Han Solo - Uma História Star Wars

Leia a nossa crítica do mais novo derivado da saga!

Deadpool 2

Continuação tenta manter a subversão do original enquanto se rende às convenções hollywoodianas

Desejo de Matar

Eli Roth aterroriza ação do remake e não deixa os temas caírem na ingenuidade

Nos Cinemas #1

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sexta-feira, 25 de maio de 2018

Crítica: A Câmera de Claire

De volta aos problemas da vida pessoal, Hong Sang-soo usa olhar distanciado para fazer filme pautado em reconciliações internas.

Por Pedro Strazza.

Embora a coincidência seja tratada pelos fãs e detratores pelas (justas) vias do humor, não deixa de ser uma conversão curiosa a nutrida pelo diretor Hong Sang-Soo em seus três trabalhos lançados no ano passado, respectivamente O Dia Depois, Na Praia à Noite Sozinha e este A Câmera de Claire. Claramente afetado pelo escândalo criado nos tabloides em 2016 por conta de seu caso extra-conjugal com a atriz Kim Min-hee (que não por acaso protagoniza os três projetos), o cineasta sul-coreano parece ter redirecionado a esfera de emoções complexas e provenientes deste momento de sua vida aos seus filmes, que de diferentes formas processam a questão pelas vias de histórias de conteúdos mais ou menos similares. Além de Min-Hee e do ano de produção, as três obras carregam uma mesma premissa de relacionamentos em crise proporcionado (e enxergado) por uma terceira via, a partir disso desenrolando cada uma à seu jeito as questões implícitas deste jogo semitragicômico sempre encenado pelo diretor.

Mas enquanto que O Dia Depois e especialmente o Na Praia à Noite Sozinha traziam para dentro da trama um tom ácido que refletia uma condição de auto-satirização do próprio autor, A Câmera de Claire caminha mais próximo de um processo curativo, não pela via da resolução do conflito mas sim pelo descarregamento de um sentimento de culpa levado pelo cineasta ao longo de quase todo este histórico recente. O longa nunca escapa de assumir um tom jocoso, mas seus desenrolares são muito menos pautados pelo enfrentamento do elefante na sala que pela reconciliação dos personagens consigo mesmos, uma medida por sua vez capaz de revelar um Hong determinado a aceitar sua própria condição perante o caso ou, pelo menos, de enxergar com um olhar mais inocente todos os acontecimentos que o cercaram.

Filmado durante a realização do festival de Cannes de 2016 - ou seja, um pouco antes da notícia do caso estourar nos jornais - o filme conta a história de Manhee (Kim Min-hee), uma assistente da equipe de um cineasta (presente no evento para debutar seu novo projeto) que de repente se vê demitida pela superior sem maiores explicações. Sem rumo após a inexplicável despedida, ela acaba conhecendo Claire (Isabelle Huppert), uma turista francesa na cidade que por meio de suas fotos amadoras acaba revelando sem querer a todos os lados as verdadeiras razões para tamanha confusão.

Por conta do diretor ter começado a trabalhar neste projeto um pouco antes do escândalo, o filme termina sendo menos focado no tema da traição e da perversidade por trás do ato em relação aos seus outros dois contemporâneos, um enfoque que diminui drasticamente qualquer pretensão à auto-chacota do autor. Ao mesmo tempo, porém, esta condição "divorciada" dos assuntos mais pesados permite a Hong que encontre um caminho curativo muito mais forte dentro da obra que se propõe, calcado no ambiente de valor intrínseco ao cinema e nos diversos retratos tirados por Claire ao longo da história. Como a personagem bem propõe na trama, a fotografia é usada pelo cineasta pelo viés do registro em seu tom mais místico, com cada foto transformando automaticamente o fotografado e despindo-o aos poucos da culpa e de quaisquer outros sentimentos ruins que carrega.

Isso não quer dizer, porém, que o diretor tenha abandonado por completo o humor característico de seu cinema em prol de um realismo "mágico" para proporcionar esta purgação de pecados. Seu estilo cômico, em outras instâncias tão voltado ao comentário ácido e subjetivo, assume aqui uma verve mais próxima das comédias de desconforto, ressaltado conforme a situação ao qual seus personagens se inserem vão se revelando cada vez mais ridículas e desprovida de qualquer propósito. Neste sentido, é curioso observar como Hong mais uma vez reinventa a abordagem sobre sua narrativa bem humorada e construída nos planos longos ditados pelo zoom, aproveitando a longa duração de suas cenas para reforçar este peso auto-imposto pelos personagens sob as vias da comédia - e isso chega a acontecer das formas mais descoladas da temática central da produção, a exemplo do primeiro encontro de Claire com o diretor que encontra a piada justo no excesso de cortesia e falta de conteúdo entre os dois.

Mas é na dualidade criada entre Claire e Manhee que Hong no fim encontra uma resolução final aos seus conflitos interiores, impulsionada por esta linha artística envolvendo toda a história. A princípio criado no próprio estranhamento das duas perante o mundo (e neste momento o filme parece acenar para a possibilidade um tanto enfadonha de fazer de Cannes um refúgio das agruras da realidade), o relacionamento entre as duas mulheres é conduzido de forma a proporcionar uma análise mais distanciada da situação passada pela coreana, que graças à amiga e suas fotos se vê livre de seu aprisionamento interior ao apenas enxergar o conflito pelo lado de fora e perceber a banalidade de tudo. Se aos olhos do diretor esta descoberta sirva (mesmo em caráter momentâneo) de conclusão simbólica  a um capítulo difícil de sua vida pessoal, para o espectador o que fica desta tomada de consciência é a alegoria final do que faz o cinema - e as artes - tão apaixonantes em sua efemeridade.

Nota: 8/10

quinta-feira, 24 de maio de 2018

Crítica: Han Solo - Uma História Star Wars

O básico do básico não é suficiente para Han Solo.

Por Alexandre Dias.*

A volta de Star Wars aos cinemas não deixou de ser uma reformulação. Com uma nova mãe chamada Disney, retornar ao espírito aventuresco da trilogia original era compatível com a proposta da empresa, que também viria a promover a expansão da franquia nas telonas com os derivados e, possivelmente, vários outros projetos, como a produção que está sendo desenvolvida por Rian Johnson, diretor de Os Últimos Jedi. Esse “jeito Marvel” de lidar com a marca é uma boa aposta, mas que tem sido jogada com cautela.

As ideias de Rogue One e Han Solo – Uma História Star Wars são, em teoria, à prova de erros: uma missão referente à trama principal de Uma Nova Esperança e a origem de um dos personagens mais clássicos (e marvelescos) do universo em questão. São conceitos mais garantidos e menos arriscados, o que não significa que ambos os filmes não poderiam ser criativos ou de qualidade.

No caso do longa do malandro mais famoso do espaço, algumas características, em sua concepção, estariam praticamente implícitas: humor irônico, presença de anti-heróis, leveza e, acima de tudo, carisma. Essa última é a palavra que define o personagem que foi interpretado por Harrison Ford no passado e é o que deveria ser onipresente nesta aventura solo, independente das escolhas sobre o que contar e com quem. A falta disso é o defeito definitivo da obra.

O enredo prioriza as consequências em detrimento das causas, pois todos os fatos já conhecidos de Solo foram incorporados à história – o percurso de Kessel, a amizade com Chewbacca, os negócios com Lando. É um fator limitante, porém não é o que faz a produção ser sem graça. Tudo isso poderia ter acontecido se o roteiro de Lawrence Kasdan e Jonathan Kasdan fosse mais encorpado, especialmente no que se diz respeito à piadas e as relações entre os personagens, e as situações fossem mais empolgantes.

As cenas de ação, por exemplo, têm um potencial que não foi explorado. O assalto ao trem chega a ser um momento até inovador na franquia pelo modo como foi pensado e, apesar de satisfatório, há a constante sensação de espera por um algo a mais. Ou, por outro lado, a impressão que fica é estranha, porque existe a intenção de tornar um produto mediano em grandioso, como, nesse mesmo caso, com o elogio de Rio Durant (Jon Favreau) a Han Solo (Alden Ehrenreich) ao afirmar que ele realmente era um bom piloto, quando, na verdade, o rapaz só tinha assumido os comandos por uns dois minutos e não havia feito nenhuma manobra espetacular.

O próprio ambiente criminoso que envolve a trama conta com uma introdução muito instigante no planeta natal de Han e acaba por decepcionar, rendendo-se a artifícios mais fáceis. Em um extremo, está a necessidade de humanizar o protagonista ao colocá-lo em um romance mal desenvolvido e sustentá-lo na posição de “boa pessoa” (apenas uma vez isso soa natural, mas por conta de outro personagem), enquanto na outra ponta dessa linha está a pressão de ser um projeto de anti-heróis. Lando Calrissian é a prova máxima disso. O trapaceiro é forçado a ser mais caricato do que era com Billy Dee Williams, gerando uma interpretação esquisita de Donald Glover.

Aliás, outra atuação que deixa a desejar é a de Alden Ehrenreich. O estadunidense não faz feio, porém o carisma do artista não chega nem aos pés de Harrison Ford, que conseguiu estabelecer um co-protagonista sem grande aprofundamento como um dos grandes ícones da cultura pop. É claro que as ideias para o personagem nesse derivado foram um contribuinte para o que vemos na telona. Inclusive, de todos os outros, sendo a única boa mescla a de Woody Harrelson no papel de Beckett. O ator conseguiu transmitir seu estilo outsider ao mentor de Solo, que é o responsável por um dos pontos mais tocantes do longa-metragem ao interagir com o jovem malandro.

Com certeza, os problemas de bastidores afetaram o resultado e as decisões finais do filme. Ron Howard substituiu Phil Lord e Christopher Miller na direção, que abandonaram o cargo poucas semanas antes das filmagens estarem completas. Nunca saberemos se o trabalho deles seria melhor do que o que foi lançado, considerando que são cineastas que vieram da comédia e não seguem à risca os padrões de realização de uma produção cinematográfica como essa, algo que a Disney preza muito.

O caso é que Han Solo – Uma História Star Wars não era totalmente necessário, contudo era muito bem-vindo. Em uma época onde os Guardiões da Galáxia se tornaram uma das referências em blockbusters, seria maravilhoso ver uma história divertida e sem grandes pretensões do par romântico da Princesa Leia. De certo modo, o novo lançamento da marca Star Wars não escapa disso, ainda que esteja longe de retomar as atividades de Han Solo nos cinemas da maneira que ele merecia.

Nota: 5/10

*Alexandre Dias é jornalista e atualmente escreve no blog Arca do Cinema.

quinta-feira, 17 de maio de 2018

Crítica: Deadpool 2

Continuação tenta manter a subversão do original enquanto se rende às convenções hollywoodianas.

Por Pedro Strazza.

É um fato já consumado pelo público que o primeiro Deadpool, apesar de todos os inúmeros senões, tinha como maior trunfo o elemento de subversão. Renegado pelo estúdio por anos e protagonizado por um personagem movido primordialmente à base do deboche, o filme acabou fazendo sucesso muito porque servia como uma espécie de contraponto a toda a onda de super-heróis surfada pelo mercado, aliviando o peso da repetição maquinária da indústria no seu esforço de tirar sarro e fazer piada com um verdadeiro mundo de referências a superpoderosos e situações heroicas repetidos a cada mês nas telonas. O longa de Tim Miller podia não ser (e não é) a via contrária, mas sem dúvida buscava provocar o mercado por meio de uma purgação de seus pecados mais conhecidos e celebrados.

Já o segundo capítulo, lançado dois anos depois, parte de uma condição que é muito diferente em relação ao anterior, seja em termos de cenário ou mesmo posicionamento da franquia. O sucesso explosivo do primeiro filme impulsionou Deadpool a sair de sua condição "marginalizada" para ser transportado direto ao centro do zeitgeist midiático, chegando a se tornar inclusive o único substituto possível à posição deixada pelo Wolverine de Hugh Jackman no universo dos X-Men. Por mais que tenha se tornado um item mainstream, porém, o anti-herói fez a fama justo por sua condição de escárnio em relação a Hollywood, e é este choque que no fundo move - junto da mesclagem entre ator e personagem - todas as intenções de Deapool 2.

Não é como se a produção abandonasse o gesto subversivo do humor de seu personagem, porém, mas sim o tentasse tonalizá-lo a campos familiares. Embora Deadpool (Ryan Reynolds) mantenha em voga na sequência o seu estilo de comédia infantil e jocoso a todas as partes da indústria (dos filmes do Marvel Studios aos altos e baixos da carreira de seu intérprete) e da narrativa ao qual se insere, fica bastante claro que o longa dirigido por David Leitch amplifica o atrelamento a velhas convenções, agora postas em prol da localização do personagem dentro dos temas e valores da franquia X-Men. O roteiro da dupla Paul Wernick e Rhett Reese - creditados juntos de Reynolds, que ajudou na confecção das piadas - pode não estar interessado em situar o anti-herói no universo dos X-Men (e na real eles brincam com esta possibilidade seguidas vezes, seja na mansão Xavier ou na formação da "X-Force"), mas sem dúvida coloca o personagem em uma trajetória que passa por batidas tradicionais como dilemas do heroísmo e a questão da opressão - que desta vez passa longe dos paralelos com o holocausto e fica próximo da temática do assédio.

Esta tentativa de alocar o protagonista num arco "clássico" no fim das contas acaba sendo um dos grandes problemas da continuação porque Deadpool só funciona como personagem dentro do campo da sátira, um tom que em nada se relaciona com a gravidade dos atos propostos aqui. O filme então parece se partir em dois pedaços inconciliáveis: de um lado a trama mais séria, que parte da tragédia da morte de Vanessa (Morena Baccarin) e encontra reflexo em personagens como Cable (Josh Brolin) e Russell (Julian Dennison), e do outro a piada pura e simplesmente, metralhada por toda a narrativa para atingir tudo e todos. Não ajuda muito nessas horas que o longa também sofra com a síndrome do gigantismo das sequências hollywoodianas, aumentando as proporções em todos os campos graças ao aumento do orçamento.

Neste sentido, Deadpool 2 acaba lembrando muito Kingsman: O Círculo Dourado, outra continuação recente de uma comédia violenta e pautada na base do deboche que acabava rendida ao sistema do qual tanto fazia piada. Além do referencial (se o longa de Vaughn olhava para o cenário passado, o do mercenário zoa o campo presente), a única grande diferença entre os dois produtos está no comprometimento insano de Reynolds em se mesclar ao papel, uma medida que mesmo não tendo como salvar a produção do iminente desastre ainda é capaz de torná-la suportável no jogo de escárnio e auto-sabotagem com a própria figura ao qual o ator se submete. Sua dedicação é tamanha que desta vez beira ao quê de sadismo por conta das constantes deformações realizadas no próprio corpo - um tipo de humor físico que ainda rende bastante aos intentos do longa.

Leitch sabe como usar desta maleabilidade do anti-herói para conduzir um pouco da ação, mas como o humor e a trama estes momentos terminam um tanto à parte no todo bastante desconjuntado que é o filme. É um resultado bastante similar ao Atômica do diretor, vale acrescentar, mas a verdade é que a razão para Deadpool 2 não funcionar está nesta sua dificuldade latente de não encontrar uma base firme para se posicionar dentro da indústria ao qual pertence e ao mesmo tempo quer distância. Sem perceber, a franquia foi digerida pela própria máquina da qual tanto fazia piada.

Nota: 4/10

quarta-feira, 9 de maio de 2018

Crítica: Desejo de Matar

Eli Roth aterroriza ação do remake e não deixa os temas caírem na ingenuidade.

Por Alexandre Dias.


A abertura de Eli Roth a outros mundos fora do seu aposento principal, o terror, tem se mostrado bem curiosa. Diferente de Stanley Kubrick, que conseguia migrar facilmente entre os gêneros cinematográficos, o diretor de O Albergue optou por não se libertar das amarras do horror, e sim trazê-las consigo para os seus novos projetos. Além disso, percebe-se um certo amadurecimento temático do norte-americano, que se estendeu ao debate de pontos políticos e sociais.

Em Bata Antes de Entrar, por exemplo, Roth faz (e rasga) a caricatura do homem branco de classe média em uma história claustrofóbica. Desejo de Matar, remake do clássico estrelado por Charles Bronson, possui a discussão sobre esta mesma figura, mas de forma ainda mais atualizada ao utilizar a questão do porte de armas nos Estados Unidos como ponte.

É bem típico do cineasta optar por colocar os extremos na telona, geralmente de maneira literal, com tripas voando e cabeças explodindo. Na sua obra mais recente, ele resolveu fazer isso ao cutucar uma ferida que não está nem perto de cicatrizar. Em tempos onde a maior potência bélica mundial é governada por um indivíduo que estimula a violência, conversar sobre a política armamentista torna-se ainda mais urgente. Logo, por mais que seja louvável Roth dar um tratamento responsável a esse quesito, não se pode dizer que ele fez uma crítica a sua terra de origem, afinal a premissa é de um ser humano que resolve se vingar fazendo justiça com as próprias mãos.

Com um início lento, a cereja do bolo do filme está justamente no desenrolar da jornada de Paul Kersey (Bruce Willis) contra o crime. Neste processo, há a perfeita localização do espectador naquela situação, que o diretor e o roteirista Joe Carnahan (que comandou Esquadrão Classe A) realizam com a introdução da presença midiática. A televisão e a internet são muito bem usadas como artifício de discussão, pois passam a sensação de como seriam as consequências de um fato como esse nos dias de hoje.

Obviamente, essa reflexão não atinge grandes níveis de complexidade, mas é o suficiente para não diminuir a inteligência de quem está assistindo. Roth seguiu esse caminho com a sua característica sarcástica, deixando claro que alguma coisa está errada ou bizarra em determinados momentos. Quando as testemunhas tentam identificar Kersey, por exemplo, as informações que surgem são que ele é branco e usava capuz; o pressentimento é de que os policiais ansiavam por achar o detalhe “criminoso” determinante, uma tentativa – um tanto destrambelhada - do realizador de denunciar os preconceitos contra negros e imigrantes, definidos muitas vezes pela classe média branca como marginais, antes mesmo de saberem o ocorrido. 

A cena em que o protagonista está em uma loja de armas é outra boa prova, porque toda a propaganda armamentista é ironizada de modo a causar a impressão do quão ridiculamente fácil é comprar esses produtos – a atendente chega a dizer que pode acelerar a “burocracia” das papeladas. Além da própria incitação da indústria bélica que há em fazer esse negócio, por meio dos comerciais e anúncios.

Os aspectos satíricos e cartunescos do cineasta originados no terror também se ramificaram para as cenas de ação. Não são frenéticas e empolgantes como ocorre em John Wick, mas graduais, de modo a trabalhar com cada parte do cenário e do contexto, principalmente com efeitos práticos. O jeito do ator de Bastardos Inglórios de projetar a mise-em-scène, advinda dos seus primórdios, garante a sua inconfundível carnificina, por vezes exagerada, porém bem pensada e organizada.

E parece que era exatamente de Roth que Bruce Willis precisava. O veterano dos clássicos de tiro, porrada e bomba dos anos 80 tem recorrido a papéis do coroa bad ass canastrão, sem se arriscar com projetos muito diferentes e apostando no que já está no seu cerne. Esse equilíbrio não nos entregou uma performance absurdamente carismática de John McClane, assim como não o fez perder a mão em um estilo, como ocorreu na dramaticidade exacerbada de Refém. Ele consegue ser o centro das atenções durante todo o longa e é isso o que importa. Já o resto do elenco cumpre o básico em papéis muito pré-estabelecidos, com uma pequena exceção de Vincent D’Onofrio, que interpreta o irmão de Kersey e ensaia se tornar um possível ponto de virada do roteiro.

Aliás, Desejo de Matar como um todo é dosado com eficiência. Não há nenhuma grande reviravolta ou um clímax gigantesco, o que nem é necessário. Para o bem ou para o mal, é um remake de um homem em busca de vingança e é abordado como tal, portanto não é um clássico moderno de ação, do mesmo jeito que não é genérico. A boa contextualização de Roth e os seus trejeitos permitiram que ele realizasse a sua história do Justiceiro de maneira bem aceitável, sem ser ingênuo.

Nota: 7/10

sábado, 5 de maio de 2018

Crítica: Gringo - Vivo ou Morto

Preso a uma lógica contraditória, comédia de erros se perde no próprio retrato regional que realiza.

Por Pedro Strazza.

Se o sucesso de um subgênero é garantido à partir do momento em que passa a ser executado sob o procedimento mais convencional da repetição de seus gestos e signos, o screwball de humor negro já chegou à consumação final de sua trajetória dentro do cinema estadunidense. Popularizado nos anos 90 por cineastas como os irmãos Coen e Quentin Tarantino, este tipo de comédia já foi tido no passado como item de subversão, mas com o passar dos anos sedimentou-se de tal maneira no imaginário cinematográfico que aos poucos encontrou seu espaço dentro do circuito mais prestigiado do próprio sistema do qual nutria aversão. Seus realizadores mais conhecidos foram incorporados ao mainstream, e por mais que sua crueza e humor ácido não tenham sido abandonados esta produção hoje é encarada com muito mais bons olhos por parte do grande público e a crítica, que abraçaram com intensidade toda e qualquer viés de retrato social do qual o gênero aprendeu a nutrir como maior ambição.

Sob este olhar, não chega a ser uma grande surpresa que produções como Três Anúncios Para um Crime e este Gringo - Vivo ou Morto carreguem entre si uma semelhança notável e difícil de ser ignorada. Os cenários abordados podem ser distintos, mas no fundo as duas produções carregam um mesmo processo de repetição de arquétipos e estruturas típicas de um gênero muito familiar ao espectador e que é utilizado por seus diretores para tentar se estabelecer dentro de um mercado que lhe é estrangeiro. No fundo, a grande diferença é a origem destes dois cineastas e, por consequência, o cinema em que cresceram: enquanto Martin McDonagh veio da Irlanda, Nash Edgerton nasceu na Austrália.

É uma questão de regionalismo muito simples, mas que faz toda a diferença para que os dois filmes consigam soar distintos o suficiente entre si, mesmo não sendo de fato. Se McDonagh realizava o screwball a partir da violência de caráter tribal e do sarcasmo que são típicos da produção irlandesa, o longa de Edgerton tem na ironia irreverente e tipicamente australiana o seu principal combustível para se aventurar pelo subgênero, contando todos os percalços rocambolescos de sua história com altas cargas de humor negro no intuito de desarmar o peso das situações mostradas. O local e o contexto onde a trama se passa, afinal, tem nada de tranquilo, situando-se nas rixas recém-exponenciadas na fronteira do México com os Estados Unidos para narrar uma série de negociações e sequestros embolados e centrados na figura de Harold (David Oyelowo), um executivo prestes a ser demitido da empresa farmacêutica no qual trabalha que é confundido pela máfia mexicana como responsável pelas operações ilegais realizadas por seus superiores (Joel Edgerton e Charlize Theron).

A premissa sugere e tenta se fazer em cima da comédia de erros que são os múltiplos trambiques executados por todos os personagens envolvidos - que variam da dicotomia entre criminosos mexicanos e executivos americanos mesquinhos para figuras menos polarizadas como a de um mercenário em busca de redenção (Sharlto Copley) e a da namorada inocente (Amanda Seyfried) - mas conforme Edgerton vai mostrando claras dificuldades para administrar as viradas sucessivas do roteiro de Anthony Tambakis e Matthew Stone o longa acaba preso à mesma situação de inadequação e incongruência situacional de Três Anúncios, incapaz de abordar ou mesmo reconhecer o retrato que tenta construir destas relações de fronteira tão frágeis do período Trump.

Não ajuda muito também que a comédia mais irônica proposta por Gringo desarme constantemente a obra de qualquer pretensão em simultâneo a este procedimento ambicioso, uma lógica disforme cujas grandes vítimas acabam sendo as atuações do elenco. Todos os atores parecem à deriva nas caricaturas aos quais são forçados a se adequar, desde Theron e sua performance um tanto desgastada de mulher alpinista (cujas maiores habilidades envolvem, claro, a beleza e o sexo) a participações menores como a de Thandie Newton, ótima atriz reduzida aqui a um papel de esposa-troféu quase terciário. Mesmo os atores em teoria com maior espaço para desenvolver a aparente complexidade de seus personagens - como Oyelowo, Edgerton ou Copley - parecem restritos a um comentário irônico sobre relações de trabalho declarado pelo diretor, que repete chavões do meio empresarial em busca de um momento de compreensão superior que nunca chega a acontecer de fato na história.

Proporcionar o "olhar de fora" nunca deixou de ser uma operação muito bem vinda ao cinema, e há diversos casos de diretores imigrantes lendo o cenário "estrangeiro" de uma forma única e capaz de avançar o debate que comprovam o quão benéfico estas intersecções podem ser a uma produção regional. No caso específico de Gringo, o problema não está neste ato de Edgerton em tentar se adequar em terreno diferente de sua origem, mas sim no caráter vazio com o qual este busca cumprir com seu objetivo. Com todas as suas pretensões fracassadas, o filme (bem como seu realizador) termina um tanto reduzido a seu modo de operação idiossincrático, nesta tentativa um tanto constrangedora de conciliar narrativas regionais em busca de qualquer traço de originalidade para ancorar toda a sua estrutura.

Nota: 3/10

sábado, 21 de abril de 2018

Nos Cinemas #1: Com Amor Simon, O Dia Depois, Submersão e mais

Nossos comentários sobre algumas das estreias das últimas semanas.

Por Pedro Strazza.

  • Antes que Tudo Desapareça

Os filmes de Kiyoshi Kurosawa quase sempre partem de um entendimento muito sóbrio e desgostoso da humanidade, então chega a ser uma surpresa quando alguma de suas obras busca o exato contrário. Este é o caso de Antes que Tudo Desapareça, sua produção mais recente que surge como um olhar analítico bem-humorado de algumas das deficiências mais graves do psicológico social e que resulta em uma mensagem de otimismo muito distinta na carreira do cineasta japonês.

Tudo isso acontece com base em outro de seus exercícios de mesclagem de gêneros, com o diretor estabelecendo-se de início na ficção-científica para depois ir arriscando trazer elementos da comédia e - mais timidamente - da ação. A trama, que acompanha um pequeno grupo de alienígenas em sua missão de apreender o máximo de conhecimento sobre os humanos antes de uma grande invasão à Terra, pode ser muito direta em sua abordagem e jogo de simbolismos (toda vez que os aliens sugam os valores que procuram de suas "vítimas", elas começam a agir desprovidas do peso emocional daquele conceito), uma frontalidade que nem sempre Kurosawa é capaz de abarcar como deveria e que acaba desprovendo a narrativa de um formalismo melhor apurado ou talvez prestigiado. É uma explicação, pelo menos, para a sensação de cafonice que permeia grande parte das escolhas tomadas pelo filme, seja no roteiro que se resolve em mais um final pautado sobre o "poder do amor" ou na estética sem graça, uma característica que soa tão anômala ao cineasta mesmo ele não sendo famoso por isso.

Há muito do que gostar em meio a todos estes entraves, porém. Ao contrário de O Segredo da Câmara Escura - uma aventura atrapalhada do diretor pelas estruturas do horror do cinema francês - Antes que Tudo Desapareça encontra força nos momentos que mostra a operação dos aliens, seja pelo valor imediato da comédia (a cena do chefe virando criança depois de "perder" o conceito de trabalho é hilária) ou na carga emocional que traz nesta busca pela real identidade da condição humana. Fica o lamento, porém, da ausência do uso desta objetividade usada por Kurosawa para fortalecer a coesão geral do filme e impulsionar esta mensagem final na intersecção de gêneros.

  • Com Amor, Simon

Representação é um valor do cinema que nos dias de hoje se tornou mais do que fundamental, mas ao mesmo tempo em que há muito a se explorar e se beneficiar de suas vantagens o tema também oferece uma gama própria de desafios criativos que podem se converter em problemas narrativos. Não é de propósito, mas Com Amor, Simon acaba por ilustrar muito bem esta questão. De certa forma a primeira grande comédia romântica adolescente de estúdio que tem um personagem gay como protagonista, o filme de Greg Berlanti sabe como se aproveitar do ato representativo que serve para impulsionar sua trama de coming of age açucarada, mas a partir do ponto em que precisa lidar com questões um pouco mais complexas ele parece se perder em uma espiral de resoluções apressadas e que tentam não prejudicar sua estrutura central, representada na investigação de Simon (Nick Robinson) para descobrir seu correspondente virtual anônimo. 

Antes de mais nada, é válido apontar que todo este arco principal de auto-afirmação da própria identidade traçado pelo garoto na história funciona em seus fins de relação com o espectador, mesmo que limitado em todas as convenções normativas ao qual se submete - estamos falando de um protagonista que começa a história ganhando um carro de presente, afinal. O que não funciona, pelo menos não como deveria, é tudo que cerca este desenvolvimento de Simon: com a exceção dos pais (que estão envolvidos em caráter direto a esta "saída do armário"), todos os personagens coadjuvantes tem sua participação neste processo reduzida ao essencial do ponto de vista central, uma medida que quebra com o esforço do filme de mostrar o quão natural é se descobrir gay dentro da sociedade. Do menino que descobre o segredo de Simon e passa a chantageá-lo à melhor amiga que nutre por ele uma paixão secreta, todas estas relações são trabalhadas de forma a antes aumentar o peso dramático da situação que contribuírem para uma maior complexidade emocional em torno do protagonista dentro do núcleo que habita, uma noção que se sente mais quando o longa tenta sem sucesso fazer o personagem principal reconhecer o dilema de outro - seja este o da amiga de pais divorciados ou mesmo da que nutre uma paixão secreta por ele.

Talvez pela afinidade da própria temática, os problemas narrativos de Com Amor, Simon acabam criando um diálogo até que muito evidente com Me Chame Pelo Seu Nome, outro coming of age de forte atração ao público que fez passagem recente pelo circuito comercial brasileiro e também encontrava seus maiores entraves nos círculos externos a seus protagonistas. Mas enquanto que o filme de Luca Guadagnino era capaz de tornar o caráter vago de seus coadjuvantes em ferramenta para sua proposta sensorial, o apoio da direção de Berlanti no texto torna seu longa refém da própria narrativa, incapaz de resolver seus tropeços, um resultado estranho se considerar que a origem do diretor está ligada ao público adolescente graças às séries que toca no the CW.

  • De Encontro com a Vida

A premissa de De Encontro com a Vida é simples: o alemão de pais imigrantes Saliya (Kostja Ullmann) tem como sonho perseguir a carreira de hotelaria, mas por conta de um doença genética acaba perdendo 95% da visão no fim de sua época no colégio. O jovem, porém, não deixa de acreditar que é possível trabalhar no ramo e resolve esconder sua cegueira para poder estagiar em um prestigiado hotel de Munique para provar que sua condição não lhe serve de obstáculo.

É à partir desta busca por adequação que o longa do alemão Marc Rothemund se envereda por uma narrativa típica das comédias românticas mais leves, uma que não só busca tornar mais fácil a história difícil e baseada em fatos reais como também torna a jornada do protagonista pelos diferentes ambientes de aprendizado do hotel em grandes fases de um videogame onde o principal objetivo é se formar no curso de aprendiz. Cada novo espaço apresentado ao espectador possui um desafio diferente ao personagem, um que diretor se aproveita da deficiência de seu personagem para compor uma dinâmica narrativa sensorial, permeada (ou talvez contaminada, aos olhos dos mais céticos) pelo bom humor e o tom leve e adocicado do gênero ao qual pertence.

Neste sentido, De Encontro com a Vida cria uma identidade que é um tanto diferente em relação ao oscarizado Estrelas Além do Tempo, outra produção recente cuja história real também tinha como fim esta jornada de provação dentro do bom mocismo e das estruturas meritocráticas da sociedade, um paralelo que logo deve vir à mente do espectador mais atento. Apesar de ambos os filmes terem no drama edificante ingênuo sua meta final de existência (muito por conta da dívida que nutrem com suas contrapartes da realidade), a comédia alemã se distancia do longa dirigido por Theodore Melfi por assumir o lado lúdico como modo de operação puro, um olhar que o isenta parcialmente de suas responsabilidades mais enfadonhas. Por outro lado, esta decisão criativa não funciona tão bem com os momentos mais dramáticos do filme, em especial no terceiro ato quando a produção precisa intensificar o drama para criar suspense e acaba perdendo o tom no processo.

  • O Dia Depois

O cinema de Hong Sang-Soo nunca foi um pautado exclusivamente no tom leve apesar de manter o humor presente em suas narrativas, mas suas últimas comédias passam por um tom mais grave que é difícil não sentir. Se em Na Praia à Noite Sozinha o cineasta sul-coreano tirava de sua passagem recente pelos tabloides nacionais o motor de sua trama ácida, O Dia Depois encontra momentos dramáticos ainda mais intensos para contar a história de uma mulher (Kim Min-Hee) que começa a trabalhar em uma editora apenas para se ver acusada de ser amante do chefe (Kwon Hae-Hyo) logo no primeiro dia de expediente.

Ainda que as duas produções sejam muito próximas em termos de estruturas narrativas, o elemento que une os dois filmes de fato é desconstrução do cineasta enquanto autor masculino, uma que em Na Praia... é conduzido sob as vias da chacota mais ferrenha e no O Dia Depois assume o peso moral da responsabilidade que ele assume (ou deveria assumir, pelo menos) nos efeitos de suas decisões nas relações amorosas. Esta é uma gigantesca pulverização da figura do macho escroto que só ganha em humor por conta da auto-consciência de Sang-Soo neste processo (ele é o principal afetado nestas dinâmicas de seus longas), mas aqui a presença do drama funciona muito porque ela só aumenta esta perspectiva entre criador e criatura e se vê potencializada naturalmente pela costumeira direção talentosa do cineasta - sua encenação pautada por longas cenas guiadas por zooms momentâneos é tão ideal para organizar o drama quanto o é nas comédias.

Talvez seja por conta deste aumento maior do escopo de seu jogo que o diretor opte por terminar o filme desta vez forçando uma conciliação entre as partes envolvidas. A decisão soa (e é) uma grande quebra de tudo que vinha sendo desenvolvido até ali e contraria até os caminhos narrativos de Na Praia..., mas para Sang-Soo o alento de que estas relações prejudicadas pela postura superior do autor possam ser reparadas com pedidos de desculpas sinceros deve ser suficiente para apaziguá-lo momentaneamente de qualquer culpa interior que sinta, mesmo ele sabendo não ser verdade.

  • Ella e John

Ella e John surge de uma proposta um tanto tola - ela é mais uma história de idosos contemplando o fim da vida a seu modo particular - mas logo nos primeiros momentos o filme busca instaurar um viés de análise que parece anular por um instante esta impressão inicial. É logo na sua abertura que o longa do italiano Paolo Virzì mostra um subúrbio com sinais de apoio ao futuro presidente americano Donald Trump, uma sensação inicial de mal estar que tentará servir de assombro à viagem de carro empreendida pelo casal Spencer - vividos por Helen Mirren e Donald Sutherland com a pose de democratas mais ou menos liberais.

Virzì não renega nem por um instante a posição de "olhar exterior" ao cenário americano, promovendo o contraste da beleza pastel das locações passadas por seus protagonistas com a crueza presente nos mesmos e o clima agitado passado pelo país naquele momento, mas ao mesmo tempo o diretor não é capaz de promover efetivamente esta narrativa dentro de seu próprio filme, o que por sua vez gera um tom geral de promessas vazias bem evidente na produção. Se a jornada final dos dois idosos antes de serem separados pelos filhos acena para uma abordagem de contexto histórico a princípio, no fim este subtexto é abandonado em prol de mais uma trama de acerto de contas emocional, um melodrama onde a morte funciona no intuito de acelerar enfrentamentos há tanto tempo postergados.

Não é algo que chega a prejudicar Mirren e Sutherland, porém. Enquanto o filme ruma ao enfadonho, os dois atores fazem o máximo para tornar seus papéis dignos de nota, tentando elevar o material simples a um campo mais profundo de dramaturgia e evitando a acentuação pura e simples das deficiências como caminho de interpretação de seus personagens. O resultado obtido por eles é digno no que toca os protagonistas, ainda que não seja suficiente para salvar o longa de si mesmo.

  • Submersão

A trajetória recente de Wim Wenders é marcada por mais baixos que altos, com seus últimos documentários orbitando a esfera da pura reverência (a exemplo de O Sal da Terra) e suas ficções buscando uma experimentação de resultados bastante conformados com sua falta de ineditismo, como Tudo Vai Dar Certo bem atesta. Submersão, seu novo drama protagonizado por Alicia Vikander e James McAvoy, faz pouco para melhorar este esquema de produção atual do diretor alemão, ainda que no fundo ele parta de uma proposta de renovação de seu cinema por uma estrutura mais básica.

O longa, afinal, é estruturado à partir de um romance cuja tragédia é ancorada na premissa de duas tramas inconciliáveis, com tanto o personagem de McAvoy quanto o de Vikander sofrendo com uma síndrome de isolamento por conta da dedicação exclusiva dada a suas carreiras intensas - ele sendo um espião, ela como pesquisadora da vida marinha do fundo do oceano. Esta "submersão" do título, oriunda da claustrofobia cada vez maior e sentida pelos dois amantes, é conduzida por Wenders de forma a emular os grandes temas que circundam os personagens e alinhar causas ecológicas com humanistas, mas este procedimento aos poucos se perde em um desinteresse palpável do cineasta pela narrativa que constrói.

A sensação de piloto automático é óbvia desde o começo mas só vai beirar ao insuportável no final, quando fica claro que o cineasta não encontrou o que esperava no livro escrito por J.M. Ledgard e passa a recontar sua história pelas vias do melodrama mais rasteiro. Sua narrativa é permeada de debates rasos e sofrimento calculado para não incomodar ninguém, uma dinâmica que só ressalta o nível do jogo falso e trajado de grandes questões que parece ter contaminado a ponto de fatalidade (e do esquecimento) a carreira de Wenders nestes últimos anos.

domingo, 15 de abril de 2018

Crítica: Baseado em Fatos Reais

De volta aos suspenses psicológicos, Roman Polanski desconstrói a própria posição de autor com desinteresse.

Por Pedro Strazza.

Roman Polanski é "atormentado" por seus casos de estupro e pedofilia desde as primeiras acusações em 1977, mas parece que só recentemente o diretor começou a sentir o peso das alegações que recebeu. Seguindo na via contrária de seus trabalhos anteriores, sua produção nos anos 2010 se vê enxuta de maiores ambições temáticas externas e adquiriu uma conotação muito franca e direta com a relação do autor com suas obras e o público, retrabalhando os seus eternos jogos de dominação e submissão do sexo a uma dinâmica escancaradamente interiorizada. Tanto que Deus da Carnificina e A Pele de Vênus, os dois primeiros longas do cineasta nesta década, dividem além do fato de serem baseadas em peças a semelhança de possuírem uma configuração narrativa quase elementar: um único espaço, um grupo bastante reduzido de atores e uma câmera.

Existe muito de uma restrição orçamentária (afinal, a reputação de Polanski não deve ajudar muito no financiamento de seus filmes) e da permanência dos crimes no imaginário público que devem ganhar responsabilidade neste processo, mas é também verdade que o cineasta anda muito introspectivo na questão da posição de seu cinema dentro de sua mentalidade um tanto distorcida e culpada. Esta metodologia auto-consciente, que mora na divisa entre a ficção e o real, serve novamente e obviamente de centro nervoso ao diretor em Baseado em Fatos Reais, produção que como o título bem deixa implícito tem na intersecção entre o ofício do escritor e a relação do criador com seu público o ponto de partida para mais um destes seus divãs autorais.

Na trama, Delphine (Emmanuelle Seigner) é uma celebrada escritora presa no meio de um bloqueio criativo que durante o sucesso do lançamento de seu mais novo livro conhece Elle (Eva Green), jovem misteriosa e fã de seu trabalho com a qual passa a nutrir uma relação quase exclusiva em sua vida. A exemplo dos anteriores, Polanski se cerca de grandes nomes exaltados no meio (Alexandre Desplat compõe de novo a trilha sonora, Olivier Assayas é autor do roteiro junto do cineasta, os próprios nomes da esposa Seigner e de Green no elenco) para traduzir a obra literária homônima de Delphine de Vigan para a telona em uma narrativa simples e de objetivos revelados do princípio, com o thriller psicológico e suas ambições de turva os limites entre o real e imaginário expostas logo nos primeiros momentos. Seja no nome da personagem ou no uso da fotografia do polonês Pawel Edelman (a mulher nunca está presente na perspectiva visual de ninguém além de Delphine), o público já parte conscientizado do fato de Elle estar presente apenas na imaginação de sua protagonista, servindo a esta como uma materialização do tormento que passa.

É um jogo de cartas abertas bastante explícito que o filme encena, uma dinâmica que parece acelerada de forma a reduzir interpretações do espectador ao essencial e não hesita em tornar todas as batidas conhecidas do gênero visíveis a cada instante. Da duplicidade das figuras de Seigner e Green à claustrofobia crescente sentida pela protagonista conforme a trama avança - passando pelo óbvio enevoamento dos fatos mostrados - tudo é posto na tela sem maior delonga pela narrativa, que mostra alguma pressa para chegar ao que lhe interessa. 

O que Polanski procura com Baseado em Fatos Reais é muito similar ao resultado obtido com A Pele de Vênus, onde ele colocava a imagem do autor em uma rota de subjugação e humilhação dentro de um esquema de dominação sexual antes controlado que, claro, encontra uma forte identificação com a realidade do cineasta. O que muda de lá para cá é em especial a exclusão do elemento masculino (se antes Seigner era a musa pronta para destruir o criador, agora ela é a criadora destinada a entrar em colapso) e a substituição deste elemento vexatório por uma percepção desta crise de identidade como motor de criação, no qual estas agruras do autor retroalimentam seu trabalho.

Mas por mais instigantes que estas mudanças na proposta possam ser à codificação deste seu cinema, porém, Polanski no fim acaba por mostrar um raro desinteresse pelo projeto e todo o jogo de gato e rato entre Delphine e Elle, com a narrativa aos poucos exaurindo suas opções de metalinguagem e de alegorização em uma execução um tanto feita no piloto automático. A exposição antecipada de todos os posicionamentos simbólicos da história não ajuda, e o filme que começa sob a promessa de um suspense psicológico acaba restrito em seu desenrolar a um senso de paranoia um tanto redundante - uma sensação que talvez reflita melhor a posição atual de seu diretor sobre si mesmo.

Nota: 4/10

quinta-feira, 5 de abril de 2018

A Arábia do desencanto

Conversamos com os diretores de Arábia sobre o filme que estreia nesta quinta nos cinemas brasileiros.

Por Pedro Strazza.

Affonso Uchoa e João Dumans nunca estudaram em uma faculdade de Letras, mas o conhecimento de ambos sobre literatura pode levar qualquer um a concluir o contrário. Embora sejam de pontos diferentes do interior de Minas Gerais - o primeiro é de Contagem, o segundo de Ouro Preto - os dois cineastas viram o interesse fervoroso por obras literárias nacionais e internacionais unir suas carreiras profissionais quando ambos trabalhavam em A Vizinhança do Tigre, o trabalho de estreia de Uchoa na direção.

Foi da vontade de ambos de incorporar traços de um movimento literário particular da produção nacional ao cinema, inclusive, que nasceu Arábia, projeto escrito, filmado e montado pela dupla ao longo de quatro anos. "Nossas referências mesmo tem mais a ver com a literatura moderna brasileira de Graciliano Ramos, de João Antônio, de Oswaldo França Júnior e etc, que eram coisas que a gente lia e que tinham uma tradição artística brasileira que para nós estava um pouco esquecida" afirma Dumans em entrevista ao O Nerd Contra-Ataca, feita durante a divulgação do filme que estreia nesta quinta-feira (4) nos cinemas brasileiros; "Existe uma tradição literária forte no Brasil, especialmente na primeira metade do século 20, que tem a ver com tentar construir um retrato do país e da realidade brasileira através da perspectiva dos trabalhadores e de pessoas comuns. E isso pra gente era uma coisa muito marcante, tanto como gesto artístico quanto como gesto criativo" ele continua.

Dumans se refere, claro, a Cristiano, personagem interpretado por Aristides de Sousa que faz na história uma pequena odisseia trabalhista pelo Estado em busca de bicos para sobreviver. Esta jornada interiorana também parte de outra origem do filme, que a princípio tinha seu trajeto determinado de forma a conectar as duas cidades natais de seus diretores, determinando uma conexão íntima entre a História e o cenário de Minas. Foi uma noção que depois acabou sendo alterada - Dumans conta que a descoberta de uma indústria de bauxita há cinco minutos do centro histórico de Ouro Preto transformou a visão dos dois sobre o projeto - mas que ajuda o espectador a entender parte dos motivos pelo qual o filme pode lhe ser tão magnético em seus ciclos trabalhistas tão bem encadeados na narrativa poética amarrada pelos cineastas.

Outro destes motivos reside na própria performance de Sousa, cuja atuação e narração em off são capazes de impulsionar o misto de simplicidade pessoal e complexidade mística que paira sobre seu papel. Mas o trajeto de "Juninho" (como os diretores o apelidam carinhosamente), tal qual o seu personagem, foi bastante tortuoso: embora fosse um dos principais motivos para o projeto existir, ele foi parar na prisão por um ano e meio por conta de um crime pequeno que cometeu em meio a um momento difícil de sua vida. A depressão e a possibilidade de perder o trabalho no filme, porém, não o abateram, e três dias depois de ter terminado de pagar a sentença ele já estava no set trabalhando - um esforço que só acrescenta à admiração que Dumans e Uchoa nutrem pelo ator.

A grande gema preciosa de Arábia, porém, está no clímax final do filme, um grande monólogo dito por Cristiano na fábrica onde trabalha sobre o cenário que se situa. A cena, cuja sensação palpável de desencanto reflete no fundo um sentimento nacional nestes anos pós-lulismo e ajuda a canalizar todos os temas propostos pela produção, foi curiosamente pensada muito tempo depois, durante a montagem. "A gente filmou essas imagens depois de ter o filme pronto, e só fomos escrever o texto mesmo depois de já ter tudo praticamente montado, de já conseguir entender um ritmo" afirma Uchoa, enquanto Dumans diz que ambos gostam da ideia de trabalhar o filme na sala de edição sem saber qual será o final da história que contam.

Se a surpresa por esta imprevisibilidade da dupla é grande, não fique: o próprio método dos dois diretores para criar Arábia vive destas experimentações. Tanto que o projeto partiu como um média-metragem co-protagonizado por um jovem adolescente, que descobria a carta de Cristiano depois dele sofrer um acidente na fábrica. Ainda que tenha sido preservado como espécie de prólogo ao longa, a premissa inicial deste trecho reflete o que os dois classificam como "um processo de criação conturbado" no bom sentido. "O nosso método é meio bagunçado mesmo, a gente faz testes, experimenta ver se acontece e aí vai construindo as coisas a partir do que a gente tá vendo." comenta Dumans sobre este lado do cinema dos dois;  "A gente não consegue sentar em um escritório em Belo Horizonte e escrever uma história, fazer um casting de atores e colocar tudo na tela imediatamente. Essa não é a nossa onda, a nossa onda passa um pouco por experimentar nesses diferentes processos".

Confira o nosso bate-papo com Affonso Uchoa e João Dumans na íntegra a seguir.


Eu queria começar perguntando como é que vocês conceberam este projeto. Da onde ele vem? Ele é tão anômalo dentro da produção nacional e ao mesmo tempo não é, há algo de muito único dentro de toda a sua proposta.

JOÃO DUMANS: Bom, o filme começa um pouco antes e dentro do contexto onde estava fazendo outro filme chamado A Vizinhança do Tigre, que foi o primeiro longa que o Affonso dirigiu e eu também trabalhei. O A Vizinhança teve um processo muito longo, foi um filme que durou quatro ou cinco anos para ser finalizado e foi feito de uma maneira muito independente, com equipe pequena de duas ou três pessoas às vezes. E aí quando a gente estava fazendo A Vizinhança a gente resolveu pensar num outro filme que envolvia questões que para a gente eram importantes em relação às nossas origens - o Affonso é de Contagem e eu sou de Ouro Preto. E a gente queria trabalhar um filme que colocasse estes dois universos que são tão distantes, de uma cidade industrial como Contagem e de uma cidade histórica como Ouro Preto, e entendesse que ressonâncias e conexões essas cidades tinham. A gente tinha essa convicção de que tinha alguma coisa a ser explorada. 

Então o filme começou como uma espécie de cartografia de Minas Gerais?

JD: É, começou com uma cartografia que passava por esses dois lugares, que saía de um lugar contemporâneo para chegar num lugar histórico. Só que de repente a gente resolveu transformar esse lugar histórico também num lugar contemporâneo, vamos dizer assim, onde se pode pensar a situação real de uma cidade que está ali presa a uma certa imagem colonial, uma certa imagem arquitetônica e certos clichês visuais inclusive, mas que a cinco minutos deste centro histórico tá uma fábrica de bauxita que está instalada ali há 50 anos e que de certa forma reproduz uma estrutura de poder e de exploração que é muito parecida com que Ouro Preto tinha durante o século 18. Isso chamou muito a nossa atenção e a gente resolveu transformar esta vila operária de novo no centro do nosso filme. Ao mesmo tempo, existia vindo do Vizinhança esse personagem (essa personalidade na verdade) que é [interpretado pelo] o Aristides, que é o protagonista. E aí a gente resolveu começar a construir uma história em torno desse personagem histórico que nós mesmos escrevemos, mas inspirados um pouco pelo ator, que nós chamamos de Juninho. E aí construímos.

Na verdade, o filme tem muitas origens diferentes porque o processo foi muito longo, e aí várias coisas foram se depositando ao longo desse processo. Então primeiro tinha ideia desse encontro de cidades, aí tinha essa coisa do Juninho e da gente construir um personagem ficcional para ele. Tinha outros elementos que foram aparecendo, tinha nossa vontade de trabalhar com certas referências literárias que a gente tinha em comum...

E uma delas é o Arábia do James Joyce, presumo.

JD: Não só. Na verdade o Joyce era um disparador, mas nossas referências mesmo tem mais a ver com a literatura moderna brasileira de Graciliano Ramos, de João Antônio, de Oswaldo França Júnior e etc, que eram coisas que a gente lia e que tinham uma tradição artística brasileira que para nós estava um pouco esquecida. 

Vocês podem comentar um pouquinho mais sobre isso? Admito que fiquei curioso com este lado da produção.

JD: Existe uma tradição literária forte no Brasil, especialmente na primeira metade do século 20, que tem a ver com tentar construir um retrato do país e da realidade brasileira através da perspectiva dos trabalhadores e de pessoas comuns. Então de Grande Sertão Veredas a Vidas Secas e outros romances brasileiros, além do João Antônio Machado que traz um pouco da coisa regionalista para a cidade, tinha essa ideia de criar narrativas que seriam não só protagonizados como narradas por pessoas comuns, fossem eles criminosos, bandidos, loucos ou trabalhadores, e muitos destes romances exercitaram um pouco essa forma de narrar das pessoas comuns. E isso pra gente era uma coisa muito marcante, tanto como gesto artístico quanto como gesto criativo, de tentar criar espaço para que estas pessoas contassem sua própria história. Então de São Bernardo do Graciliano Ramos a Jorge, Um Brasileiro do Oswaldo França Jr., esses romances marcaram a gente pelo esforço de construir histórias que passavam pelo eu lírico e pela subjetividade de pessoas comuns da nossa sociedade de trabalhadores, e não só pela voz do intelectual do escritor.

Vocês queriam levar isso para a realidade de vocês, então?

JD: Na realidade a gente queria trazer um pouco disso para o cinema também.

AFFONSO UCHOA: A gente está falando deste trabalho da literatura como uma influência, como uma fonte de reflexão que fizesse com que a gente olhasse esta realidade de uma maneira diferente. É a partir daí que vem a parte dois do trabalho, que é como fazer essa percepção se transformar em cinema, e o jogo do cinema também envolve outras questões e outras referências. Mas certamente o que une tudo isso é fazer com que esses essas figuras mais marginalizadas da sociedade sejam os protagonistas das histórias. Isto não significa que elas tenham que ser heróis. Acho que isso também é importante dizer porque pode gerar uma confusão esquisita.

E isso no filme se reflete no fato do personagem do Aristides não ser uma figura heroica e sim uma pessoa comum.

AU: Justamente. O que une também o nosso cinema com isso tudo que a gente está falando da literatura é de ver uma grandeza nesse universo, nessas histórias e nessas pessoas. Por que contar a história dessas pessoas? Porque elas são grandes o suficiente para a gente conseguir não só entender melhor o mundo, mas principalmente um Brasil, o que sozinho era uma espécie de ambição da escrita brasileira, mesmo se você pega um Oswald de Andrade da vida com um poema da linguagem e o “mim dá um cigarro”. Sempre lembro muito da frase dita pelo John Dos Passos, um escritor que não é brasileiro e que foi muito influente para o nosso trabalho, que diz que um país é acima de tudo a língua de seu povo. Então a língua que tem que ser escrita e as palavras que tem que ser usadas tem que bater com essa língua e não com a linguagem do bacharel. E como as histórias são protagonizadas por gente que fala desse jeito a gente tem essa perspectiva. É a ralé que a gente quer botar no primeiro plano. 

E isso não é todo processo, ele só vai até a página 2. A gente pensa “beleza, então a partir do momento que a gente coloca esta camada das pessoas das cidades como protagonista e dá poder à fala deles, a parada acabou aí?” e conclui que não, porque muitos filmes já fizeram isso como por exemplo Cidade de Deus e o Tropa de Elite da vida, que são filmes focados em pessoas e situações marginalizadas que vão ali para a periferia tirar todas as suas histórias. Então é isso que a gente tem que fazer? Tem que se contentar com essa fórmula? Não, porque na verdade a gente queria fazer uma coisa diferente. E aí a gente tinha um problema cinematográfico, que era como retratar estas pessoas e este universo. 

A nossa solução foi trafegar por uma espécie de meio de caminho. Ao mesmo tempo em que a gente era muito tocado pela realidade e pela força daquela gente, a gente pensava que o cinema tinha um potencial de invenção na relação com essa realidade. A gente queria fazer um filme muito franco e muito direto na relação com a realidade, mas quis deixar clara a construção dos planos, do roteiro, da encenação e a sensação de que a gente está construindo este filme junto deste universo. A gente não está colocando o cinema em um lugar discreto e do mero registro, de um lugar de apequenamento perante a força da realidade. 

Este filme começou como um média-metragem e só depois se transformou em um longa. Eu queria saber se o que aumentou esta duração da produção foi o prólogo protagonizado pelo garoto e o irmão pequeno.

JD: O que acontece aqui é que nosso processo de criação do filme é um pouco conturbado - e para nós isso faz parte, não falo como demérito e sim como método, cada diretor vai trabalhar com um método específico que ele acredita que é mais viável para chegar onde ele quer. E no nosso caso o nosso método é meio bagunçado mesmo, a gente faz testes, experimenta ver se acontece e aí vai construindo as coisas a partir do que a gente tá vendo. A gente não consegue sentar em um escritório em Belo Horizonte e escrever uma história, fazer um casting de atores e colocar tudo na tela imediatamente. Essa não é a nossa onda, a nossa onda passa um pouco por experimentar nesses diferentes processos. 

Em 2014 a gente filmou a primeira parte da história que era de fato o primeiro momento da história, mas já existia ali a figura do protagonista. Na verdade o Juninho estava preso na época em que a gente realizou essa primeira parte, então um outro ator teve que fazer o papel. Mas existia sim aquela cena do menino encontrando o caderno, só que isso não tinha nesse média-metragem a dimensão que a história do Cristiano tem, ele encontrava uma carta muito longa que tomava quase metade do filme. Só que a gente descobriu ao longo do processo que a força maior do filme na verdade estava ali naquela carta, e aí a gente resolveu abrir essa carta e transformá-la numa coisa gigantesca e com teor de uma novela literária.

Então o filme começou na perspectiva do garoto e só depois se expandiu para o Cristiano? Que curioso.

AU: Sim. Na verdade a gente tinha esse personagem do Cristiano pouco desenvolvido e o nosso principal problema em parte era porque o Juninho estava preso porque a gente queria escrever para ele, só que a gente não tinha como. E aí a gente arriscou fazer um teste com outro ator porque a gente não sabia quando que ele ia ser solto.

Ele foi preso por que?

AU: Ele foi preso por um furto, era um momento muito difícil da vida dele, que foi no final do A Vizinhança do Tigre. Era um momento em que ele estava muito deprimido, muito mal mesmo. E a força com a qual ele superou esta fase, da maneira como ele aguentou ficar preso um ano e meio, ficar esse período todo afastado e achando que perdeu as oportunidades oferecidas é um sinal do quanto a gente se inspira nele. Esse cara sai disso, se recupera e se reinventa completamente.

JD: Ele saiu três dias antes das filmagens começarem. A gente decidiu adiar o filme em quatro dias e ele virou pra nós dois e disse “Não, eu tô pronto. Pode ir, podemos começar a filmar.”. Isso depois de um ano na prisão!

Falando no Aristides, eu preciso perguntar sobre aquele monólogo que ele entrega no final do filme. Da onde veio a ideia daquela cena e como ela foi gerada na produção?

AU: É muito engraçado, a gente filmou o filme em um espaço de tempo de três anos. Filmamos uma etapa em 2014, que foi centrada nesta primeira porção do filme, depois filmamos uma grande parte do caderno em 2015 e a gente só filmou o final em 2016, quando já tínhamos começado a montagem do longa.

JD: A gente já tinha um primeiro corte, aí fomos filmar na fábrica.

AU: Exato. Foi durante a montagem que a gente conseguiu a ideia desse final e a gente foi filmar ele, filmar aquela fábrica em busca daquela cena. Mas quando a gente começa a montar um filme a gente não tem final. 

JD: É, nós só escrevemos o off depois que a fábrica estava filmada. 

AU: Esta ideia deste final só surgiu durante a montagem, a gente filmou essas imagens depois de ter o filme pronto. E só fomos escrever o texto mesmo depois de já ter tudo praticamente montado, de já conseguir entender um ritmo e já ter gravado um monte de off antes.

Eu acho fascinante o desencanto que vocês refletem, ele traz embutido uma forte posição política. E isso é algo que venho percebendo em outros em discussões sobre o filme.

AU: A gente tem uma certa inspiração que acho muito bonita e que vale a pena contar. Tem um poema do italiano Cesare Pavese chamado Disciplina cujos últimos versos dizem exatamente o que dizemos no fim. É algo como “a fábrica nos deixa levantar a cabeça e olhar a cidade, mas sabendo que logo após abaixaremos”. Então o que queríamos com este final é se interrogar se este sujeito não volta a cabeça pra baixo, se ele não levanta a cabeça e ele olha o outro, olha a variedade do mundo na frente dele. E se ele não voltar para o trabalho, se convencer de que precisa voltar? Era um pouco desta pergunta que a gente queria refletir ali. E na verdade esse cenário é uma utopia, porque todo mundo volta a cabeça para baixo de novo, porque a urgência e a necessidade do trabalho se impõe. Mas vamos tentar pensar esse momento quase utópico e ver o trabalhador refletindo sobre o próprio trabalho e sobre si mesmo naquele momento. Acho que esta é a nossa inspiração final, no fim de tudo.