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Deadpool 2

Continuação tenta manter a subversão do original enquanto se rende às convenções hollywoodianas

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domingo, 10 de fevereiro de 2019

Crítica: Vice

Adam McKay confunde sátira com escárnio em cinebiografia tomada pela ira.

Por Pedro Strazza.


A política dos Estados Unidos nunca deixou de pautar as comédias de Adam McKay, mesmo quando seus projetos descambavam para o completo besteirol. Por mais "inocentes" que fossem na superfície de sua escatologia e ridículo, longas como Quase Irmãos, Ricky Bobby e os dois O Âncora carregavam nas entrelinhas críticas ácidas a modelos de conduta dos norte-americanos, num jogo que servia ao diretor para ressaltar a hipocrisia por trás do conservadorismo de uma sociedade disposta a colocar no poder pessoas que pregavam a família e o divino acima de tudo. É um procedimento, vale acrescentar, que o cineasta nunca executou com sutileza, a exemplo de Quase Irmãos cuja abertura é literalmente uma fala do então presidente George W. Bush sobre núcleos familiares.

Mas depois de passar quase duas décadas dedicando este esforço de sátira por segundas vias, McKay enfim tem em Vice a chance de direcionar seu cinema aos republicanos do governo Bush e, claro, o vice-presidente Dick Cheney, em sua visão responsáveis pela preservação de tal lógica no início do século XXI e por isso mesmo (e pelo menos até a administração Trump) seus maiores vilões. E é uma frontalidade que o diretor abraça sem o maior medo, graças a toda uma "reputação" de autor que conquistou com o sucesso de A Grande Aposta: o filme logo nos primeiros momentos faz questão de retratar Cheney (Christian Bale) em uma posição humilhante, sendo parado pela polícia por dirigir tão bêbado a ponto de ser incapaz de se levantar da cadeira de motorista.

É exatamente este viés de humilhação, de oferecer poucos espaços para qualquer tipo de humanização que toca a narrativa do longa. Enquanto o roteiro de McKay busca organizar a história de vida de Cheney intercalando o processo político que o levou ao poder com relances do monstro que ele se tornaria enquanto vice-presidente do país, sua direção não hesita em ressaltar o quão patético era a pessoa por trás da figura do monstro. É uma condição a se tornar mais clara nos golpes fáceis a exemplo de todo o retrato da juventude delinquente do político - e cujo clímax óbvio é a cena da bronca da esposa Lynne (Amy Adams) -, mas até em cenários onde Cheney poderia ganhar pontos com o público o filme parece se divertir em ressaltar as hipocrisias do personagem pelo humor: no momento em que a filha Mary (Alison Pill) revela aos pais ser lésbica, por exemplo, a câmera de McKay parece se concentrar na dinâmica entre Dick e a esposa, enfocando a maneira como a última julga o marido por trair ideais ao aceitar a sexualidade da cria.

O principal objetivo de Vice, porém, é o ato de jogar os holofotes sobre o político e os republicanos que comandou para expor na telona todos os seus atos vis enquanto vice-presidente, especialmente seu assalto ao poder em meio ao caos do 11 de setembro e tendo em vista a posição de banana do então presidente Bush (retratado como verdadeira caricatura nas mãos de Sam Rockwell). Para tanto, McKay não economiza na metáfora e exposição para dispor ao espectador todos os motivos e elementos que levam Cheney a conseguir colocar em prática na política americana a tal da teoria do poder executivo unitário, que o permitiria ter controle total sobre o sistema do país e executar a máquina direcionada a seus interesses - e é esta ira do diretor perante o mal uso das instituições pelo oficial quem no fundo move a produção a todo instante, até porque são estes atos vis retratados que viriam a pautar todos os rumos da próxima década de uma sociedade da qual ele e o público se inserem.

Esta postura raivosa do filme sobre os fatos relatados em teoria seria suficiente dado o nível das consequências dos atos de Cheney em sua manipulação dos mecanismos políticos do país, mas no fim é também ela quem leva o longa à lona mesmo antes da luta começar. Se McKay tem toda uma irritação para converter na produção, esta por sua vez parece ser acometida por uma condição de momento no qual a cada passo dado se faz necessário criar um tom jocoso próprio para expor a farsa em andamento, uma metodologia que na montagem estilizada de Hank Corwin só contribui para tornar o projeto desencontrado. Não ajuda também, claro, o fato de que ao contrário de A Grande Aposta o diretor aqui assina o roteiro sem tomar qualquer material (um livro, uma pesquisa) como base, um fator que talvez explique o porquê de Vice soar tanto como um exercício reacionário - algo em si contraditório, dado a clara postura liberal de McKay - quanto cafona e bobo nas metáforas e alegorias propostas.

Assim, o que começa como vingança aos poucos descamba para uma explosão emocional sem direcionamento, um stand-up de ira que não sabe diferir a sátira do escárnio. Vestidos de versões mais fidedignas de celebridades parodiadas pelo SNL, Bale e Adams só tem como dar voz a este jogo perverso  pela consciente aceitação do desastre em andamento, equilibrando-se a passos trôpegos entre o humor sádico e o que quer que reste de sobriedade ao projeto para viver cenas patéticas como o solilóquio shakespeareano (é difícil não revirar os olhos ao paralelo com Macbeth) e manter a produção longe da ofensa pura e simples. Não há espaço para personagens ou uma trama no filme, mas sim uma sequência de comentários irônicos mal costurados.

O que mais entristece em meio a tudo isso, porém, não é apenas a oportunidade perdida de se fazer uma investigação a uma das figuras políticas mais nefastas e importantes do cenário político estadunidense moderno, mas também a aparente ingratidão de McKay com as origens de seu próprio cinema e mesmo seu público. Além do aceno à desatenção do público com a realidade à sua volta feito por A Grande Aposta se converter aqui em moral condenatória - o discurso de Cheney ao espectador, com seu "Eu apenas os servi", é o momento em que Vice efetivamente assume e escancara a chacota para o próprio público -, a cena pós-créditos ainda vem para confirmar esta tendência e ampliá-la ao escopo do "sistema", apontando o dedo a tudo e todos como um velho louco e paranoico que só brada aos quatro ventos que é tudo uma grande piada de mal gosto - algo que não deixa de ser uma grande ironia se considerar o locutor da vez, veja bem.

Nota: 3/10

sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Crítica: Podres de Ricos

Comédia romântica inova clichês do gênero com elenco 100% asiático.

Por Isabela Faggiani.

Podres de Ricos, que chega essa semana aos cinemas brasileiros, foi um dos filmes mais esperados do ano, e teve um sucesso espetacular nos Estados Unidos. À primeira vista, parece que é apenas mais uma comédia romântica com uma trama conhecida: a garota de classe média baixa que se vê namorando um ricaço e precisa conquistar a aprovação da família dele, mas a história é muito mais que isso. Começando pelo fato de que quase todos os envolvidos são asiáticos ou descendentes de asiáticos, desde o diretor, John M. Chu, até os figurantes. Difícil mesmo, é achar algum caucasiano no longa. 

O filme é claramente feito para o público ocidental, com o roteiro em inglês, baseado no livro Asiáticos Podres De Ricos, de Kevin Kwan. A importância desse longa para os asiáticos que vivem no ocidente pode ser comparada à importância de Pantera Negra para o público negro. Isso ocorre porque a representação asiática nos cinemas ocidentais quase nunca foge de clichês como “o asiático nerd” ou “o lutador de artes marciais”.

A história acompanha Rachel (Constance Wu), uma professora de economia sino-americana que nunca havia viajado para o seu país de origem, apesar de falar a língua. Ela namora Nick, porém nunca havia conhecido a família dele, que mora em Singapura, até ele a convidar para o casamento de seu melhor amigo. O que ela não esperava, porém, foi a descoberta de que Nick (Henry Golding) faz parte de uma das famílias mais ricas e famosas da Ásia. O título do filme é completamente honesto nesse aspecto: a riqueza da família é imensurável.

No filme, a prima de Nick, Astrid Young (Gemma Chan), mesmo tendo a própria trama, é secundária, porém é a história dela que mostra a possibilidade de uma sequência. O livro que deu origem ao filme também a tem como personagem central e faz parte de uma trilogia. Astrid tem que lidar com seus próprios problemas e, a cena final envolvendo ela e Charlie Wu (Harry Shum Jr) apontam que podemos ver mais da família Young nas telonas.

Astrid é uma das poucas personagens que aceita e gosta de Rachel. O resto da família Young e de seus amigos e conhecidos parece não gostar da presença da jovem, principalmente a mãe, de Nick, Eleanor (Michelle Yeoh). Ela não aceita Rachel e quer que o filho volte a morar em Singapura e cuide dos negócios da família. A reprovação se dá ao fato de que Rachel não cresceu inserida na cultura e tradições asiáticas. Isso aborda uma questão importantíssima aos descendentes asiáticos: a sensação de não pertencimento.

Os descendentes de países do leste da Ásia não são vistos como estadunidenses, brasileiros, britânicos, etc., mas também não são vistos como chineses, japoneses, coreanos… Eles não são “ocidentais” o suficiente, mas ao mesmo tempo, por não terem crescido dentro da sociedade de seus pais e avós, também não são considerados parte daqueles locais.

Podres de Ricos sabe abordar muito bem o preconceito contra asiáticos de forma clara, mas sem trazer um tom dramático à trama.  A primeira cena do filme já mostra isso. Ela se passa em uma noite chuvosa na Inglaterra nos anos 90, com Eleanor e seus filhos entrando em um hotel cinco estrelas e falando que reservaram a suíte mais cara. Os funcionários do hotel se recusam a hospedar a família. Eleanor, porém, não deixa barato e logo liga para o marido, que prontamente compra o hotel, mostrando o poder aquisitivo da família.

A cultura hollywoodiana quase não admite o estrelato de pessoas que não sejam brancas, e muitas vezes tira papéis dessas minorias para colocar alguém branco no lugar, como foi o caso de A Vigilante do Amanhã, com Scarlett Johansson no papel de uma personagem japonesa. Por isso, Podres de Ricos, com seu elenco 100% asiático, é um marco na história de minorias no cinema ocidental. Ele se apresenta com uma comédia romântica de qualidade, com personagens complexos e um ótimo roteiro.

Nota: 7/10

sexta-feira, 25 de maio de 2018

Crítica: A Câmera de Claire

De volta aos problemas da vida pessoal, Hong Sang-soo usa olhar distanciado para fazer filme pautado em reconciliações internas.

Por Pedro Strazza.

Embora a coincidência seja tratada pelos fãs e detratores pelas (justas) vias do humor, não deixa de ser uma conversão curiosa a nutrida pelo diretor Hong Sang-Soo em seus três trabalhos lançados no ano passado, respectivamente O Dia Depois, Na Praia à Noite Sozinha e este A Câmera de Claire. Claramente afetado pelo escândalo criado nos tabloides em 2016 por conta de seu caso extra-conjugal com a atriz Kim Min-hee (que não por acaso protagoniza os três projetos), o cineasta sul-coreano parece ter redirecionado a esfera de emoções complexas e provenientes deste momento de sua vida aos seus filmes, que de diferentes formas processam a questão pelas vias de histórias de conteúdos mais ou menos similares. Além de Min-Hee e do ano de produção, as três obras carregam uma mesma premissa de relacionamentos em crise proporcionado (e enxergado) por uma terceira via, a partir disso desenrolando cada uma à seu jeito as questões implícitas deste jogo semitragicômico sempre encenado pelo diretor.

Mas enquanto que O Dia Depois e especialmente o Na Praia à Noite Sozinha traziam para dentro da trama um tom ácido que refletia uma condição de auto-satirização do próprio autor, A Câmera de Claire caminha mais próximo de um processo curativo, não pela via da resolução do conflito mas sim pelo descarregamento de um sentimento de culpa levado pelo cineasta ao longo de quase todo este histórico recente. O longa nunca escapa de assumir um tom jocoso, mas seus desenrolares são muito menos pautados pelo enfrentamento do elefante na sala que pela reconciliação dos personagens consigo mesmos, uma medida por sua vez capaz de revelar um Hong determinado a aceitar sua própria condição perante o caso ou, pelo menos, de enxergar com um olhar mais inocente todos os acontecimentos que o cercaram.

Filmado durante a realização do festival de Cannes de 2016 - ou seja, um pouco antes da notícia do caso estourar nos jornais - o filme conta a história de Manhee (Kim Min-hee), uma assistente da equipe de um cineasta (presente no evento para debutar seu novo projeto) que de repente se vê demitida pela superior sem maiores explicações. Sem rumo após a inexplicável despedida, ela acaba conhecendo Claire (Isabelle Huppert), uma turista francesa na cidade que por meio de suas fotos amadoras acaba revelando sem querer a todos os lados as verdadeiras razões para tamanha confusão.

Por conta do diretor ter começado a trabalhar neste projeto um pouco antes do escândalo, o filme termina sendo menos focado no tema da traição e da perversidade por trás do ato em relação aos seus outros dois contemporâneos, um enfoque que diminui drasticamente qualquer pretensão à auto-chacota do autor. Ao mesmo tempo, porém, esta condição "divorciada" dos assuntos mais pesados permite a Hong que encontre um caminho curativo muito mais forte dentro da obra que se propõe, calcado no ambiente de valor intrínseco ao cinema e nos diversos retratos tirados por Claire ao longo da história. Como a personagem bem propõe na trama, a fotografia é usada pelo cineasta pelo viés do registro em seu tom mais místico, com cada foto transformando automaticamente o fotografado e despindo-o aos poucos da culpa e de quaisquer outros sentimentos ruins que carrega.

Isso não quer dizer, porém, que o diretor tenha abandonado por completo o humor característico de seu cinema em prol de um realismo "mágico" para proporcionar esta purgação de pecados. Seu estilo cômico, em outras instâncias tão voltado ao comentário ácido e subjetivo, assume aqui uma verve mais próxima das comédias de desconforto, ressaltado conforme a situação ao qual seus personagens se inserem vão se revelando cada vez mais ridículas e desprovida de qualquer propósito. Neste sentido, é curioso observar como Hong mais uma vez reinventa a abordagem sobre sua narrativa bem humorada e construída nos planos longos ditados pelo zoom, aproveitando a longa duração de suas cenas para reforçar este peso auto-imposto pelos personagens sob as vias da comédia - e isso chega a acontecer das formas mais descoladas da temática central da produção, a exemplo do primeiro encontro de Claire com o diretor que encontra a piada justo no excesso de cortesia e falta de conteúdo entre os dois.

Mas é na dualidade criada entre Claire e Manhee que Hong no fim encontra uma resolução final aos seus conflitos interiores, impulsionada por esta linha artística envolvendo toda a história. A princípio criado no próprio estranhamento das duas perante o mundo (e neste momento o filme parece acenar para a possibilidade um tanto enfadonha de fazer de Cannes um refúgio das agruras da realidade), o relacionamento entre as duas mulheres é conduzido de forma a proporcionar uma análise mais distanciada da situação passada pela coreana, que graças à amiga e suas fotos se vê livre de seu aprisionamento interior ao apenas enxergar o conflito pelo lado de fora e perceber a banalidade de tudo. Se aos olhos do diretor esta descoberta sirva (mesmo em caráter momentâneo) de conclusão simbólica  a um capítulo difícil de sua vida pessoal, para o espectador o que fica desta tomada de consciência é a alegoria final do que faz o cinema - e as artes - tão apaixonantes em sua efemeridade.

Nota: 8/10

quinta-feira, 17 de maio de 2018

Crítica: Deadpool 2

Continuação tenta manter a subversão do original enquanto se rende às convenções hollywoodianas.

Por Pedro Strazza.

É um fato já consumado pelo público que o primeiro Deadpool, apesar de todos os inúmeros senões, tinha como maior trunfo o elemento de subversão. Renegado pelo estúdio por anos e protagonizado por um personagem movido primordialmente à base do deboche, o filme acabou fazendo sucesso muito porque servia como uma espécie de contraponto a toda a onda de super-heróis surfada pelo mercado, aliviando o peso da repetição maquinária da indústria no seu esforço de tirar sarro e fazer piada com um verdadeiro mundo de referências a superpoderosos e situações heroicas repetidos a cada mês nas telonas. O longa de Tim Miller podia não ser (e não é) a via contrária, mas sem dúvida buscava provocar o mercado por meio de uma purgação de seus pecados mais conhecidos e celebrados.

Já o segundo capítulo, lançado dois anos depois, parte de uma condição que é muito diferente em relação ao anterior, seja em termos de cenário ou mesmo posicionamento da franquia. O sucesso explosivo do primeiro filme impulsionou Deadpool a sair de sua condição "marginalizada" para ser transportado direto ao centro do zeitgeist midiático, chegando a se tornar inclusive o único substituto possível à posição deixada pelo Wolverine de Hugh Jackman no universo dos X-Men. Por mais que tenha se tornado um item mainstream, porém, o anti-herói fez a fama justo por sua condição de escárnio em relação a Hollywood, e é este choque que no fundo move - junto da mesclagem entre ator e personagem - todas as intenções de Deapool 2.

Não é como se a produção abandonasse o gesto subversivo do humor de seu personagem, porém, mas sim o tentasse tonalizá-lo a campos familiares. Embora Deadpool (Ryan Reynolds) mantenha em voga na sequência o seu estilo de comédia infantil e jocoso a todas as partes da indústria (dos filmes do Marvel Studios aos altos e baixos da carreira de seu intérprete) e da narrativa ao qual se insere, fica bastante claro que o longa dirigido por David Leitch amplifica o atrelamento a velhas convenções, agora postas em prol da localização do personagem dentro dos temas e valores da franquia X-Men. O roteiro da dupla Paul Wernick e Rhett Reese - creditados juntos de Reynolds, que ajudou na confecção das piadas - pode não estar interessado em situar o anti-herói no universo dos X-Men (e na real eles brincam com esta possibilidade seguidas vezes, seja na mansão Xavier ou na formação da "X-Force"), mas sem dúvida coloca o personagem em uma trajetória que passa por batidas tradicionais como dilemas do heroísmo e a questão da opressão - que desta vez passa longe dos paralelos com o holocausto e fica próximo da temática do assédio.

Esta tentativa de alocar o protagonista num arco "clássico" no fim das contas acaba sendo um dos grandes problemas da continuação porque Deadpool só funciona como personagem dentro do campo da sátira, um tom que em nada se relaciona com a gravidade dos atos propostos aqui. O filme então parece se partir em dois pedaços inconciliáveis: de um lado a trama mais séria, que parte da tragédia da morte de Vanessa (Morena Baccarin) e encontra reflexo em personagens como Cable (Josh Brolin) e Russell (Julian Dennison), e do outro a piada pura e simplesmente, metralhada por toda a narrativa para atingir tudo e todos. Não ajuda muito nessas horas que o longa também sofra com a síndrome do gigantismo das sequências hollywoodianas, aumentando as proporções em todos os campos graças ao aumento do orçamento.

Neste sentido, Deadpool 2 acaba lembrando muito Kingsman: O Círculo Dourado, outra continuação recente de uma comédia violenta e pautada na base do deboche que acabava rendida ao sistema do qual tanto fazia piada. Além do referencial (se o longa de Vaughn olhava para o cenário passado, o do mercenário zoa o campo presente), a única grande diferença entre os dois produtos está no comprometimento insano de Reynolds em se mesclar ao papel, uma medida que mesmo não tendo como salvar a produção do iminente desastre ainda é capaz de torná-la suportável no jogo de escárnio e auto-sabotagem com a própria figura ao qual o ator se submete. Sua dedicação é tamanha que desta vez beira ao quê de sadismo por conta das constantes deformações realizadas no próprio corpo - um tipo de humor físico que ainda rende bastante aos intentos do longa.

Leitch sabe como usar desta maleabilidade do anti-herói para conduzir um pouco da ação, mas como o humor e a trama estes momentos terminam um tanto à parte no todo bastante desconjuntado que é o filme. É um resultado bastante similar ao Atômica do diretor, vale acrescentar, mas a verdade é que a razão para Deadpool 2 não funcionar está nesta sua dificuldade latente de não encontrar uma base firme para se posicionar dentro da indústria ao qual pertence e ao mesmo tempo quer distância. Sem perceber, a franquia foi digerida pela própria máquina da qual tanto fazia piada.

Nota: 4/10

sábado, 5 de maio de 2018

Crítica: Gringo - Vivo ou Morto

Preso a uma lógica contraditória, comédia de erros se perde no próprio retrato regional que realiza.

Por Pedro Strazza.

Se o sucesso de um subgênero é garantido à partir do momento em que passa a ser executado sob o procedimento mais convencional da repetição de seus gestos e signos, o screwball de humor negro já chegou à consumação final de sua trajetória dentro do cinema estadunidense. Popularizado nos anos 90 por cineastas como os irmãos Coen e Quentin Tarantino, este tipo de comédia já foi tido no passado como item de subversão, mas com o passar dos anos sedimentou-se de tal maneira no imaginário cinematográfico que aos poucos encontrou seu espaço dentro do circuito mais prestigiado do próprio sistema do qual nutria aversão. Seus realizadores mais conhecidos foram incorporados ao mainstream, e por mais que sua crueza e humor ácido não tenham sido abandonados esta produção hoje é encarada com muito mais bons olhos por parte do grande público e a crítica, que abraçaram com intensidade toda e qualquer viés de retrato social do qual o gênero aprendeu a nutrir como maior ambição.

Sob este olhar, não chega a ser uma grande surpresa que produções como Três Anúncios Para um Crime e este Gringo - Vivo ou Morto carreguem entre si uma semelhança notável e difícil de ser ignorada. Os cenários abordados podem ser distintos, mas no fundo as duas produções carregam um mesmo processo de repetição de arquétipos e estruturas típicas de um gênero muito familiar ao espectador e que é utilizado por seus diretores para tentar se estabelecer dentro de um mercado que lhe é estrangeiro. No fundo, a grande diferença é a origem destes dois cineastas e, por consequência, o cinema em que cresceram: enquanto Martin McDonagh veio da Irlanda, Nash Edgerton nasceu na Austrália.

É uma questão de regionalismo muito simples, mas que faz toda a diferença para que os dois filmes consigam soar distintos o suficiente entre si, mesmo não sendo de fato. Se McDonagh realizava o screwball a partir da violência de caráter tribal e do sarcasmo que são típicos da produção irlandesa, o longa de Edgerton tem na ironia irreverente e tipicamente australiana o seu principal combustível para se aventurar pelo subgênero, contando todos os percalços rocambolescos de sua história com altas cargas de humor negro no intuito de desarmar o peso das situações mostradas. O local e o contexto onde a trama se passa, afinal, tem nada de tranquilo, situando-se nas rixas recém-exponenciadas na fronteira do México com os Estados Unidos para narrar uma série de negociações e sequestros embolados e centrados na figura de Harold (David Oyelowo), um executivo prestes a ser demitido da empresa farmacêutica no qual trabalha que é confundido pela máfia mexicana como responsável pelas operações ilegais realizadas por seus superiores (Joel Edgerton e Charlize Theron).

A premissa sugere e tenta se fazer em cima da comédia de erros que são os múltiplos trambiques executados por todos os personagens envolvidos - que variam da dicotomia entre criminosos mexicanos e executivos americanos mesquinhos para figuras menos polarizadas como a de um mercenário em busca de redenção (Sharlto Copley) e a da namorada inocente (Amanda Seyfried) - mas conforme Edgerton vai mostrando claras dificuldades para administrar as viradas sucessivas do roteiro de Anthony Tambakis e Matthew Stone o longa acaba preso à mesma situação de inadequação e incongruência situacional de Três Anúncios, incapaz de abordar ou mesmo reconhecer o retrato que tenta construir destas relações de fronteira tão frágeis do período Trump.

Não ajuda muito também que a comédia mais irônica proposta por Gringo desarme constantemente a obra de qualquer pretensão em simultâneo a este procedimento ambicioso, uma lógica disforme cujas grandes vítimas acabam sendo as atuações do elenco. Todos os atores parecem à deriva nas caricaturas aos quais são forçados a se adequar, desde Theron e sua performance um tanto desgastada de mulher alpinista (cujas maiores habilidades envolvem, claro, a beleza e o sexo) a participações menores como a de Thandie Newton, ótima atriz reduzida aqui a um papel de esposa-troféu quase terciário. Mesmo os atores em teoria com maior espaço para desenvolver a aparente complexidade de seus personagens - como Oyelowo, Edgerton ou Copley - parecem restritos a um comentário irônico sobre relações de trabalho declarado pelo diretor, que repete chavões do meio empresarial em busca de um momento de compreensão superior que nunca chega a acontecer de fato na história.

Proporcionar o "olhar de fora" nunca deixou de ser uma operação muito bem vinda ao cinema, e há diversos casos de diretores imigrantes lendo o cenário "estrangeiro" de uma forma única e capaz de avançar o debate que comprovam o quão benéfico estas intersecções podem ser a uma produção regional. No caso específico de Gringo, o problema não está neste ato de Edgerton em tentar se adequar em terreno diferente de sua origem, mas sim no caráter vazio com o qual este busca cumprir com seu objetivo. Com todas as suas pretensões fracassadas, o filme (bem como seu realizador) termina um tanto reduzido a seu modo de operação idiossincrático, nesta tentativa um tanto constrangedora de conciliar narrativas regionais em busca de qualquer traço de originalidade para ancorar toda a sua estrutura.

Nota: 3/10

quinta-feira, 22 de março de 2018

Crítica: A Melhor Escolha

Richard Linklater canaliza Hal Ashby em filme sobre a crise patriótica americana do pós-11 de setembro.

Por Pedro Strazza.

Como grande parte da produção recente de Richard Linklater (como Boyhood ou Jovens, Loucos e Mais Rebeldes), a premissa de A Melhor Escolha parte de um retorno ao passado que pode ser facilmente confundido com o gesto nostálgico ou de reverencialismo. Além de estar situado em um Estados Unidos do início dos anos 2000 e tratar de militares aposentados, o filme também é baseado em um livro que serve de continuação a A Última Missão, filme de Hal Ashby que rendeu uma Palma de Melhor Ator a Jack Nicholson em 1973 - e como Ashby é uma das influências do cinema de Linklater, é de se esperar um grau de homenagem implícito à obra.

Esta crença inicial de que o novo trabalho do cineasta será feito apenas por mero capricho, porém, aos poucos se dissipa na história, que acompanha os mesmos três soldados do filme original - ainda que com os nomes mudados - em uma nova jornada de carga emocional ainda maior. Se antes a missão do título se referia à tarefa dos soldados Buddusky (Nicholson) e Mulhall (Otis Young) em escoltar o cadete Meadows (Randy Quaid) à prisão, agora é Meadows - apelidado aqui de Doc (Steve Carell) - quem vai procurar os agora amigos Sal (Bryan Cranston, que assume o papel de Nicholson sob a mesma performance expansiva) e Mueller (Laurence Fishburne) para ajudá-lo a enterrar o filho, morto pelo inimigo enquanto servia na Guerra do Iraque.

Tanto A Melhor Escolha quanto A Última Missão são concebidos na mesma jornada de travessia e compartilham a temática maior do patriotismo americano, mas as dinâmicas por trás de seus três personagens não poderiam ser mais diferentes. Lançado próximo ao fim do conflito no Vietnã e com a ressaca moral da derrota militarista estadunidense já anunciada, o longa de Ashby usava muito da crise de identidade nacional e belicista para impulsionar sua desconstrução sobre o personagem de Meadows, que condenado à prisão por um crime bobo no fim mostrava estar aceitando o longo tempo na cadeia apenas por não saber o que era viver de verdade. A produção no fundo era outra das comédias do cineasta dotadas de forte peso dramático e pautadas em um protagonista fechado no próprio mundo, só que impulsionada pela conexão direta ao cenário no qual se situava.

Já esta sequência não-oficial está muito mais ligada às questões de revisionismo de contextos muito específicos ao qual seu diretor anda atrelado nos últimos anos (como os jocks de Jovens, Loucos e Mais Rebeldes), embora reaproveite muito deste equilíbrio entre comédia e drama para sua narrativa pelo viés da sátira - os superiores da hierarquia militar que surgem na tela, por exemplo, estão sempre gritando e sendo inflexíveis apenas porque podem. O longa volta a utilizar a figura de Meadows/Doc como protagonista maior da história (o que não deixa de ser natural, dado a premissa), mas sua atenção recai um pouco mais na dicotomia entre Sal e Mueller, cujos destinos na aposentadoria da vida militar geram dois opostos: enquanto o personagem de Cranston carrega o desencanto nacionalista americano na forma do proprietário de bar que tira sarro de tudo à sua volta, o Mueller de Fishburne traz a continuidade literal de uma crença convicta no sistema sob os trajes de padre que escolheu como profissão. Entre os dois há o Doc de Carell, cuja atuação conduzida na interiorização repercute de maneira silenciosa o dilema de fé instaurado pelo roteiro escrito por Linklater e o autor do livro, Darryl Ponicsan.

Mas por que um dilema de fé? Como em outros trabalhos do diretor, a resposta está intrínseca ao cenário, desta vez no espectro da invasão ao Iraque que paira como um fantasma invisível enquanto os três protagonistas fazem sua jornada para enterrar o filho de Doc no cemitério de sua cidade natal. Há uma crise de valores do patriotismo americano em A Melhor Escolha que nunca chega a ser escancarada como tema maior, uma abordagem que é preterida em prol de um olhar histórico distanciado ao qual a produção tem direito a pertencer - entre o fim do conflito no Iraque e a realização do longa são pelo menos seis anos de distância, afinal. Junto de Ponicsan, Linklater não se interessa muito de tratar ou purgar feridas deixada pelo 11 de setembro pelo filme, mas sim de usá-lo como veículo para enxergar pelos olhos da comunidade militar os sentimentos contraditórios criados pela tragédia e a decisão pela guerra novamente.

Neste viés, a grande tacada de gênio do diretor é a de colocar a história sob uma perspectiva geracional, inserindo à partir da metade um antigo amigo do morto (J. Quinton Johnson) para escoltar o caixão levado pelos três amigos. Longe de deslegitimar o drama da história e junto do tom de "comédia de idosos" e de camaradagem masculina ao qual o filme é intrinsecamente ligado, esta decisão ajuda a sobressair o caráter cíclico e ritualístico da história que é contada e frisar o valor familiar em torno de todas estas questões. É como se Linklater apontasse que a inexistência de uma resolução definitiva a este processo de dor e questionamento não por conta das falhas inerentes ao patriotismo como conceito (uma resolução que talvez fosse muito mais atraente a Ashby no contexto do Vietnã), mas porque estes altos e baixos do nacionalismo do país estão fadados a se repetirem continuamente como verdadeiros ciclos históricos - e nada explicita tanto esta afirmação do diretor quanto o momento em que os três veteranos visitam a casa da mãe do colega há muito tempo morto para contar a verdade sobre o passado distante e descobrem como a realidade já se dissolveu de novo no orgulho patriótico.

Nota: 8/10

quarta-feira, 14 de junho de 2017

Crítica: Baywatch - S.O.S. Malibu

Adaptação almeja desconstruir ideais de sensualidade do original, mas termina refém de sua subversão.

Por Pedro Strazza.

Está claro nas diversas maneiras encontradas na narrativa para satirizar a própria trama que a adaptação de Baywatch - S.O.S. Malibu para os cinemas busca fazer em suas praias paradisíacas e corpos bem definidos o mesmo que os dois Anjos da Lei  fizeram com o cenário colegial do seriado original. Se Phil Lord e Chris Miller encontraram na história  de dois policiais que retornam ao colégio como infiltrados uma forma de subverter os clichês das comédias adolescentes, o diretor Seth Gordon mira agora algo parecido com a cultura do corpo do popular programa dos anos 90, cujos salva-vidas em maiôs e sungas vermelhos ajudaram a propagar a imagem de um Estados Unidos que transpirava sensualidade e libido para o resto do mundo.

A inspiração nas duas comédias está mais para a emulação, mas a proposta não deixa de fazer algum sentido. Em tempos onde o debate dominante na cultura pop é o questionamento da constante fetichização da mulher e a comédia leva as relações de amizade masculina aos limites do homoerotismo, que caminho seria possível para uma nova versão de Baywatch - série conhecida por vender a alta sexualidade de seus personagens como modo de vida - que não fosse o da ironia e do aceno constante ao ridículo daquilo mostrado? Se há um acerto nesta adaptação é o de entender que o seu material não sobrevive sem o seu intrínseco lado superficial, algo que o longa para bem ou mal abraça no ato de relativizar.

Resta então aos roteiristas Damian Shannon e Mark Swift trilhar este caminho, que flerta com a sátira e o humor de situação e brinca com as convenções antigas do seriado e o status da comédia estadunidense atual, adotando um pouco de cada um destes elementos para trazer o material aos tempos atuais. Deste texto, é evidente como o filme de Gordon, embora esforçado em replicar os slow motions característicos do programa, se guia pela rota segura sem pensar duas vezes, repetindo as convenções recentes do gênero e trabalhando a trama em cima da relação do tenente e líder dos salva-vidas Mitch Buchannon (Dwayne Johnson) com o novo recruta, o duas vezes medalhista olímpico e estrela em desgraça Matt Brody (Zac Efron), enquanto ambos investigam uma rede de tráfico de drogas na baía onde atuam junto do resto da equipe - que inclui a segunda em comando (Ilfenesh Hadera), o estereótipo do gordinho nerd (Jon Bass), sua paixonite (Kelly Rohrbach) e o interesse romântico do herói problemático (Alexandra Daddario).

É a partir desta dinâmica de formação de "broderagem" que a comédia passa a trabalhar a fotogenia de seus personagens pela rotina da desconstrução dos mesmos. Seja nas piadas de pinto e tiradas com a figura infantil do personagem de Efron (incluindo uma ótima metalinguística com o passado do ator) que atingem os homens ou no humor recorrente com a câmera lenta nas corridas das mulheres, Gordon opera um filme de esquetes primário, onde mais vale alongar a piada pelo maior tempo possível que cuidar do andamento da trama, formulando um senso de ridículo à produção que não deslegitime a história e a mensagem.

Seria a receita para o sucesso se Baywatch reconhecesse este processo em todas as esferas no qual atua, não impedindo quaisquer partes de realizar e passar por este esculacho. O problema é que o longa não faz isso por completo e, pior, não percebe o erro: ainda que esteja determinado a diluir tudo em um viés superficial, o roteiro de Shannon e Swift preocupa-se tanto em centralizar a comédia em cima da relação dos personagens e do perfil das atuações de Johnson e Efron (aqui refazendo suas performances de outros trabalhos recentes) que terminam por deixar todas as mulheres em uma posição de figurante, restritas ao ato de desfilar com seus corpos pela praia. É como se a produção se tornasse uma variação bizarra de comédia masculina, que anuncia desmistificar a imagem do sex appeal entre homens e mulheres para no fim se ver preso a machismos subjetivos - afinal, nenhuma mulher na trama possui relevância maior além de ser o prêmio ou a maldição aos mocinhos, caso da salva-vidas de Rohrbach ou da vilã interpretada por Priyanka Chopra.

Daí em diante o filme se desmonta, refém do próprio ato de tomada de consciência do qual se estabelece em cima. Se pelos acenos que faz à audiência Baywatch almeja o resgate do ideal de culto ao corpo e à efemeridade do seriado, sua visão de como materializar isso na tela não poderia estar mais ultrapassada, incapaz de reconhecer que a exuberância da sexualidade ocorre na mesma medida em homens e mulheres. E que Dwayne Johnson fique boa parte do longa vestido e a participação de Pamela Anderson aconteça de maneira tão breve e silenciosa (quase na via contrária da do colega David Hasselhoff) talvez sejam os maiores indicativos dos pecados presentes na adaptação.

Nota: 4/10

sábado, 6 de maio de 2017

Crítica: Melhores Amigos

Pelo silêncio, novo trabalho de Ira Sachs trabalha mudanças nos laços comunitários em tempos de recessão.

Por Pedro Strazza.

É curioso como Melhores Amigos encontra algumas semelhanças com o trabalho anterior de seu diretor, O Amor é Estranho, que vão além da mera presença de Alfred Molina no elenco de ambas as produções. Tal qual seu antecessor, o novo longa de Ira Sachs carrega uma análise um tanto quanto inesperada de relações familiares, feita sob o teste das limitações financeiras impostas aos Estados Unidos no cenário pós-crise e que preza acima de tudo pela veracidade de tais conexões frente ao avanço do tempo.

A diferença fundamental vem da natureza deste conflito. Se no longa protagonizado por Molina e John Lithgow eram turbulências silenciosas passadas pelos dois com o restante da família depois do primeiro ser dispensado de seu emprego e eles não conseguirem mais bancar o apartamento onde moram, aqui é a morte do pai de Brian (Greg Kinnear) que o faz entrar em rota de choque com a locatária do espaço localizado no andar térreo do apartamento do falecido, a senhora Leonor (Paulina García), que se recusa a pagar o novo valor do aluguel proposto por eles. A situação delicada atinge em cheio os filhos de Brian e Audrey, Jake (Theo Taplitz) e Tony (Michael Barbieri), que recém-amigos e passando pelos percalços naturais do fim do colégio querem que o problema se resolva bem para os dois lados.

Ainda que a trama seja tratada como uma típica dramédia, intercalando-se entre o cotidiano leve dos garotos com as indisposições de Brian e sua mulher Kathy (Jennifer Ehle) com Leonor, é visível em Melhores Amigos o tom crescente de melancolia que se instaura na narrativa elaborada por Sachs, muito porque o roteiro escrito por ele e o brasileiro Mauricio Zacharias (em sua terceira colaboração com o diretor) torna mais e mais evidente o peso que o aperto financeiro gera nos personagens. Se o longa começa com típicos acenos ao drama de luto, se aproveitando do fato do falecimento do avô de Jake ser o gatilho para a história - a cena na qual Brian chora ao descer para buscar qualquer coisa para o velório e a câmera esconde seu rosto no momento do desmonte, por exemplo -, esta tendência logo se dissipa em prol dos problemas gerados pela falta de dinheiro, uma ausência muito mais imediata a todos os envolvidos.

O aperto nas despesas, porém, é só o meio condutor para o filme se debruçar sobre a questão comunitária, que em caráter silencioso se faz como maior temática da história. Se em O Amor é Estranho o tema dos laços de amizade na comunidade eram restritos a um efeito colateral (com o casal gay precisando dos amigos e familiares para sobreviver em tempos difíceis), em Melhores Amigos a sua durabilidade é posta à prova frente às mudanças geradas pela passagem da posse do espaço alugado por Leonor e o filho, com Brian dividido entre sustentar a própria família e o custo alto de despejar uma pessoa que era tida em alta conta por seu pai. O viés da modernização do bairro do Brooklyn, local onde a trama se passa, surge quase despercebida no filme, como uma desculpa criada pela irmã de Brian, Audrey (Talia Balsam), para justificar o fim da relação com a locatária; o que interessa mesmo a Sachs é este ritual quase cerimonial vivido pelo protagonista, tendo que assumir o posto de patriarca e os dilemas a serem resolvidos por ele - uma das cenas mais fortes do embate entre ele e Leonor, não por acaso, acontece quando ela questiona sua masculinidade pela decepção do pai por ele forçar a esposa ser a responsável pelas contas de sua família.

É um cinema que em alguns momentos lembra os trabalhos de Yasujirô Ozu - principalmente quando as crianças resolvem fazer uma greve de silêncio parecida com a feita pelas protagonistas de Bom Dia -, uma influência que se faz notar melhor na forma como Sachs trabalha a trama sob um viés intimista, filmado em grande parte do tempo entre quatro paredes, disposto a enxergar o que está em jogo para cada um dos envolvidos e o sofrimento silencioso derivado disso. E ter Ozu como referência talvez seja o maior acerto do diretor aqui, ainda mais quando ele decide enfocar as consequências finais do conflito nos caminhos tomados na amizade dos meninos e no espaço criado entre eles. Às vezes, tudo que é necessário para refletir os danos está na distância entre duas pessoas no hall de um museu.

Nota: 8/10

sábado, 25 de março de 2017

Crítica: Fragmentado

"Volta" de Shyamalan concilia fábula e horror com leves rupturas.

Por Pedro Strazza.

Se houve um momento crucial à carreira de M. Night Shyamalan nestes quase 20 anos de altos e baixos na relação com crítica e público, este talvez seja a parceria que o cineasta firmou com a Blumhouse Productions de Jasom Blum. Foi uma decisão que atendeu aos dois lados: se a produtora de terrores de baixo orçamento ganhou um nome de peso para impulsionar as já bastante rentáveis bilheterias de suas produções, o diretor voltou a trabalhar seu cinema de fábula dentro dos moldes do terror que o formou, estando agora melhor conectado a regras e convenções de subgêneros baratos que possibilitam uma melhor e mais imediata aproximação de sua narrativa com o público.

Este retorno é benéfico a Shyamalan também por uma questão de auto-consciência: se em trabalhos anteriores a este período suas belas histórias de fé e espírito ora ou outra esbarravam no posicionamento de que tipo de produção ele queria fazer (algo que com certeza gerou as recepções divididas de obras como A Dama na Água, Fim dos Tempos e A Vila), sua filiação ao terror resolve esta questão ao mesmo tempo que o permite trafegar entre gêneros distintos (a comédia, o filme familiar e também o horror) com melhor naturalidade. É um misto de maior habilidade e precisão que, confundido por alguns como uma "volta à boa forma", tornam A Visita e agora Fragmentado muito mais acessíveis a qualquer tipo de público.

É uma mudança de fim comercial, porém, que no fundo não altera a essência de seu cinema, que continua com as mesmas propensões pelo menos desde O Sexto Sentido. Se os aspectos estéticos e relacionados à forma estão sempre evoluindo nos filmes de Shyamalan, sua missão permanece idêntica: encontrar um respiro na rotina, descobrir-se como um ser de potencial e renovar a esperança em si mesmo. São temas que continuam fortes no seu cinema até os dias de hoje, oscilando talvez entre uma maior e menor presença imediata nas tramas de suas produções.

Mas se as temáticas permanecem inalteradas, como o diretor é capaz de se manter relevante sem se esgotar? No caso de Fragmentado, obra que é seu maior sucesso de bilheteria desde Fim dos Tempos, a resposta está na potencialização de sua forma e no intercâmbio de gêneros realizado por ele em um longa a princípio estabelecido como um terror sádico. No filme, três jovens adolescentes - encabeçadas por uma típica vítima de bullying chamada Casey Cooke (Anya Taylor-Joy) - são sequestradas e enclausuradas em um quarto por Dennis, uma das 23 personalidades que habitam o corpo de Kevin (James McAvoy). De início perdidas e desesperadas sobre o porquê de terem sido vítimas de tal ato, as três logo ficam sabendo que estão ali para servirem de sacrifício à Besta, uma nova e mítica persona de Kevin que está para se manifestar em seu interior.

Alternando-se entre a situação claustrofóbica do cativeiro das meninas com investigações da rotina de Kevin durante o evento e do passado de Casey, Shyamalan desenvolve aos poucos e com um tom menos esperançoso sua narrativa de fábula dentro dos limites da câmara que cerca seus dois protagonistas. O suspense é mais uma vez a linha condutora do diretor, que se aproveita aqui dos relances de profundidade da fotografia de Mike Gioulakis - que emerso no meio com Corrente do Mal dá toques labirínticos à produção, especialmente nas cenas de corredor - para potencializar estas possíveis instabilidades espaciais de um cenário fechado enquanto promove o mesmo equilíbrio entre humor e horror que atingiu com A Visita.

E ainda que mais para frente Fragmentado demonstre estar melhor antenado na temática com outro trabalho de Shyamalan (o qual não vale a pena revelar aqui para preservar os efeitos do longa), é justo com o excelente found footage dirigido pelo cineasta em 2015 que ele está mais próximo no fim, seja por questões formais - a melhor transição e equilíbrio entre os gêneros, o ótimo trabalho do elenco, o uso ressaltado como "consciente" da câmera - ou de formulação - a revelação da similaridade entre os traumas responsáveis por isolar Kevin e Casey passa de alguma forma pelo mesmo eixo de união das duas crianças em sua crise familiar. É um alinhamento não planejado pelo diretor que não exatamente tira força dos jogos de tensão da produção mas fica responsável por escancarar demais o processo narrativo do diretor, antecipando viradas e criando quebras não esperadas entre fábula e horror. E para alguém que esteve sempre disposto à metalinguagem como Shyamalan, estas rupturas podem ser prejudiciais.

Nota: 7/10

quarta-feira, 22 de março de 2017

Crítica: T2 Trainspotting

Continuação se perde na nostalgia, mas encontra no choque de gerações uma maneira de prosseguir.

Por Pedro Strazza.

Lançado em meio à onda de refilmagens e continuações de sucessos do passado que a indústria cinematográfica se encontra nos dias de hoje, T2 Trainspotting carrega um misto de sinais contraditórios que acabam por representar mais o estado da indústria que do mundo. Se o Trainspotting original trazia impresso em sua comédia de humor negro e seus protagonistas viciados em heroína todos os traços do espírito de rebeldia e desencanto sistemático da juventude do pós-punk de meados dos anos 90, a sequência mira um retorno analítico e mais auto-consciente a esta geração e seus tipos, mas involuntariamente termina por tratar dos ecos e dificuldades de relação que as atuais obras "nostálgicas" de Hollywood tem com o próprio passado.

Os indícios desta virada, porém, só irão se manifestar à partir da metade no longa, que de início parece  com sucesso evitar as cacofonias de produções análogas e se assume de fato como uma continuação dos eventos mostrados no primeiro filme. Mais de 20 anos depois do dia que traiu seu grupo e fugiu com o dinheiro da venda de um carregamento de drogas, Renton (Ewan McGregor) retorna à Escócia para ver como anda o pai depois da morte da mãe e também para acertar as contas com os amigos, mas encontra um cenário difícil para todos. Enquanto o violento Begbie (Robert Carlyle) encontra-se preso, Sick Boy (Jonny Lee Miller) e Spud (Ewen Bremner) ainda estão ligados a vícios e vidas à deriva - o último manteve-se na heroína e na vida miserável todos estes anos, ao passo que o primeiro trocou a droga para a cocaína enquanto administra um pub na região portuária e segue tocando esquemas de chantagem.

Se a princípio a trama em nada parece se relacionar com a do original é porque o diretor Danny Boyle e o roteirista John Hodge estão menos interessados na permanência dos vícios de seus personagens - uma temática que permanece presente pelo discurso de Renton sobre substituir "um pelo outro", mas é apenas coadjuvante na narrativa - e mais no efeito que o peso das últimas duas décadas tiveram neles, jovens de uma geração que prezava pelo imediato e inconsequente que não conseguiu escapar da passagem do tempo. É uma medida capaz de tornar a proposta deste novo Trainspotting ousada em termos de análise, ainda mais porque ela aproveita as mudanças do cenário econômico no Reino Unido depois da crise e do Brexit. Se estes homens quando jovens podiam desfrutar da estabilidade econômica como um eterno meio de escape à rotina de vício, na realidade atual eles são confrontados constantemente pela responsabilidade e as dificuldades financeiras de quem vive uma época instável e sem salvaguardas.

É uma questão que na direção de Boyle logo se transforma numa divertida comédia de choques geracionais, alimentada pela noção de que seus protagonistas, antes tão insurgentes, se tornaram numa versão distorcida de velhos conservadores. Da hilária cena do canto contra os católicos no pub unionista aos olhares perdidos de Renton e Sick Boy em uma balada, passando por todos os conflitos familiares de Begbie - que tenta sem sucesso ensinar o "ofício" do crime ao filho, esse "ingrato" que quer fazer a vida pela profissão da hotelaria -, o filme sabe tirar do verdadeiro abismo entre as mentalidades do passado e do presente um humor ácido e observador de costumes, invertendo relações para revelar as raízes do clima dominante de comportamentos extremos de hoje.

T2 poderia muito bem se manter auto-suficiente (e ser melhor que grande parte dos outros filmes sobre a crise europeia, como o vencedor da Palma de Ouro Eu, Daniel Blake) caso se centrasse nisso, mas a partir do momento que passa a abordar o passado suas ambições ficam todas desarranjadas. É um problema que parte da própria indecisão da produção sobre qual postura adotar para com o legado: se de início ela se afirma como uma sequência disposta a tomar os próprios caminhos, prosseguindo a história dos personagens e seus novos trambiques, depois de um tempo ele volta a adotar uma postura autorreferente, se bastando a reposicionar peças e emitir cacoetes nostálgicos do original. A derrapada só fica mais evidente na direção fora de tom de Boyle, cujo exageros estilísticos de planos inclinados, projeções na tela e rabiscos luminosos não são capazes de conciliar as tramas e se perdem na tentativa de emular um tom rebelde e explosivo que em nenhum momento se adequa à realidade vivida pelos personagens.

Se esta mudança de eixo gera uma quebra de narrativa das mais significativas - a partir do momento em que se percebe que tudo ali serve à nostalgia a situação de riscos proposta pela produção perde todo o sentido - ela também termina por servir como um reflexo meio maldito e necessário da síndrome do retorno ao passado ao qual muitas produções, artistas e estúdios se sujeitam nos dias de hoje. É uma condição que o próprio Traisnpotting parece perceber e usar a seu favor, conforme ele aos poucos parece encontrar em Spud, personagem que no longa passa por um arco de recuperação, mas também de percepção da necessidade de se recontar as histórias como forma de seguir em frente, o maior protagonismo.

Nota: 5/10

sábado, 18 de março de 2017

Crítica: A Bela e a Fera

Remake em live-action da animação falta em encantamento aquilo que tem de renovação.

Por Pedro Strazza.

Desde que descobriu com Alice no País das Maravilhas a verdadeira mina de ouro escondida nas adaptações live-action de suas próprias animações, a Disney vem testando e aprimorando o formato destas produções em busca da fórmula que ao mesmo tempo satisfaça as gerações de fãs dos trabalhos originais e evite cair em moralismos e lições de valor ultrapassados. É um desafio que só se complica quando se aborda as tradicionais histórias de princesa, contos de fadas clássicos cujas estruturas são mais do que inadequadas às discussões de gênero dos tempos de hoje.

Assim, se no ano passado o estúdio parece ter conseguido encontrar com Mogli e principalmente Meu Amigo, o Dragão um bom ângulo para guiar seus outros remakes em live-action, nas fábulas de personagens como Cinderela e Bela Adormecida ele ainda se encontra em uma cruzada para resolver este equilíbrio delicado entre a nostalgia do passado e a desconstrução do presente. É quase como um enigma da princesa, cujo ponto de resolução está na conciliação de partes a princípio nada relacionáveis entre si.

Neste sentido, a nova versão de A Bela e a Fera chega tanto para aliviar quanto para aprofundar os desafios do estúdio. Alivia porque o remake não deixa de ser uma aposta garantida: além de ser um dos maiores sucessos comerciais da Disney nos anos 90, a animação de 1991 dirigida por Gary Trousdale e Kirk Wise apostava na época na desconstrução de valores tradicionais dos contos de fadas sem destituí-los de seu encanto. São fatores que por si só facilitam o trabalho de adaptação para o live-action, que ao contrário de filmes como Malévola e Cinderela já possui uma linha de raciocínio bem clara a ser seguida.

Não é por acaso, então, que o longa dirigido por Bill Condon seja bastante fiel à história contada há mais de 20 anos, tanto em termos narrativos como também visuais. O roteiro escrito por Stephen Chbosky e Evan Spiliotopoulos refaz os caminhos do amor entre Belle (Emma Watson) e o príncipe amaldiçoado como Fera (Dan Stevens) com leves alterações e adições pontuais para elucidar alguns pontos da trama e facilitar a transição do relacionamento ao romance (as visitas ao passado do casal e de seus pais, por exemplo, ajudam a explicar certos comportamentos do casal, principalmente do segundo), ao passo que Condon aproveita da desmistificação do ideal masculino intrínseco à história para torná-lo em uma questão de igualdade social. Isto acontece tanto pelo lado da hierarquia econômica (o reencontro final dos criados com a vila carrega um pouco desta lição de união) quanto pelo de gêneros, raças e credos, algo ressaltado pelo arco da sexualidade de LeFou (Josh Gad) mas também nos casais interraciais formados pela cantora (Audra McDonald) e o pianista (Stanley Tucci) do castelo e Lumière (Ewan McGregor) e Plumette (Gugu Mbatha-Raw) - a revelação desta última depois de aparecer o tempo inteiro como um espanador branco, inclusive, pode vir a ser uma agradável grande surpresa para quem desconhece a atriz ou sua escalação para o papel.

São boas intenções que o filme carrega porém apenas nas pontas, pois ainda que se proponha como exuberante e luxuoso este A Bela e a Fera prova-se uma tentativa tímida demais de se trabalhar o conto infantil. Culpa talvez da necessidade exagerada do estúdio em revisitar suas produções antigas pela nostalgia, mas também pela inabilidade do diretor: Se Jon Favreau em Mogli demonstrava ter um controle bastante presente sobre o visual da floresta e seus personagens, Condon aqui não consegue encontrar na narrativa um tom capaz de equilibrar a emulação dos cenários e vestimentas da animação com o design mais próximo do gótico que seu longa carrega. Aliado ao visual meio oscilante dos personagens criados em CGI - se a Fera tem uma figura muito pobre  e feia digitalmente, os objetos variam entre as soluções criativas (o Cogsworth de Ian McKellen, o armário) e mal resolvidas (o aspecto humano de Lumière, a face do piano) - e os números musicais pouco deslumbrantes - nem mesmo "Be our guest" escapa aos planos fechados -, esta dificuldade criativa de produção ajuda a promover na obra um sentimento de esquizofrenia que no fim barra seu avanço narrativo.

É no casal protagonista, entretanto, onde o filme de fato parece se bloquear em si mesmo. Enquanto Dan Stevens acaba preso dentro de uma Fera má concebida e que não consegue emitir nenhuma emoção, Watson fica refém do próprio papel ao não conseguir resolver a virada na sua relação com a criatura dentro dos ideais de empoderamento ao qual se propõe. Se Belle a princípio surge como uma mulher forte, independente e superior aos rituais ultrapassados do vilarejo onde mora, construindo aparatos e lutando contra preconceitos dos outros habitantes, esta noção se esvai por completo depois de feita a transição no romance com o príncipe no castelo, com Watson falhando em reobter este perfil após sua transformação para "dama" e o longa se restringindo no terceiro ato a realizar apenas a comparação dos perfis de cavalheirismo realizados pela Fera e Gaston (Luke Evans).

São problemas que terminam por tornar este novo A Bela e a Fera em uma espécie de oposto ao Cinderela de Kenneth Branagh, já que este optava por privilegiar no espetáculo aquilo que lhe faltava em atualização depois de também se valer da nostalgia como eixo da trama. É uma comparação que rende ramificações inusitadas dentro da proposta de reformulação ao qual ambas as produções estão no fundo submetidas: na ausência de uma opção capaz de conciliar as duas partes, mais vale a reafirmação com o encantamento de sua história ou a atualização necessária afim de evitar o anacronismo inevitável da moral nas adaptações modernas dos contos de fadas? Para Condon, esta dúvida é o que no fim põe em cheque todos os valores de sua abordagem.

Nota: 5/10

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Crítica: Toni Erdmann

Comédia de reconciliação encontra melancolia nas entrelinhas.

Por Pedro Strazza.

Tratar temas complexos e consideravelmente dramáticos por meio de um humor mais ácido e quase satírico é um dos dons que Toni Erdmann explicita com naturalidade logo em seus primeiros movimentos. O filme se inicia, afinal, por uma apresentação nada ortodoxa de seu protagonista, o professor de música Winfried Conradi (Peter Simonischek), que finge ter um irmão gêmeo biruta e instável para atender o carteiro que veio entregar um pacote em sua casa, gerando terror no homem com seu visual à vontade, a banana na mão e frases de duplo sentido que sugerem um possível atentado terrorista pelo conteúdo do pacote entregue.

É um momento clássico de humor pelo desconforto que irá se propagar no longa dirigido e escrito pela alemã Maren Ade, cuja proposta é também simples a princípio. Centrado na relação de Winfried com sua filha Ines (Sandra Hüller), a produção ensaia na superfície um drama de relações regido pela comédia tirada do incômodo proporcionado pelo pai a Ines conforme ele tenta se reconectar emocionalmente com ela na cidade de Bucareste, capital da Romênia e local onde a consultora de empresas trabalha. Para atingir seu objetivo mesmo depois de ser dispensado sem cerimônia por Ines, Winfried se disfarça sob a identidade de Toni Erdmann, um especialista em coaching que passa a marcar presença em todos os lugares frequentados pela executiva, se fazendo por meio de respostas sarcásticas e uma atitude de mais puro deboche uma verdadeira figura satírica ao mundo profissional habitado por ela.

Esta dinâmica se traduz na narrativa como um passeio entre os dois lados envolvidos, que aos poucos se desenvolve em uma espécie de disputa de quem prova a quem estar correto - Ines com suas decisões duras em uma realidade bastante ríspida, Winfried tentando evidenciar à filha o quão infeliz ela está - conforme as situações proporcionadas por Toni Erdmann se tornam mais e mais vexaminosas. É nas entrelinhas deste processo, porém, que Ade age para tornar o longa tão melancólico nas (várias) risadas que proporciona, muito por causa do cenário em que a história se passa. Influenciada talvez pelo tom duro das comédias romenas recentes (os últimos trabalhos de Radu Jude, Aferim! e Corações Cicatrizados, não demoram a vir à mente), a cineasta promove por meio de suas situações de embaraço o retrato da Europa do pós-crise e à beira do colapso interno.

O roteiro nunca ensaia trazer para o primeiro plano este viés da produção - ele se situa, afinal, como uma comédia sobre reconciliações - mas sim prefere deixá-lo subentendido no perfil dos personagens envolvidos e nos ambientes ocupados. O contraste óbvio da pose humanitária e bem-humorada do pai com a figura rígida e calculista da filha - executiva que no fim se revela mais uma interessada em baratear os custos de produção da empresa onde trabalha pela terceirização da mão de obra - serve como eixo do conflito concebido entre os dois protagonistas e a base pelo qual o filme irá construir seu humor, que com surpresa surge muito mais pelo aspecto visual, pela imagem grotesca do personagem criado por Winfried e suas contantes aparições surpresa no cenário, ao invés dos diálogos. É uma opção que faz muito bem às pretensões do longa, até porque o incômodo gerado nestes momentos permite ao espectador enxergar nas festas luxuosas e escritórios formais ocupados uma decrepitude do sistema que em qualquer outra abordagem passaria despercebida.

Ade, entretanto, não está atrás de soluções fáceis aos problemas externos que cita, mesmo com sua trama passando por todas as batidas emocionais do tipo de história ao qual se enquadra. O humor de desconforto de Toni Erdmann não é de eleger heróis e condenar bandidos pois no fundo a situação de crise que se insere passa por todos os elementos presentes, e isso inclui as boas intenções de Winfried com a filha que, por causa de sua ingenuidade com o panorama geral, também passam depois de um tempo pelo mesmo processo de escrutínio ao qual são submetidos os superiores de Ines, ridicularizados em seus artificialismos (é assustador o fato do chefe dar crédito à piada das filhas de aluguel) e atitudes quase infantis (a cena do namorado no hotel tem um pouco desse lado).

A escalada destes momentos de vexame, vale acrescentar, são o verdadeiro pilar de sustentação do longa, que no fim diminui a carga social e busca manter o humor como principal enfoque da narrativa para tornar estas situações muito mais universais em sua essência, uma medida similar com a qual desenvolve os caminhos tomados no relacionamento de Winfried e Ines. Se Maren Ade opta por restringir o conteúdo mais pesado ao campo do subliminar, do expresso nas ações e palavras duras, é para dar espaço à relação central da obra, cujo espectro de emoções é profundo e bastante amplo naquilo que toca. A dinâmica que resulta destas duas partes constrói um filme complexo e ao mesmo tempo simples, cujas comédia - os últimos trinta minutos são especialmente hilários e muito bonitos - esconde uma melancolia palpável.

Nota: 10/10

sábado, 11 de fevereiro de 2017

Crítica: Cinquenta Tons Mais Escuros

Série ganha novo fôlego com mudança de eixo, mas se mantém presa a alguns dos velhos problemas.

Por Pedro Strazza.

Em parte graças à mudança drástica na equipe criativa, Cinquenta Tons Mais Escuros surge de uma proposta e cenário muitos diferentes da trilhada por seu antecessor, Cinquenta Tons de Cinza. O filme promove, afinal, uma verdadeira correção de curso na adaptação cinematográfica da trilogia de livros escritos por E.L. James: depois do fracasso da tentativa da diretora Sam Taylor-Johnson e da roteirista Kelly Marcel de transportarem para a telona o relacionamento abusivo entre Anastasia Steele (Dakota Johnson) e Christian Grey (Jamie Dornan) como um romance sobre o despertar sexual, a continuação comandada por James Foley e escrita por Niall Leonard busca encontrar enfoque diferente ao material que consiga ao mesmo tempo atender os fãs da série e não seja de todo desinteressante ao resto do público.

A solução encontrada pela dupla foi de se aprofundar na natureza da relação e em seu funcionamento, tratando tudo como um jogo de farsa de intenções reveladas do princípio. Assim, o que a sequência faz aqui é tirar do fato de Steele ser submissa ao namorado a sua consumação efetiva (além de seu enfadonho arco de virgem em eterno processo de desabrochar) e preencher este espaço com a dúvida sobre quem de fato está no controle da situação. A resposta meio que já está exposta nas entrelinhas - a jovem Anastasia é quem está sob domínio do milionário, não o contrário - mas há em Cinquenta Tons Mais Escuros uma curiosa luta de dominação sexual entre os dois "amantes" em curso que é criado nas instabilidades emocionais de Grey e nas revelações de seu passado, algo que o filme já começa a expor por meio de um flashback nada sutil na abertura.

Sutil, por sinal, é um termo que a produção nem ousa reivindicar para si, assumindo um viés de filme erótico B levemente comedido em seu humor inevitavelmente involuntário. Enquanto Leonard esvazia ao máximo as tramas de perseguição que ora ou outra se manifesta na história, restringindo o chefe de Anastasia (Eric Johnson) e a ex-submissa de Christian (Bella Heathcote) a meros elementos pontuais da narrativa, Foley mantém o foco constante na relação dos dois protagonistas e em suas respectivas buscas silenciosas por pontos fracos no parceiro pelos quais os permitam ter o controle - Grey com seus traumas do passado, Steele com o perfil de donzela ingênua que já carrega desde o primeiro capítulo. Tudo isso feito em um tom cômico, capaz de ressaltar o constante ridículo que a história possui em suas viradas, discussões e grandes linhas de diálogo - "Você me ensinou a foder, ela me ensinou a amar", "Eu sou um sádico", os exemplos são muitos.

É essa tomada de consciência que talvez seja a maior força da mudança de eixo feita pela continuação à série, ainda mais porque Foley é sagaz de não tentar omitir do público a resposta óbvia ao mistério que cria. Ao jogar uma cortina de fumaça fajuta na narrativa e tornar tudo em uma questão de controle já resolvido, com Steele apenas se iludindo em seus esforços inúteis para virar o jogo no relacionamento, o longa de certa forma gera uma expectativa para o momento inevitável em que a protagonista, no terceiro capítulo, irá perceber a realidade à sua volta e em como ela irá reagir a isso.

O problema é que a cortina de fumaça, por mais bem aplicada que seja, continua sendo fumaça, e depois que ela desaparece o material original continua intacto. Cinquenta Tons Mais Escuros ainda é um filme sobre um relacionamento problemático (para não dizer danoso) colocado em um péssimo enfoque, mesmo que os esforços da produção se pautem em anular isso pela comédia de ironia. A própria trama sabota o jogo criado quando tenta inocentar a figura "amaldiçoada" de Grey pela culpabilidade materna - a revelação da semelhança de todas as suas submissas com a mãe drogada é covarde na mesma medida que é patético o ápice do milionário como ser sexual ser ele ficar sem camisa.

A boa notícia é que pelo menos dessa vez alguém não tentou dar à péssima dramaturgia inerente da série uma seriedade aborrecida, preferindo encarar tudo sob o olhar do ridículo que ela merece. Se os coadjuvantes todos são esquecíveis, a narrativa muitas vezes não é tão fluida quanto poderia ser e os fatos se atropelam em si mesmos pela incoerência e o absurdo - a promoção de Steele no trabalho e, principalmente, a hilária sequência da queda do helicóptero - é porque Foley lida com a obra com todo o viés de produção barata que ela no fim almeja ser em meio aos bailes de máscara e drinques na cara que promove.

Nota: 4/10

sábado, 22 de outubro de 2016

Crítica: Jovens, Loucos e Mais Rebeldes

Richard Linklater aborda figuras do passado em retrato de parte de uma geração.

Por Pedro Strazza.

“É tudo muito tribal, cara” diz Finnegan (Glen Powell) para o protagonista Jake (Blake Jenner) no desenrolar de uma das situações iniciais de Jovens, Loucos e Mais Rebeldes. Ele faz esse comentário logo depois do grupo de atletas ao qual ambos estão inseridos ser expulso de uma boate disco por causa de uma bobagem: um dos integrantes, mais esquentado, brigou com o bartender por qualquer questão tola envolvendo a veracidade de sua masculinidade.

A observação dita por Finnegan pode soar um tanto rasa a princípio, mas como outras linhas de diálogos pescadas das conversas travadas por outros integrantes do grupo ao longo da história ela ajuda a esclarecer o objetivo que o diretor e roteirista Richard Linklater busca alcançar com o filme. A dúvida, afinal, não poderia ser mais sincera: o que diabos o cineasta busca tirar do cotidiano de um grupo de jocks (o estereótipo estadunidense do atleta) nos últimos dias de suas férias?

O retrato geracional talvez seja a melhor resposta para a pergunta, mas não é exatamente capaz de englobar a totalidade do significado que Linklater busca promover no longa. Jovens, Loucos e Mais Rebeldes é um filme que de fato se aproxima em muitos momentos de outros trabalhos do gênero do diretor (como Boyhood e, claro, Jovens, Loucos e Rebeldes) por conta da maneira como ele situa a sua história em um tempo e espaço específico por meio de canções e elementos de cena - no caso, os Estados Unidos do fim dos anos 70, que começa a superar os traumas da Guerra do Vietnã e assume a rebeldia pelo viés anárquico, a exemplo do punk. Ele, porém, também se distancia deste quadro pelo próprio perfil de seu grupo de protagonistas, que transitam pelos mais distintos ambientes com toda a inadequação de quem definitivamente não pertence a estes.

“Somos camaleões” afirma Finnegan em outro momento do filme, quando confrontado por Jake sobre eles não terem lugar dentro do show de rock onde estão. O espetáculo, que conta com um bate-cabeça ao som da versão punk do tema da série Gilligan’s Island, é uma das quatro festas que o grupo participa nos três dias anteriores ao início de suas aulas que reforçam esse sentimento de deslocamento proporcionado de forma sutil por Linklater, sensação que já é introduzida no início quando o grupo é rechaçado por duas garotas depois de duas tentativas bastante distintas de “aproximação”.

É algo que ocorre justamente pelo fato deste retrato geracional não se tratar de um pressuposto para que o cineasta faça sua análise de um momento histórico, mas sim de um tipo histórico dentro do cinema estadunidense. Jovens, Loucos e Mais Rebeldes tem aqui a pretensão de entender a figura do jock como algo além das caracterizações clássicas de herói ou vilão, perfis que não só acentuaram sua queda como ideário dentro do universo universitário mas também tornaram esse personagem clássico em um elemento já ultrapassado. Não é à toa que na contemporaneidade existam tantas produções dispostas a reinventar e brincar com o atleta e seu perfil musculoso e “burro”, e Linklater é esperto o suficiente para driblar esse lugar comum e abordar essas figuras de maneira mais tradicional.

O diretor aqui volta a trabalhar esse tipo como algo relacionável, humanizando as relações de superficialidade e ritualísticas que compõem essa cultura afim de entender seu funcionamento. O cotidiano de competições, pegadinhas e festas do grupo formado por Jake, Finnegan, Roper (Ryan Guzman), Jay (Juston Street), McReynolds (Tyler Hoechlin), Willoughby (Wyatt Russell), Plummer (Temple Baker), Dale (J. Quinton Johnson), Beuter (Will Brittain), Nesbit (Austin Amelio), Brumley (Tanner Kalina) e Coma (Forrest Vickery) serve a Linklater como uma forma de constatar a temporalidade do jock no cenário histórico, algo que fica claro não apenas pelo destino de Willoughby mas também no fato do grupo estar unido por ser um time de baseball, o esporte que tem um dos públicos mais envelhecidos e em plena queda nos EUA de hoje.

Linklater, porém, não busca a redenção ou mesmo consagração dessa figura como ideário de um tempo passado, a exemplo de Boyhood adotando a nostalgia como linha narrativa central. Ele inclusive procura brincar com os pontos característicos desses personagens, levando a limites fatores como competitividade e o culto ao corpo (as cenas que mostram o grupo se aprontando para as festas são hilárias) como forma de manter as coisas sempre balanceadas entre comédia de costumes e de tipos. Tem um quê de desconstrução, mas isso é feito apenas para esclarecer sua temporalidade quando confrontada com as mudanças histórias provindas do fim da década, tornando o deslocamento ainda mais evidente.


Esse processo de desfalecimento do jock, entretanto, não poderia ser mais respeitoso, se envolvendo com suas ações sem qualquer noção de julgamento. É uma forma singela de não só tornar a produção condizente com o universo que retrata, mas também de capturar a efemeridade da juventude em todo seu esplendor. Os atletas de Linklater não poderiam estar mais ultrapassados, mas sua rotina de diversão e descompromisso os impelem a um caráter atemporal que transcende a metáfora do sofrimento de Sísifo e os "condena" a uma eternidade repleta de álcool e sexo em um passado já consumado pela sociedade.

Nota: 9/10