quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Crítica: Jackie

Pablo Larraín traça retrato de tragédia americana com contornos de fim de reinado.

Por Pedro Strazza.

Não é apenas pela fotografia de planos fechados que se percebe em Jackie que a produção não seguirá os moldes das cinebiografias ou mesmo dos dramas de luto convencionais. Novo trabalho de Pablo Larraín, o longa sobre Jacqueline Kennedy nos dias posteriores ao assassinato de seu marido e presidente dos Estados Unidos John F. Kennedy evidencia aos poucos e por elementos pequenos que há algo a mais em jogo na narrativa elaborada pelo cineasta chileno no esforço de acompanhar os movimentos políticos e particulares da ex-primeira-dama para lidar com a tragédia que cerca ela e seus filhos.

A mera menção à presença de ações da viúva que envolvam o Estado no momento de transição ao qual ele (e também ela, claro) é forçado a se submeter já é um indício do quão envolvido a cinebiografia está com o estilo do diretor, que repete no filme sua conhecida metodologia de análise de imagem e poder sob os espectro de uma realidade fantástica. Esta lógica do cineasta, porém, ganha agora contornos muito mais ambiciosos graças à mudança de enfoque inerente: Se em trabalhos anteriores Larraín estava atento ao Chile e (inevitavelmente) à ditadura passada pelo país em tempos recentes, com esta cinebiografia ele tem pela primeira vez a oportunidade de enfocar os Estados Unidos e seu processo histórico.

É a maneira como se encara o país e sua História que potencializa os propósitos do filme, cuja temática central reside justamente na aflição de indivíduos para deixar sua marca para a posterioridade - algo exposto sem muita elegância por Bobby Kennedy (Peter Sarsgaard) em determinado momento da narrativa. Como no recente Neruda, Larraín trabalha os eventos históricos de Jackie sob a dualidade do que é feito e o que é contado, mas agora também traz à pauta a noção do espetáculo em seu teor mais mórbido para trabalhar a figura de Jackie (Natalie Portman), protagonista consciente do próprio papel histórico da vez, em sua saída do poder. Atormentada pela morte do amado, a ex-primeira-dama tem no longa a difícil tarefa de legitimar a posição histórica do marido pela realização de um trajeto fúnebre grandioso, e para isso acontecer ela precisa enfrentar pessoas que buscam fazer da natural transição política um evento pequeno e sem maior alarde.

Estes dois conflitos - tanto o interior da viúva para solucionar a questão em mãos quanto da protagonista contra aqueles que a cercam - conduzem o filme pelo meio político, e conforme estes se aproximam de suas resoluções o diretor revela uma concepção do governo do país que ambiciona a forma palaciana. Isso não apenas surge na recorrência da canção final do musical Camelot (aqui convenientemente apresentada como música favorita do falecido) mas também na do programa televisivo no qual Jackie abre a Casa Branca à população: nestes momentos, o longa ensaia uma transformação da família Kennedy em uma realeza que a sociedade americana sempre almejou mas nunca possuiu, um legado que torna a protagonista e seu marido eternos no imaginário do país - o plano final do longa, inclusive, serve para reforçar esta posição da produção.

O que enfraquece os anseios de Larraín com os Kennedy, porém, é que neste processo de emancipar o casal como dono de um reinado posto em decadência de forma súbita ele acaba por deixar de lado o drama de luto ao qual sua protagonista passa. Se Portman realiza uma performance ímpar de humanização sobre Jacqueline ao incorporar seus trejeitos e a dor sentida pela perda do marido - um campo no qual a atriz é mestre já há algum tempo, como prova a cena em que sua personagem lava no chuveiro o sangue do marido do próprio corpo - o diretor por sua vez não consegue encontrar outra forma de canalizar este sofrimento que não seja pela exposição constante, reduzindo estes momentos a situações particulares - o passeio da protagonista pelos salões da residência presidencial, a conversa com um padre (John Hurt) - e quase isolados para não obstruir sua análise política.

Assim, cria-se em Jackie uma sensação de eterna artificialidade, no qual os personagens soam irreais na hora de atuar como humanos - quando a protagonista está no avião prestes a desembarcar com o corpo, por exemplo, sua preocupação maior é com o vestido que usa, com a aparência que exibirá frente ao público ao passar com o corpo de JFK. Larraín tem no filme todos os elementos para tornar real o seu registro particular de um dos momentos mais frágeis de uma das nações mais poderosas do mundo, mas o retrato de uma nobreza em formação que tanto ambiciona acaba suprimido pela ausência de um drama palaciano que justifique sua existência.

Nota: 6/10

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