Han Solo - Uma História Star Wars

Leia a nossa crítica do mais novo derivado da saga!

Deadpool 2

Continuação tenta manter a subversão do original enquanto se rende às convenções hollywoodianas

Desejo de Matar

Eli Roth aterroriza ação do remake e não deixa os temas caírem na ingenuidade

Nos Cinemas #1

Nossos comentários sobre O Dia Depois, Submersão e Com Amor, Simon

Jogador N° 1

Spielberg faz seu comentário sobre o próprio legado em Hollywood sem esquecer do espetáculo no processo

quarta-feira, 29 de março de 2017

Crítica: A Vigilante do Amanhã - Ghost in the Shell

Remake estadunidense é bonito por fora, mas tem o interior vazio.

Por Pedro Strazza.

Toda refilmagem passa inevitavelmente por um processo de reformulação de sentidos que ora ou outra irá desfazer o propósito do original para imbuir a trama de novos significados, independente do grau de fidelidade ao qual a produção busque com o antecessor. No caso de A Vigilante do Amanhã - Ghost in the Shell, é evidente do início qual é o tom de solenidade com o qual o longa se dirige à animação japonesa de 1995 em que se baseia, tendo o visual do filme de Mamoru Oshii (este por sua vez a adaptação do mangá de mesmo nome de Masamune Shirow) quase como um ponto de referência intocável, a ser atualizado somente pelos efeitos digitais de ponta.

Mas se na imagem o longa dirigido por Rupert Sanders está bastante decidido sobre o tipo de adaptação que quer ser, mostrando uma preocupação bastante evidente de se portar como uma reprodução fiel e não antiquada do original, no conteúdo a produção estadunidense se dissolve em um vazio de intenções tão efêmero quanto a metáfora do "fantasma na concha" que dá nome à obra em inglês. Isso porque Sanders parece querer evitar ao máximo o desafio de tradução ao qual sua obra passa na travessia de um imaginário oriental ao ocidental, preferindo englobar com exclusividade o clima soturno do sci-fi policial de Oshii que tentar abordar o caos temático de reflexões sobre a condição existencial em que esta narrativa se insere.

Isso começa a ficar mais claro quando o longa começa a criar maior distância da animação e efetivamente trilhar caminho próprio. Se o roteiro escrito por Jamie Moss e William Wheeler simplifica a jornada de Major (Scarlett Johansson) à procura de respostas ao estado de um sub-Robocop de tom comedido, é porque a produção em si não possui qualquer ambição com os temas da animação que seja maior que o básico e está atrás aqui somente do ideal visual concebido por esta. Não à toa, o filme segue a cartilha dos remakes hollywoodianos recentes de tratar situações marcantes do original (os dedos robóticos ramificados em mais dedos, a "fabricação" da Major, as lutas e o mergulho na água, o combate da protagonista com o robô aracnídeo no final) como reles paradas nostálgicas obrigatórias, não importando seu significado ou contribuição real à trama. 

Esta decisão de seguir um tom mas não um conteúdo logo transforma o filme em um pastiche de referências sem maior inspiração, que consegue até encontrar sobriedade(!) nos designs coloridos de néon do cenário futurístico. Nem mesmo a presença de Takeshi Kitano no elenco - um verdadeiro showman no Japão que como ator tende a proporcionar a caricatura e a postura mais séria em perfeita sincronia na atuação - consegue trazer um respiro a este novo Ghost in the Shell, que soa inerte nas suas tentativas de repetir os atrativos da animação sem de fato se arriscar a se enveredar por eles.

Este erro de concepção (e de falta de percepção) de certa forma aproxima A Vigilante do Amanhã da refilmagem de Robocop, outra produção que além de tratar do eterno enfrentamento entre homem e máquina sob limites mais tênues também se fazia como uma versão compacta e sem margem para riscos da original. A comparação, porém, não vem para bem, pois enquanto o longa de José Padilha tinha pelo menos na atualização da trama e no advento de dilemas contemporâneos um escape para suas inevitáveis limitações, o remake de Sanders soa como um produto deslocado, incapaz de tanto dar vazão às questões que tenta promover quanto de aproveitar o potencial de Johansson como atriz de ação, usando-a em cenas que ressaltam ainda mais o sentimento geral de repetição e aborrecimento proporcionados pelo filme.

Nota: 4/10

sábado, 25 de março de 2017

Crítica: Fragmentado

"Volta" de Shyamalan concilia fábula e horror com leves rupturas.

Por Pedro Strazza.

Se houve um momento crucial à carreira de M. Night Shyamalan nestes quase 20 anos de altos e baixos na relação com crítica e público, este talvez seja a parceria que o cineasta firmou com a Blumhouse Productions de Jasom Blum. Foi uma decisão que atendeu aos dois lados: se a produtora de terrores de baixo orçamento ganhou um nome de peso para impulsionar as já bastante rentáveis bilheterias de suas produções, o diretor voltou a trabalhar seu cinema de fábula dentro dos moldes do terror que o formou, estando agora melhor conectado a regras e convenções de subgêneros baratos que possibilitam uma melhor e mais imediata aproximação de sua narrativa com o público.

Este retorno é benéfico a Shyamalan também por uma questão de auto-consciência: se em trabalhos anteriores a este período suas belas histórias de fé e espírito ora ou outra esbarravam no posicionamento de que tipo de produção ele queria fazer (algo que com certeza gerou as recepções divididas de obras como A Dama na Água, Fim dos Tempos e A Vila), sua filiação ao terror resolve esta questão ao mesmo tempo que o permite trafegar entre gêneros distintos (a comédia, o filme familiar e também o horror) com melhor naturalidade. É um misto de maior habilidade e precisão que, confundido por alguns como uma "volta à boa forma", tornam A Visita e agora Fragmentado muito mais acessíveis a qualquer tipo de público.

É uma mudança de fim comercial, porém, que no fundo não altera a essência de seu cinema, que continua com as mesmas propensões pelo menos desde O Sexto Sentido. Se os aspectos estéticos e relacionados à forma estão sempre evoluindo nos filmes de Shyamalan, sua missão permanece idêntica: encontrar um respiro na rotina, descobrir-se como um ser de potencial e renovar a esperança em si mesmo. São temas que continuam fortes no seu cinema até os dias de hoje, oscilando talvez entre uma maior e menor presença imediata nas tramas de suas produções.

Mas se as temáticas permanecem inalteradas, como o diretor é capaz de se manter relevante sem se esgotar? No caso de Fragmentado, obra que é seu maior sucesso de bilheteria desde Fim dos Tempos, a resposta está na potencialização de sua forma e no intercâmbio de gêneros realizado por ele em um longa a princípio estabelecido como um terror sádico. No filme, três jovens adolescentes - encabeçadas por uma típica vítima de bullying chamada Casey Cooke (Anya Taylor-Joy) - são sequestradas e enclausuradas em um quarto por Dennis, uma das 23 personalidades que habitam o corpo de Kevin (James McAvoy). De início perdidas e desesperadas sobre o porquê de terem sido vítimas de tal ato, as três logo ficam sabendo que estão ali para servirem de sacrifício à Besta, uma nova e mítica persona de Kevin que está para se manifestar em seu interior.

Alternando-se entre a situação claustrofóbica do cativeiro das meninas com investigações da rotina de Kevin durante o evento e do passado de Casey, Shyamalan desenvolve aos poucos e com um tom menos esperançoso sua narrativa de fábula dentro dos limites da câmara que cerca seus dois protagonistas. O suspense é mais uma vez a linha condutora do diretor, que se aproveita aqui dos relances de profundidade da fotografia de Mike Gioulakis - que emerso no meio com Corrente do Mal dá toques labirínticos à produção, especialmente nas cenas de corredor - para potencializar estas possíveis instabilidades espaciais de um cenário fechado enquanto promove o mesmo equilíbrio entre humor e horror que atingiu com A Visita.

E ainda que mais para frente Fragmentado demonstre estar melhor antenado na temática com outro trabalho de Shyamalan (o qual não vale a pena revelar aqui para preservar os efeitos do longa), é justo com o excelente found footage dirigido pelo cineasta em 2015 que ele está mais próximo no fim, seja por questões formais - a melhor transição e equilíbrio entre os gêneros, o ótimo trabalho do elenco, o uso ressaltado como "consciente" da câmera - ou de formulação - a revelação da similaridade entre os traumas responsáveis por isolar Kevin e Casey passa de alguma forma pelo mesmo eixo de união das duas crianças em sua crise familiar. É um alinhamento não planejado pelo diretor que não exatamente tira força dos jogos de tensão da produção mas fica responsável por escancarar demais o processo narrativo do diretor, antecipando viradas e criando quebras não esperadas entre fábula e horror. E para alguém que esteve sempre disposto à metalinguagem como Shyamalan, estas rupturas podem ser prejudiciais.

Nota: 7/10

quarta-feira, 22 de março de 2017

Crítica: T2 Trainspotting

Continuação se perde na nostalgia, mas encontra no choque de gerações uma maneira de prosseguir.

Por Pedro Strazza.

Lançado em meio à onda de refilmagens e continuações de sucessos do passado que a indústria cinematográfica se encontra nos dias de hoje, T2 Trainspotting carrega um misto de sinais contraditórios que acabam por representar mais o estado da indústria que do mundo. Se o Trainspotting original trazia impresso em sua comédia de humor negro e seus protagonistas viciados em heroína todos os traços do espírito de rebeldia e desencanto sistemático da juventude do pós-punk de meados dos anos 90, a sequência mira um retorno analítico e mais auto-consciente a esta geração e seus tipos, mas involuntariamente termina por tratar dos ecos e dificuldades de relação que as atuais obras "nostálgicas" de Hollywood tem com o próprio passado.

Os indícios desta virada, porém, só irão se manifestar à partir da metade no longa, que de início parece  com sucesso evitar as cacofonias de produções análogas e se assume de fato como uma continuação dos eventos mostrados no primeiro filme. Mais de 20 anos depois do dia que traiu seu grupo e fugiu com o dinheiro da venda de um carregamento de drogas, Renton (Ewan McGregor) retorna à Escócia para ver como anda o pai depois da morte da mãe e também para acertar as contas com os amigos, mas encontra um cenário difícil para todos. Enquanto o violento Begbie (Robert Carlyle) encontra-se preso, Sick Boy (Jonny Lee Miller) e Spud (Ewen Bremner) ainda estão ligados a vícios e vidas à deriva - o último manteve-se na heroína e na vida miserável todos estes anos, ao passo que o primeiro trocou a droga para a cocaína enquanto administra um pub na região portuária e segue tocando esquemas de chantagem.

Se a princípio a trama em nada parece se relacionar com a do original é porque o diretor Danny Boyle e o roteirista John Hodge estão menos interessados na permanência dos vícios de seus personagens - uma temática que permanece presente pelo discurso de Renton sobre substituir "um pelo outro", mas é apenas coadjuvante na narrativa - e mais no efeito que o peso das últimas duas décadas tiveram neles, jovens de uma geração que prezava pelo imediato e inconsequente que não conseguiu escapar da passagem do tempo. É uma medida capaz de tornar a proposta deste novo Trainspotting ousada em termos de análise, ainda mais porque ela aproveita as mudanças do cenário econômico no Reino Unido depois da crise e do Brexit. Se estes homens quando jovens podiam desfrutar da estabilidade econômica como um eterno meio de escape à rotina de vício, na realidade atual eles são confrontados constantemente pela responsabilidade e as dificuldades financeiras de quem vive uma época instável e sem salvaguardas.

É uma questão que na direção de Boyle logo se transforma numa divertida comédia de choques geracionais, alimentada pela noção de que seus protagonistas, antes tão insurgentes, se tornaram numa versão distorcida de velhos conservadores. Da hilária cena do canto contra os católicos no pub unionista aos olhares perdidos de Renton e Sick Boy em uma balada, passando por todos os conflitos familiares de Begbie - que tenta sem sucesso ensinar o "ofício" do crime ao filho, esse "ingrato" que quer fazer a vida pela profissão da hotelaria -, o filme sabe tirar do verdadeiro abismo entre as mentalidades do passado e do presente um humor ácido e observador de costumes, invertendo relações para revelar as raízes do clima dominante de comportamentos extremos de hoje.

T2 poderia muito bem se manter auto-suficiente (e ser melhor que grande parte dos outros filmes sobre a crise europeia, como o vencedor da Palma de Ouro Eu, Daniel Blake) caso se centrasse nisso, mas a partir do momento que passa a abordar o passado suas ambições ficam todas desarranjadas. É um problema que parte da própria indecisão da produção sobre qual postura adotar para com o legado: se de início ela se afirma como uma sequência disposta a tomar os próprios caminhos, prosseguindo a história dos personagens e seus novos trambiques, depois de um tempo ele volta a adotar uma postura autorreferente, se bastando a reposicionar peças e emitir cacoetes nostálgicos do original. A derrapada só fica mais evidente na direção fora de tom de Boyle, cujo exageros estilísticos de planos inclinados, projeções na tela e rabiscos luminosos não são capazes de conciliar as tramas e se perdem na tentativa de emular um tom rebelde e explosivo que em nenhum momento se adequa à realidade vivida pelos personagens.

Se esta mudança de eixo gera uma quebra de narrativa das mais significativas - a partir do momento em que se percebe que tudo ali serve à nostalgia a situação de riscos proposta pela produção perde todo o sentido - ela também termina por servir como um reflexo meio maldito e necessário da síndrome do retorno ao passado ao qual muitas produções, artistas e estúdios se sujeitam nos dias de hoje. É uma condição que o próprio Traisnpotting parece perceber e usar a seu favor, conforme ele aos poucos parece encontrar em Spud, personagem que no longa passa por um arco de recuperação, mas também de percepção da necessidade de se recontar as histórias como forma de seguir em frente, o maior protagonismo.

Nota: 5/10

sábado, 18 de março de 2017

Crítica: A Bela e a Fera

Remake em live-action da animação falta em encantamento aquilo que tem de renovação.

Por Pedro Strazza.

Desde que descobriu com Alice no País das Maravilhas a verdadeira mina de ouro escondida nas adaptações live-action de suas próprias animações, a Disney vem testando e aprimorando o formato destas produções em busca da fórmula que ao mesmo tempo satisfaça as gerações de fãs dos trabalhos originais e evite cair em moralismos e lições de valor ultrapassados. É um desafio que só se complica quando se aborda as tradicionais histórias de princesa, contos de fadas clássicos cujas estruturas são mais do que inadequadas às discussões de gênero dos tempos de hoje.

Assim, se no ano passado o estúdio parece ter conseguido encontrar com Mogli e principalmente Meu Amigo, o Dragão um bom ângulo para guiar seus outros remakes em live-action, nas fábulas de personagens como Cinderela e Bela Adormecida ele ainda se encontra em uma cruzada para resolver este equilíbrio delicado entre a nostalgia do passado e a desconstrução do presente. É quase como um enigma da princesa, cujo ponto de resolução está na conciliação de partes a princípio nada relacionáveis entre si.

Neste sentido, a nova versão de A Bela e a Fera chega tanto para aliviar quanto para aprofundar os desafios do estúdio. Alivia porque o remake não deixa de ser uma aposta garantida: além de ser um dos maiores sucessos comerciais da Disney nos anos 90, a animação de 1991 dirigida por Gary Trousdale e Kirk Wise apostava na época na desconstrução de valores tradicionais dos contos de fadas sem destituí-los de seu encanto. São fatores que por si só facilitam o trabalho de adaptação para o live-action, que ao contrário de filmes como Malévola e Cinderela já possui uma linha de raciocínio bem clara a ser seguida.

Não é por acaso, então, que o longa dirigido por Bill Condon seja bastante fiel à história contada há mais de 20 anos, tanto em termos narrativos como também visuais. O roteiro escrito por Stephen Chbosky e Evan Spiliotopoulos refaz os caminhos do amor entre Belle (Emma Watson) e o príncipe amaldiçoado como Fera (Dan Stevens) com leves alterações e adições pontuais para elucidar alguns pontos da trama e facilitar a transição do relacionamento ao romance (as visitas ao passado do casal e de seus pais, por exemplo, ajudam a explicar certos comportamentos do casal, principalmente do segundo), ao passo que Condon aproveita da desmistificação do ideal masculino intrínseco à história para torná-lo em uma questão de igualdade social. Isto acontece tanto pelo lado da hierarquia econômica (o reencontro final dos criados com a vila carrega um pouco desta lição de união) quanto pelo de gêneros, raças e credos, algo ressaltado pelo arco da sexualidade de LeFou (Josh Gad) mas também nos casais interraciais formados pela cantora (Audra McDonald) e o pianista (Stanley Tucci) do castelo e Lumière (Ewan McGregor) e Plumette (Gugu Mbatha-Raw) - a revelação desta última depois de aparecer o tempo inteiro como um espanador branco, inclusive, pode vir a ser uma agradável grande surpresa para quem desconhece a atriz ou sua escalação para o papel.

São boas intenções que o filme carrega porém apenas nas pontas, pois ainda que se proponha como exuberante e luxuoso este A Bela e a Fera prova-se uma tentativa tímida demais de se trabalhar o conto infantil. Culpa talvez da necessidade exagerada do estúdio em revisitar suas produções antigas pela nostalgia, mas também pela inabilidade do diretor: Se Jon Favreau em Mogli demonstrava ter um controle bastante presente sobre o visual da floresta e seus personagens, Condon aqui não consegue encontrar na narrativa um tom capaz de equilibrar a emulação dos cenários e vestimentas da animação com o design mais próximo do gótico que seu longa carrega. Aliado ao visual meio oscilante dos personagens criados em CGI - se a Fera tem uma figura muito pobre  e feia digitalmente, os objetos variam entre as soluções criativas (o Cogsworth de Ian McKellen, o armário) e mal resolvidas (o aspecto humano de Lumière, a face do piano) - e os números musicais pouco deslumbrantes - nem mesmo "Be our guest" escapa aos planos fechados -, esta dificuldade criativa de produção ajuda a promover na obra um sentimento de esquizofrenia que no fim barra seu avanço narrativo.

É no casal protagonista, entretanto, onde o filme de fato parece se bloquear em si mesmo. Enquanto Dan Stevens acaba preso dentro de uma Fera má concebida e que não consegue emitir nenhuma emoção, Watson fica refém do próprio papel ao não conseguir resolver a virada na sua relação com a criatura dentro dos ideais de empoderamento ao qual se propõe. Se Belle a princípio surge como uma mulher forte, independente e superior aos rituais ultrapassados do vilarejo onde mora, construindo aparatos e lutando contra preconceitos dos outros habitantes, esta noção se esvai por completo depois de feita a transição no romance com o príncipe no castelo, com Watson falhando em reobter este perfil após sua transformação para "dama" e o longa se restringindo no terceiro ato a realizar apenas a comparação dos perfis de cavalheirismo realizados pela Fera e Gaston (Luke Evans).

São problemas que terminam por tornar este novo A Bela e a Fera em uma espécie de oposto ao Cinderela de Kenneth Branagh, já que este optava por privilegiar no espetáculo aquilo que lhe faltava em atualização depois de também se valer da nostalgia como eixo da trama. É uma comparação que rende ramificações inusitadas dentro da proposta de reformulação ao qual ambas as produções estão no fundo submetidas: na ausência de uma opção capaz de conciliar as duas partes, mais vale a reafirmação com o encantamento de sua história ou a atualização necessária afim de evitar o anacronismo inevitável da moral nas adaptações modernas dos contos de fadas? Para Condon, esta dúvida é o que no fim põe em cheque todos os valores de sua abordagem.

Nota: 5/10

quinta-feira, 9 de março de 2017

Crítica: Silêncio

Adaptação do livro de Shusaku Endo encontra novas dúvidas ao teste de fé de Martin Scorsese.

Por Pedro Strazza.

Embora seja celebrado por seus filmes de máfia e a pretensa "realidade" sangrenta que estes carregam, Martin Scorsese é um diretor que a bem da verdade traz como grande objeto de investigação o sistema e a convicção de seus integrantes de estarem em controle do funcionamento das coisas mesmo estando longe do comando. Seja nas obras em que trabalha o processo em toda a sua grandiosidade ou aqueles onde tudo se realiza sob o pretexto da farsa, o cineasta americano sempre enxergou em personagens como o Johnny Boy de Caminhos Perigosos ou figuras reais como Jordan Belfort uma espécie de grande busca do indivíduo para reafirmar suas forças dentro da ordem social que o cerca, com a lei contra ou a seu favor. É uma jornada capaz de englobar tramas de vingança (Gangues de Nova York), ascensões e declínios do poder (o arco tradicional de seus trabalhos voltados para o crime) e até mesmo de sátira (o pesadelo kafkiano de Depois de Horas).

Todas as suas histórias, porém, não deixam de no fim se estabelecerem no conceito de fé, um tema caro ao diretor desde a infância (na sua tentativa frustrada de entrar para a Igreja e se tornar padre) e que ora ou outra ocupa posição central em seus filmes. O curioso destes projetos é que é justamente por eles onde Scorsese aborda de fato o questionamento da crença, elevando a dúvida de seus protagonistas sobre o quão passíveis de confiança são as organizações e rituais - bem como o senso de ordem envolto a isso - no qual se inserem. Este incômodo de certa forma une em torno de um mesmo eixo as narrativas de A Última Tentação de Cristo, Kundun, Vivendo no Limite e agora Silêncio, adaptação do livro homônimo de Shusaku Endo que o cineasta vem desenvolvendo desde os anos 90 e trata também de uma crise de fé.

Escrito por Scorsese e Jay Cocks, o longa segue os percalços de Sebastião Rodrigues (Andrew Garfield) e Francisco Garupe (Adam Driver), missionários portugueses para encontrar no Japão feudal o seu professor e mestre, o padre Cristóvão Ferreira (Liam Neeson). Famoso propagador da fé jesuíta no país mesmo depois do cristianismo ter sido proibido pelo governo, Ferreira segundo os rumores renunciou a sua fé perante o temível inquisidor Inoue (Issei Ogata), uma informação que sozinha ameaça a reputação da Igreja em seus esforços de disseminação. Buscando saber a verdade e reforçar os laços clandestinos da religião no local, a organização envia os dois sacerdotes, que logo percebem que há algo a mais em jogo.

Se em termos estruturais o filme é bastante fiel ao livro - as únicas maiores "mudanças" vem dos esclarecimentos visuais sobre o fim da história, bem como o posicionamento real do fiel Kichijiro (Yosuke Kubozuka) -, na narrativa Scorsese encontra um bom espaço para trabalhar a relação de Rodrigues com seu arco de provação pelo viés da ilusão que tanto o agrada em produções do tipo. Uma ilusão que vem não no sentido de satirizar os movimentos do missionário, mas de criar instabilidades no suposto martírio que ele e seus fiéis japoneses encaram em favor do Deus cristão.

Este questionamento é muito similar ao dos outros três filmes do diretor centrados no tema da fé citados acima, mas é com a cinebiografia do Dalai Lama que Silêncio no fim tem maiores semelhanças estruturais. Assim como em Kundun, Scorsese trabalha aqui a dúvida do protagonista com sua própria posição religiosa como um elemento central da jornada: se Rodrigues chega no Japão crente de que está lá para auxiliar os fiéis japoneses clandestinos a qualquer custo, ele aos poucos começa a entender que quem está mesmo sob um teste de fé é ele.

É algo anunciado de forma desapercebida na abertura do filme - as névoas cobrem o cenário no qual Ferreira abdica de sua posição sacerdotal de forma a sugerir tanto um misticismo quanto a dúvida sobre o ato -, mas este viés duvidoso da posição de Rodrigues é a partir da metade o que configura a real potência do longa e suas intenções. Do momento que o intérprete vivido por Tadanobu Asano anuncia ao padre que ele "abraça ilusões para as chamá-las de fé" em diante, a história vira o jogo: não é mais o martírio dos fiéis - que pagam com a vida em mortes lentas e extremamente dolorosas - o objeto a ser questionado pelo espectador, mas sim a ilusão do missionário em relação à nobreza de suas intenções.

Esta virada, vital às pretensões da obra, é também talvez o motivo que levou Scorsese a ter tamanho interesse pela história por tanto tempo. Pois se há um elemento comum a todos os longas ficcionais do cineasta é esta convicção no sistema como uma estrela-guia que nunca se move, com a falta de fé (pela crise pessoal ou, como é mais comum, a traição) servindo de clímax fundamental para a verificação de sua eficácia.

No caso de Silêncio este momento final de atestamento cai na armadilha da reafirmação da crença que já é típica ao cinema do diretor (o último plano principalmente), mas ao mesmo tempo ele evita manter em curso a legitimação dos atos anteriores que seus outros filmes de fé realizavam sem pensar duas vezes - A Última Tentação, por exemplo, não poderia destituir o valor do sacrifício de Jesus apenas porque este desejou a posição humana em detrimento da condição divina. Despido desta convicção, o filme concebe um ponto de crise não resolvido que o faz se sobressair em relação aos outros trabalhos de Scorsese sobre o tema, alimentando uma desilusão que lhe é benéfica agora e muito promissora para o futuro.

Nota: 8/10

quarta-feira, 1 de março de 2017

Crítica: Logan

Última participação de Hugh Jackman como Wolverine encontra no faroeste réquiem para o personagem. 

Por Pedro Strazza.

Além da tão prometida maior violência pelo qual o longa desde o começo de sua divulgação usou para se vender - e que entrega, em meio a decepamentos de membros, jorros de sangue, palavrões e até um peitinho - Logan evidencia a influência do sucesso de Deadpool em sua concepção por uma tomada de consciência do gênero ao qual pertence e que de súbito é adquirida neste terceiro capítulo da série solo de Wolverine. Esta lucidez da própria posição ocupada pela produção, porém, está longe do tom cartunesco e de sátira em que a adaptação do herói interpretado por Ryan Reynolds se situava, assumindo uma postura mais séria e de puro revisionismo para servir ao propósito inicial de encerrar a passagem de Hugh Jackman pelo papel do protagonista.

Neste sentido, o longa dirigido por James Mangold de fato funciona como um último capítulo, um filme de pontos finais para o personagem e o mundo em que vive. O ano é 2029, e com ele surge a informação de que os mutantes estão em extinção e que Logan é junto do Professor Xavier (Patrick Stewart, também em sua última aparição na franquia) e do antigo vilão e agora colega Caliban (Stephen Merchant) um dos últimos de sua espécie. O antigo Wolverine aparece debilitado e no auge de sua síndrome auto-destrutiva, mas isso é interrompido depois de uma mulher misteriosa (Elizabeth Rodriguez) o encarregar de cuidar de uma garota chamada Laura (Dafne Keen), uma rara jovem mutante perseguida por um grupo de mercenários que logo demonstra possuir várias semelhanças com o herói.

Mangold e os coautores do roteiro Scott Frank e Michael Green não demoram para deixar claro o flerte da obra com o faroeste, gênero tradicional dos Estados Unidos e mais propenso nas últimas décadas a revisitar suas histórias e arquétipos clássicos sob um olhar crítico. Ainda que se comporte como uma típica trama de travessia - a jornada do grupo liderado pelo Carcaju para levar Laura a um local seguro enquanto é perseguido pelo grupo do mercenário Pierce (Boyd Holbrook) emula em alguns momentos os últimos dois Mad Max - Logan é muito mais ancorado em filmes como Os Brutos Também Amam (que ganha uma referência direta) e principalmente Os Imperdoáveis, trabalhos interessados em analisar as relações de violência e concepções de mito aos quais o gênero se estabelece, para reforçar o caráter testamental da produção em cima da figura do personagem incorporado por Jackman, que encontra-se aqui determinado em legitimar a elegia de um papel que carrega há quase 17 anos.

Essa proposição, tal qual a violência presente em toda a narrativa, logo se torna em uma ambição que acaba por fazer muito bem ao arco do Wolverine e ao longa no geral. Se os confrontos sangrentos permitem a Mangold enfim tornar palpável o trauma de isolamento pela brutalidade ao qual o protagonista se submetia em caráter muito atenuado nos antecessores (incluindo aí todos os X-Men), a adequação da série ao revisionismo e ao gênero potencializam as relações entre os personagens que sempre foram o ponto mais forte de seu cinema, seja na construção familiar entre Logan, Xavier e Laura ou no jogo de duplos posteriormente revelado como desafio final do herói para superar seu lado animalesco e enfim encontrar a paz interior. São estas relações inclusive que seguram a obra em seus momentos mais fracos, seja no excesso à exposição (o "documentário" da enfermeira, a repetição da comparação com a garota) ou nas cenas na fazenda da família do personagem de Eriq La Salle que pesam a mão para manter a referência ao faroeste de George Stevens em voga.

A decisão por uma consciência narrativa de encarar Wolverine como mito a ser preservado, por outro lado, também acarreta em uma questão de legado ao qual o filme parece reticente de explorar. Se a produção não hesita na hora de invocar referências para corroborar a noção do mutante como ideal (a obra-prima de Clint Eastwood é o norte mais claro nestes momentos), ela não faz o mesmo quando precisa extravasar esta imagem a outros personagens e fazer sentir o efeito que o herói possui com os outros - o maior exemplo é o relacionamento com Laura, a óbvia herdeira de sua posição, feita antes para motivá-lo a cumprir seu papel uma última vez que evidenciar sua influência sobre ela. Logan é acima de tudo dedicado ao arco de seu protagonista e somente isso, algo que pode se provar uma decepção quando chega o final e a hora de realizar a passagem do bastão.

Este viés do longa, porém, acaba diluído dentro da proposta sobre o protagonista, que carrega no réquiem de um personagem duradouro no imaginário coletivo uma força emocional muito grande - são dezessete anos de história, é bom lembrar. E é por saberem muito bem da potência deste fim - e usarem esta consciência a seu favor - que Mangold e Jackman conseguem fazer de Logan um filme de despedidas tocante, que tira de cada momento do ator com o personagem um sentimento de fim inevitável que talvez só o faroeste pudesse oferecer.

Nota: 7/10