O remake não apenas vai na contramão disso e busca consagrar seus protagonistas pelos mesmos caminhos, mas também demonstra um orgulho muito burro de abandonar esse viés.

Nota: 2/10

domingo, 18 de setembro de 2016

Crítica: Bruxa de Blair

Nova versão transforma temática do original em montanha-russa de imersão.

Por Pedro Strazza.

Seguindo a tradição recente de sequências de franquias mais velhas que reproduzem o original com novidades pontuais, o novo Bruxa de Blair a princípio não deixa de fazer o mesmo com A Bruxa de Blair de 1999. Da obra-prima responsável pela popularização do found footage nesse início de século, o filme de 2016 mantém principalmente a estrutura, que envolve a preparação do horror em dois atos para a consumação deste em um terceiro por meio da história "real" de um grupo de jovens que adentra a floresta de Black Hills à procura da lenda do título.

Comparar as duas versões pelo esforço da justificação (ou seja, sobrepondo suas narrativas para encontrar diferenças), entretanto, pode se provar um esforço equivocado, já que o longa dirigido por Adam Wingard tem uma proposta muito diferente da concebida por Daniel Myrick e Eduardo Sánchez no fim dos anos 90. Se o terror provindo da colagem de filmagens realizadas por Heather, Joshua e Michael e encontradas algumas semanas depois de seu desaparecimento era criado pelo processo de testemunho ao qual o espectador inevitavelmente era submetido, a do grupo liderada por James (James Allen McCune) e Lisa (Callie Hernandez) está ligado a uma experiência de imersão, capaz de jogar o público para dentro dos eventos narrados e colocá-lo na mesma posição de suspense ao qual estão os personagens.

Essa medida imposta por Wingard, bastante ligada ao advento de formas novas de experimentar e interagir com um ambiente distante ao vivido pelo indivíduo - seja na realidade aumentada, nos óculos de realidade virtual dos games ou mesmo nos vídeos filmados em 360 graus -, potencializa o horror da estrutura de Bruxa de Blair no sentido de aumentar o frenesi de suas ações e, por consequência, o pânico gerado nestas. O diretor, porém, sabe como distribuir isso sem perder tanto o timing quanto o controle: com um número bem maior de câmeras e muito mais pressa que o original, o filme se preocupa em usar estas para mapear espaços e demarcar a lógica contraditória destes, abraçando de vez o viés de labirinto sem saída da trama. Se a câmera em primeira pessoa desempenha bem sua função de situar o espectador dentro desse ambiente enlouquecedor, as situadas no drone e nas filmadoras convencionais são ideais para a produção estabelecer o espaço virtual que tanto procura à obra.

O resultado é que Bruxa de Blair, por mais ligado que esteja ao original em termos de trama, consegue se diferenciar deste ao levar o conceito de terror lúdico ao status de modo de operação único. Se as cenas na floresta e na cabana da bruxa não se desvencilham da emulação do longa de Myrick e Sánchez, elas em simultâneo aumentam o nível de desespero da crescente de pânico da história, graças ao efeito de imersão que se propõe a realizar. Ainda que não mostre aqui pretensão alguma sobre o campo simbólico, Wingard é eficaz nesse desejo de aterrorizar sua audiência apenas pelas situações apresentadas em sua narrativa bem desenvolvida.

Mas se por um lado tal ação amplifica a tensão sentida durante o desenrolar dos eventos, ela também prejudica a produção pela falta de substância. Enquanto os personagens do roteiro de Simon Barrett, meros avatares confeccionados para uso do espectador, possuem perfis ocos e abandonam qualquer ambição a partir da metade da trama, a ausência de uma temática maior que não seja a de conceber uma montanha-russa de horror cinematográfico ressalta repetições, gorduras e exageros da direção, como a cena do túnel e as aparições rápidas de criaturas no clímax ou os pequenos gores no restante da narrativa. Se há uma comparação a ser feita entre a versão original e a nova é que o primeiro possuía pelo menos o arco da materialização do pesadelo do autor de se ver preso dentro da própria obra para se guiar.

Esse é um problema sentido não apenas por Bruxa de Blair, mas por tantos outros terrores contemporâneos que são conduzidos mais por propostas visuais que pela criação de significados dentro destas. No caso da obra de Wingard, a decisão pelo rompimento total com a camada temática produz um filme bastante eficaz na experiência de horror mais imediata, mas como qualquer outro entretenimento lúdico ele se dissolve pouco tempo depois do fim da sessão e acaba por não incutir um tormento a longo prazo.

Nota: 7/10

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Crítica: Cães de Guerra

 Em filme atípico, Todd Phillips recorre a Scarface e Scorsese para retrabalhar  suas relações de bromance.

Por Pedro Strazza.

Ainda que existam cineastas dispostos a dizer (e, por consequência, buscar provar) o contrário, o cinema vive de uma eterna emulação do que veio antes. Propor novos formatos e estilos passa inevitavelmente por uma recombinação de elementos presentes em obras anteriores, que sendo contemporâneas ou antigas não deixam de ser recicladas para uma progressão natural da maneira como se enxerga a sétima arte. Como essa influência se dá, porém, é uma questão à parte: há quem a renegue e procure um perfil autoral, mas também existem aqueles dispostos a deixar claro sua influência.

Para Cães de Guerra, fica óbvio do momento em que o personagem de Miles Teller começa a narrar a história que o filme dirigido por Todd Phillips decidiu-se pelo segundo caminho. Seguindo a tendência de longas estadunidenses que tem nas obras de Martin Scorsese seu norte (Trapaça, Joy - O Nome do Sucesso, Golpe Duplo, até mesmo A Grande Aposta), a produção reconta na telona a ascensão e queda de David Packouz (Teller) e Efraim Diveroli (Jonah Hill), jovens de ascendência judia que fizeram sua fortuna por meio de contratos armamentícios  com o governo dos Estados Unidos. No processo, a produção abraça não apenas a estrutura consagrada do cineasta responsável por Cassino e Os Bons Companheiros, mas também de uma geração inteira de filmes de gângster dos anos 80 e 90 cujo maior força vinha do excesso.

Essa necessidade está presente visualmente do começo ao fim da história, seja pelas referências diretas a Scarface (o pôster no primeiro escritório, a parede da sala de Efraim com a mesma imagem afetada de parreiras da de Tony Montana) ou na atuação do elenco, que parece se satisfazer ao repetir trejeitos dos personagens desses filmes tanto admirado por eles - e Hill é o que está mais à vontade em sua reinterpretação de arquétipo de Robert De Niro, talvez porque seja o único dos atores a ter trabalhado de fato com Scorsese. Enquanto isso, Phillips faz o possível (em seus próprios limites) para repetir essa estética, investindo em situações de seu cenário global que remetam de imediato a seu objeto de admiração. Dentro dessa tentativa, a disposição das salas de Packouz e Diveroli é o seu melhor momento, enquanto o uso estético do dinheiro (no corpo, na maleta) são os piores.

A aplicação não deixa de ser atípica na carreira do diretor, que sempre optou pelas comédias mais seguras de humor físico e escatológico, mas ela também não escapa dos moldes de sua carreira. Pois por mais que Cães de Guerra seja um exercício de emulação, no fundo ele também repete as mesmas relações de amizade masculina (e dos testes de limite aos quais esta se submetem) dos outros longas de Phillips, sob um aspecto menos risonho e de maiores ambições dramáticas. Ao se ancorar nessas grandes narrativas feitas em cima do mundo do crime, o que o cineasta procura de fato é agregar às suas eternas crises do bromance o vazio existencial da busca pelo american way, implícito nos grandes espaços dos enormes apartamentos e no inevitável sentimento de culpa gerado em Packouz pelo senso imoral adquirido para chegar ao sucesso financeiro.

O que Phillips e seus co-roteiristas Stephen Chin e Jason Smilovic talvez não percebam, entretanto, é que existe uma reciprocidade em meio a todo esse processo, e ao qual eles obviamente não respeitam. Se o molde do gênero pode ser ideal a eles para potencializar sua comédia de bromance, o contrário não acontece: a relação de amizade entre Packouz e Diveroli é transformada e tornada crise pelo crime, mas nunca chega a ser consumida dentro desse mundo e parece retornar a uma realidade mais simples para ser encerrada de fato, acreditando piamente na veracidade dessa possibilidade. O longa até ensaia a condenação física das histórias de máfia pelas traições e a ação da polícia no terceiro ato, porém mostra-se mais contente em dar paz ao personagem de Teller pela paz com a mulher (Ana de Armas) e o filho.

A decisão pelo conforto é inconsistente, e o até então bem sucedido casamento do modelo clássico das obras de Phillips com a estrutura do gênero acaba rachado em dois. Nesse sentido, se a experimentação atípica promovida pelo diretor em Cães de Guerra não deixa de ser curiosa em sua carreira, ela também não se prova sustentável e termina enterrada pela falta de conciliação. A bem da verdade, o "Sem mais perguntas" dito no fim pelo mafioso interpretado por Bradley Cooper - ator cuja interpretação meio contida, meio canastrã melhor representa a produção nessa ânsia de querer se assemelhar ao objeto de influência - também é a melhor resposta que o longa consegue dar ao problema que tem em mãos.

Nota: 5/10

sábado, 10 de setembro de 2016

Crítica: O Homem nas Trevas

Terror claustrofóbico se perde dentro da própria proposta.

Por Pedro Strazza.

Embora possua uma ambientação completamente distinta da do trabalho anterior do diretor Fede Alvarez, O Homem nas Trevas não deixa de repetir as temáticas de A Morte do Demônio. Como em seu remake de Evil Dead, o cineasta uruguaio busca legitimar aqui uma consolidação do feminino como força, através de um terror claustrofóbico cujo maior mecanismo venha do seu lado mais sádico. Acima de tudo, o que parece imperar no cinema de Alvarez é a provação física de seus personagens contra as adversidades ao redor e na maneira como o espectador lida com isso.

Dentro dessa proposta, o que ambos os filmes tem no fundo de efetivamente diferente entre si é a criatura. Ainda que ensaie um paralelo com a Detroit onde se passa a trama (e logo o relegue ao mero papel de contexto), O Homem nas Trevas nunca chega a abandonar o ritmo de cabin fever desenvolvido pelo diretor em A Morte do Demônio, aplicado agora sob a ferramenta do suspense ao invés da do gore.

Na trama, um grupo de três jovens que passam os dias a assaltar casas invadem a de um senhor cego (Stephen Lang) em busca de um grande quantidade de dinheiro arrecadada por este depois da trágica morte de sua filha. O que parece ser mais uma tarefa fácil a Rocky (Jane Levy), Alex (Dylan Minnette) e Money (Daniel Zovatto), porém, logo se torna em um pesadelo conforme o velho e sua morada revelam-se ser tudo menos inofensivos.

O roteiro de Alvarez e Rodo Sayagues é um gato e rato simples e promissor, mas não demora muito para se revelar desgastado. Além de estar preso a uma metodologia de criar uma reviravolta de tempos em tempos para impedir que a história estacione, a narrativa do texto e aplicada pelo diretor na tela é traiçoeira, mudando constantemente as regras a seu favor mesmo que isso signifique prejudicar a lógica dos eventos. O que a dupla talvez mais sinta falta em O Homem nas Trevas seja a presença de um elemento sobrenatural capaz de relativizar essas pequenas incongruências, mas eles também não correm atrás de uma solução eficiente para o problema.

Assim, não demora muito para o espectador se ver preso em uma trama que muitas vezes não sabe conectar as situações apresentadas, que a bem da verdade servem ao diretor de maior atrativo aqui. Mas o interesse de Alvarez pelo mapeamento da casa e seus cômodos, evidente nos planos longos com o qual situa no início os personagens e de intenções lúdicas, não contribui muito à violência concebida para o filme, que ademais parece tão enclausurado na experiência hermética ao qual se propõe quanto seus protagonistas estão dentro da casa.

Nota: 5/10

domingo, 4 de setembro de 2016

Crítica: Aquarius

Tempo, espaço e questões sociais se complementam em filme sobre a memória.

Por Pedro Strazza.

Segundo longa-metragem de ficção de Kleber Mendonça Filho, Aquarius possui um número particularmente alto de semelhanças com o trabalho anterior do cineasta, O Som ao Redor. Da estrutura em três capítulos anunciada por uma sequência de fotografias em preto e branco ao contexto social em que a história se insere - as lutas de classe da sociedade brasileira em Recife -, os dois filmes possuem uma conexão forte, mesmo que tenham no fundo propósitos diferentes: o mais velho procura atestar a falência do senso comunitário em tempos de hipervigilância; o mais novo, trabalhar com a ideia de memória.

O que permanece de mais importante de O Som ao Redor em Aquarius, porém, é a busca pelos pontos de equilíbrio e desequilíbrio nas relações do indivíduo com o grupo social ao qual se insere, aqui potencializado pelo diretor em uma trama que oscila a todo instante entre o ensaio emocional e a alegoria política. Essas duas vertentes se complementam de maneira bastante orgânica no longa, que acompanha os esforços de Clara (Sonia Braga), jornalista aposentada e moradora remanescente do edifício Aquarius, para evitar que uma empresa imobiliária derrube o edifício e construa um novo e mais moderno no local.

Com a empresa representada na jovem figura de Diego (Humberto Carrão), empreendedor com "sangue nos olhos" que de certa forma representa a inconsequência desse novo, esses conflitos norteiam o filme a uma discussão sobre público e privado, mas também ajudam a estabelecer os campos onde a obra procura encontrar com seus personagens um ponto de contato entre partes distintas. Sejam estas rivais ou amigas, Mendonça Filho continuamente encontra esse equilíbrio de relações pelo viés da empatia, de reconhecer no outro um igual com o qual possa dialogar, e essa sensação surge tanto nos momentos construtivos - o mais belo sendo sem dúvida a cena que encerra o segundo capítulo da história ("O amor de Clara") - quanto naqueles onde tudo parece a ponto de ruir, como na situação da suruba em cima do apartamento da protagonista, cuja resposta com o garoto de programa também direciona à conclusão de outro e parecido momento da trama.

Esses "nirvanas" momentâneos acabam por funcionar tão bem porque o compromisso original do filme com a memória permanece vivo em todos eles. Centro dessa balança de sensações e empregado em um significado mais preservacionista (mas muito distante do lado imediatista e mais comum da nostalgia de hoje), ele serve a Clara como um modo de operação, que guia suas ações para salvar o prédio da demolição e está presente em todas as paredes de seu apartamento, dos vinis à cômoda que logo no início adquire uma simbologia inusitada. Nesse sentido, as músicas que permeiam a narrativa sempre contribuem para tornar mais palpável esse sentimento ao espectador, que por sua vez tende a mergulhar profundamente nos desejos e anseios da protagonista.

O que há de novo na lógica de Mendonça Filho, porém, e que confere à história de Clara e Aquarius uma carga quase sobrenatural é o rumo dado pelo diretor depois de alcançado esse equilíbrio. Deixando afluir o terror desenvolvido com parcimônia nos dois primeiros capítulos, o terceiro ato parece desestabilizar essas relações de reconhecimento, criando essas rupturas pelo comentário político ao qual finalmente se rende por completo. São cenas como do almoço de Clara com um dos poderosos de Recife ou dos conflitos cada vez mais intensos dela com Diego que definem o longa sob um viés de choque, do enfrentamento entre classes sociais que está presente em suas praias e diálogos.

Antitética por definição, essa decisão é fundamental para aliar os discursos de tempo, espaço e sociedade presentes na narrativa, e potencializa sua faceta emocional a níveis mais complexos que o sentimentalismo de momento. O que une tudo isso, claro, é a memória, deixando de ser um recurso passivo da narrativa para confrontar aquilo que ameaça sua própria existência, e o desequilíbrio de relações - uma atitude tão impensável àqueles que como Ana Paula (Maeve Jinkings), filha de Clara, prezam pela etiqueta social e índoles simpáticas, provado no conflito da mãe com os filhos - surge como a melhor opção para a resolução da disputa.

Nesse sentido, a natureza que tanto permeia o ambiente e os personagens de Mendonça Filho adquire uma função de dinamização dessas relações, sejam estas equilibradas ou desequilibradas, e quem a incorpora em tom quase absoluto é Sonia Braga. Quase uma Iemanjá da dita "melhor idade" quando sai do mar da praia de Boa Viagem, a atriz tira da relação com os ambientes uma atuação hipnótica e que atiça as sensações, seja por causa dos efeitos do câncer que teve no passado ou mesmo da conexão de sua personagem com a própria moradia. Pela atriz,o natural e o humano enfim entram em consonância, e ai de quem ousar interferir nisso. Os cupins que saem das toras de madeira jogadas por ela na mesa do escritório da empresa imobiliária no fim do filme, inclusive, parecem sair por seu comando.

No fundo, o que Kleber Mendonça Filho queira fazer por meio de toda essa complexidade de temas e emoções, em zooms de câmera ora aflitivos, ora indicativos, seja resolver a aflição do mundo contemporâneo do que merece e não merece nosso enlaço emocional. Uma tarefa impossível, é válido afirmar, mas que pelo uso consciente da memória como ferramenta de nossos tempos ganha contornos de uma realidade bastante possível.

Nota: 10/10