sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Crítica: Dois Dias, Uma Noite

Os 16 desafios de Marion Cotillard

Por Pedro Strazza

O cotidiano sempre oferece histórias interessantes, e o cinema é muito consciente disto. Em meio às suas biografias glorificantes e seus épicos estrondosos, a indústria cultural e seus envolvidos encontram no dia-a-dia da sociedade tramas repletas de intrigas, reviravoltas, momentos cômicos e dramáticos e (principalmente) de personagens profundos, às quais transmite ao grande público por meio de suas grandes telas e seus exageros artísticos - pois afinal, quem gostaria de assistir a um filme que não tenha um pouco da famosa "fantasia do cinema"?

A resposta são os irmãos belgas Luc e Jean-Pierre Dardenne, que preferem não se utilizar desses excessos para contar suas histórias ambientadas na dura realidade e provam isso mais uma vez com este Dois Dias, Uma Noite. Com roteiro e direção da dupla, o longa acompanha Sandra (Marion Cotillard), uma operária que certo dia descobre que está prestes a ser demitida do lugar onde trabalha após uma votação entre seus 16 colegas sobre escolher, em tempos de recessão econômica, entre ou o bônus de final de ano ou o emprego dela. Conseguindo um novo sufrágio, ela e seu marido Manu (Fabrizio Rongione) tem então dois dias (e a uma noite do título) para conseguir convencer a maioria dos trabalhadores a mudar o voto e desta maneira manter a sua vaga no trabalho.

Com uma estrutura narrativa simplória - e que nunca deixa de negar esta condição - em mãos, os irmãos Dardenne realizam um curioso estudo em cima de sua protagonista. De frágil condição psicológica, Sandra, através de suas crises de choro e dos comprimidos que toma repetidas vezes, demonstra uma instabilidade latente a cada pessoa contatada e resposta recebida, mas por precisar de seu emprego ela é obrigada a sempre ter de encontrar forças para continuar na luta por ele. Para isso, os diretores (também autores do roteiro da produção) filmam Sandra e suas ações em longos planos, optando sempre por não mostrar diretamente seus momentos de maior vulnerabilidade quando estes acontecem - só reparar, por exemplo, na maneira como vemos ela se medicar ao longo da projeção.

Ainda sob esse aspecto, a atuação de Cotillard é decisiva para o filme, pois incorpora todas as dores sentidas à seu movimento e postura para evidenciar o quão alquebrada é a delicada personagem. A atriz também é muito eficiente ao mostrar de forma clara que Sandra, em meio à sua fragilidade, de fato se importa com seus colegas de trabalho e seus problemas econômicos, mesmo estes sendo responsáveis por decidir o rumo da vida dela e de sua família.

A abordagem narrativa dos outros funcionários é outro ponto forte da obra. De diferentes origens sócioeconômicas, mas ainda assim carregados de problemas muito parecidos, os operários procurados pela protagonista tem seus entraves e deficiências financeiras evidenciados para o espectador por elementos visuais claros como filhos e casas. As crianças, por sinal, ganham na visão dos Dardenne uma atribuição levemente negativa, simbolizando um motivo a mais para seus pais estarem em uma situação mais complicada para pagar as contas.

Centrado em uma protagonista de personalidade profundamente fragmentada e que vive em uma sociedade prejudicada pela economica, Dois Dias, Uma Noite é mais um trabalho interessante dos irmãos Dardenne focado no drama real do cotidiano. Para os cineastas, não importa se o ser humano é frágil ou forte, mas sim se este é capaz de sobreviver aos desafios da rotina.

Nota: 8/10

Crítica parte da cobertura da 38° Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (2014)

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