quarta-feira, 6 de abril de 2016

Crítica: A Senhora da Van

Com subtextos interessantes, comédia acaba sabotada pelo próprio tom.

Por Pedro Strazza.

Apesar de se passar na Inglaterra dos anos 70 e não chegar a mostrar de fato alguma preocupação maior em ilustrar as mudanças sociais ocorridas do período, A Senhora da Van parece contradizer a própria ingenuidade de sua premissa em alguns momentos. De certa forma, o estudo realizado pelo filme de Nicholas Hytner em cima da curiosa figura de Mary Shepherd (Maggie Smith) quer ir muito além da simples proposta de descobrir a real identidade da senhora que vive em uma van decrépita e pintada em amarelo berrante.

Sob que viés Hytner aborda a protagonista e sua história torna-se então na principal questão a ser resolvida pelo filme, que parte das lembranças do escritor e dramaturgo Alan Bennett - aqui também autor do roteiro e no longa interpretado por Alex Jennings - sobre a senhora da van do título e o período de quinze anos no qual ela viveu na garagem de sua casa. Pois enquanto diretor e roteirista na superfície recontam o causo com toques de humor, apelando bastante para o carisma de Maggie Smith e as reações à sua presença, a obra manifesta nas entrelinhas a busca por alguma ressonância com o contexto político-social da época ao qual se insere.

Um contexto, a bem da verdade, mais em formação do que estabelecido, ao passo que A Senhora da Van se mostra propenso a evidenciar em tela os alicerces sociais que levariam a Inglaterra a mergulhar no neoliberalismo com a eleição de Margaret Tatcher ao cargo de primeira-ministra nos anos 80. Hytner procura deixar claro isso pela reputação de Shepherd no bairro, com os vizinhos elitistas de Bennett se recusando a ajudar ou mesmo permitir que ela estacione seu veículo na rua por deteriorar a reputação da região, enquanto aqueles dispostos a auxiliá-la são retratados quase como hippies inibidos e ingênuos. A ranhetice da idosa não ajuda, claro, mas é somente por sua presença que ela já é desconsiderada por todos ao seu redor, em uma espécie de prenúncio ao mesmo tempo agourento e bem-humorado do efeito da política empreendida pela Dama de Ferro na população inglesa da época.

O longa seria bastante feliz em seus intentos se enveredasse apenas por esse lado, mas a produção de Hytner tem dificuldades visíveis de alinhar esse retrato subentendido ao tom da narrativa e à própria exploração do passado da protagonista. Se o filme sabe tratar de temas políticos sem dar peso desnecessário e até incongruente com a leveza da história, o diretor aposta demais em uma comédia de situação em cima da relação de Bennett e Shepherd que contribui pouco ou nada à obra, e isso acaba escancarado nos momentos em que se revela mais sobre o passado trágico da idosa. O arco do escritor em sua relação autor-personagem, enquanto isso, é outro que acaba descaracterizado por esse viés superficial da trama, rasificado a ponto de se tornar periférico e até desconexo dos eventos da história.

Se tudo falha no direcionamento dado ao longa, Hytner e Bennett acabam salvos pelo trabalho de Smith como a personagem principal. A octagenária atriz britânica parece ser a única na produção a entender o sensível equilíbrio entre drama e comédia do roteiro, incorporando à personagem uma personalidade tanto densa quanto sutil e que saiba trabalhar humor e dor sob a mesma intensidade. Uma característica bastante vital a A Senhora da Van, mas que visivelmente acaba por faltar a esta quando ela é mais necessária.

Nota: 5/10

1 comentários :

Permitam-me colocar uma outra visão deste filme, atemporal, desligada do contexto de época, e mais universal.
O autor mostra um aspecto muito interessante da experiência humana. E o filme prende até o final, quando então revela e explica os porquês que levam uma pessoa a sair de um caminho "socialmente normal" para uma vida "marginalizada".
Uma excelente reflexão sobre como é perigoso se fiar nas aparências e nos rótulos de preconceito que abundam na sociedade contemporânea.
Ótima película!

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