quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Crítica: A Garota Dinamarquesa

Relato de época sai prejudicado por abordagem conservadora de relações de controle.

Por Pedro Strazza.

"Os homens se sentem envergonhados em se submeter a uma mulher" afirma a protagonista Gerda Wegener (Alicia Vikander) para um cavalheiro enquanto pinta seu retrato, logo no início de A Garota Dinamarquesa. Com uma piteira no canto da boca e olhar decidido, a pintora demonstra neste momento estar em total controle da situação, dominando todos os movimentos do nitidamente intimidado homem à sua frente com comandos rápidos e incisivos. Mesmo seu cãozinho, que encontra-se descansando ao lado do cavalheiro, atende a suas ordens silenciosas com velocidade, em sujeição similar à do homem.

A cena acima tem propósitos cômicos, porém se torna em um pontapé comparativo inusitado para toda a história ao qual o filme dirigido por Tom Hooper se propõe a ser. Baseado no livro homônimo de David Ebershoff e dedicado a narrar a sequência de acontecimentos que levou o marido de Gerda e também pintor Einar (Eddie Redmayne) a ser um dos primeiros indivíduos a se submeter a uma cirurgia de mudança de sexo e assumir em definitivo sua real identidade, Lili Elbe, o cineasta inglês e a roteirista Lucinda Coxon mostram-se mais interessados no impacto desta drástica mudança na vida da pintora que seu cônjugue, em como ela lida com a troca de gênero do amado esposo ao qual nutria um casamento feliz. A jornada de metamorfose de Einar para Lili ainda é central aos fatos e ele decerto tem o protagonismo, mas a narrativa concentra-se em Gerda e suas emoções.

A grande razão para esta abordagem surge de uma concepção simples e ligada ao controle que a protagonista exibe ao pintar o retrato. Gerda de início é mostrada como o indivíduo dominante na relação, seja nos diálogos sobre seu relacionamento (seu relato em uma festa da maneira como o casal se conheceu é bastante revelador neste ponto) ou na submissão nada disfarçada do marido para ela, mesmo que Einar seja entre os dois o pintor melhor pago naquele momento. Na totalidade de seu primeiro ato, parece faltar a A Garota Dinamarquesa apenas a menção ao velho ditado conservador "Por trás de um grande homem sempre há uma grande mulher", realizando na tela toda a dimensão de poder existente da frase.

Este parâmetro, porém, começa a ser desmembrado por Hooper a partir do surgimento de Lili, que não só altera a dinâmica dos dois mas também questiona o papel da mulher em tal relação. Pois apesar de ascender profissionalmente quase que em simultâneo à queda da persona Einar, Gerda perde o rumo conforme o marido se transforma diante de seus olhos e assume seu eu verdadeiro, como se seu norte se desfizesse e a deixasse desencontrada na escuridão de uma densa mata. Não há mais em suas mãos alguém que ela possa apoiar e buscar conforto nos momentos mais difíceis, e Vikander incorpora isso na personagem com a sutileza necessária.

O problema desta elaboração estabelecida pelo longa é que ela esbarra em dois obstáculos. O primeiro, claro, é o machismo inerente à sua base de sustentação, que presume a mulher como mera pessoa de bastidores para o marido. Hooper ainda tenta disfarçar isso ao abrir espaço na trama para a vida profissional da protagonista e seu contraste com a do marido, em trajetória oposta à dela, mas fracassa porque no fim Gerda termina o filme já com um novo homem (o negociante de arte vivido por Matthias Schoenaerts) para dar suporte ao invés de realizada no mundo das artes.

O segundo, e mais grave, é que nessa relação de dominância a obra acaba por fazer da transsexualidade um mero canal para essa, negando sua existência como óbvio terceiro elemento na história. Einar se torna Lili menos por ela ser sua real identidade e mais porque esta o possibilita de retomar o "controle" da situação. O hospital onde ela realiza a cirurgia, inclusive, traz uma materialização curiosa desta fórmula equivocada, onde o homem precisa se tornar mulher para ganhar alguma atenção do próximo.

A abordagem é das mais conservadoras, mas não impede que o filme encontre uma ou duas boas ideias para retratar a metamorfose de Lili, a bem da verdade o atributo mais chamativo da produção. Os esforços de Redmayne para passar esta mudança ao espectador da maneira mais sutil e ao mesmo tempo escancarada (a cena na casa de strip é o melhor exemplo dessa metodologia), o ótimo trabalho de figurino de Paco Delgado em exibir a instabilidade emocional passada pela transsexual por suas roupas e o uso dos quadros de paisagem pintados por Einar para no plano elaborar sua sensação de isolamento do mundo funcionam em seus intentos, mas não escondem os problemáticos tratamentos da produção a temas tão importantes e atuais.

Nota: 4/10

0 comentários :

Postar um comentário