quinta-feira, 5 de abril de 2018

A Arábia do desencanto

Conversamos com os diretores de Arábia sobre o filme que estreia nesta quinta nos cinemas brasileiros.

Por Pedro Strazza.

Affonso Uchoa e João Dumans nunca estudaram em uma faculdade de Letras, mas o conhecimento de ambos sobre literatura pode levar qualquer um a concluir o contrário. Embora sejam de pontos diferentes do interior de Minas Gerais - o primeiro é de Contagem, o segundo de Ouro Preto - os dois cineastas viram o interesse fervoroso por obras literárias nacionais e internacionais unir suas carreiras profissionais quando ambos trabalhavam em A Vizinhança do Tigre, o trabalho de estreia de Uchoa na direção.

Foi da vontade de ambos de incorporar traços de um movimento literário particular da produção nacional ao cinema, inclusive, que nasceu Arábia, projeto escrito, filmado e montado pela dupla ao longo de quatro anos. "Nossas referências mesmo tem mais a ver com a literatura moderna brasileira de Graciliano Ramos, de João Antônio, de Oswaldo França Júnior e etc, que eram coisas que a gente lia e que tinham uma tradição artística brasileira que para nós estava um pouco esquecida" afirma Dumans em entrevista ao O Nerd Contra-Ataca, feita durante a divulgação do filme que estreia nesta quinta-feira (4) nos cinemas brasileiros; "Existe uma tradição literária forte no Brasil, especialmente na primeira metade do século 20, que tem a ver com tentar construir um retrato do país e da realidade brasileira através da perspectiva dos trabalhadores e de pessoas comuns. E isso pra gente era uma coisa muito marcante, tanto como gesto artístico quanto como gesto criativo" ele continua.

Dumans se refere, claro, a Cristiano, personagem interpretado por Aristides de Sousa que faz na história uma pequena odisseia trabalhista pelo Estado em busca de bicos para sobreviver. Esta jornada interiorana também parte de outra origem do filme, que a princípio tinha seu trajeto determinado de forma a conectar as duas cidades natais de seus diretores, determinando uma conexão íntima entre a História e o cenário de Minas. Foi uma noção que depois acabou sendo alterada - Dumans conta que a descoberta de uma indústria de bauxita há cinco minutos do centro histórico de Ouro Preto transformou a visão dos dois sobre o projeto - mas que ajuda o espectador a entender parte dos motivos pelo qual o filme pode lhe ser tão magnético em seus ciclos trabalhistas tão bem encadeados na narrativa poética amarrada pelos cineastas.

Outro destes motivos reside na própria performance de Sousa, cuja atuação e narração em off são capazes de impulsionar o misto de simplicidade pessoal e complexidade mística que paira sobre seu papel. Mas o trajeto de "Juninho" (como os diretores o apelidam carinhosamente), tal qual o seu personagem, foi bastante tortuoso: embora fosse um dos principais motivos para o projeto existir, ele foi parar na prisão por um ano e meio por conta de um crime pequeno que cometeu em meio a um momento difícil de sua vida. A depressão e a possibilidade de perder o trabalho no filme, porém, não o abateram, e três dias depois de ter terminado de pagar a sentença ele já estava no set trabalhando - um esforço que só acrescenta à admiração que Dumans e Uchoa nutrem pelo ator.

A grande gema preciosa de Arábia, porém, está no clímax final do filme, um grande monólogo dito por Cristiano na fábrica onde trabalha sobre o cenário que se situa. A cena, cuja sensação palpável de desencanto reflete no fundo um sentimento nacional nestes anos pós-lulismo e ajuda a canalizar todos os temas propostos pela produção, foi curiosamente pensada muito tempo depois, durante a montagem. "A gente filmou essas imagens depois de ter o filme pronto, e só fomos escrever o texto mesmo depois de já ter tudo praticamente montado, de já conseguir entender um ritmo" afirma Uchoa, enquanto Dumans diz que ambos gostam da ideia de trabalhar o filme na sala de edição sem saber qual será o final da história que contam.

Se a surpresa por esta imprevisibilidade da dupla é grande, não fique: o próprio método dos dois diretores para criar Arábia vive destas experimentações. Tanto que o projeto partiu como um média-metragem co-protagonizado por um jovem adolescente, que descobria a carta de Cristiano depois dele sofrer um acidente na fábrica. Ainda que tenha sido preservado como espécie de prólogo ao longa, a premissa inicial deste trecho reflete o que os dois classificam como "um processo de criação conturbado" no bom sentido. "O nosso método é meio bagunçado mesmo, a gente faz testes, experimenta ver se acontece e aí vai construindo as coisas a partir do que a gente tá vendo." comenta Dumans sobre este lado do cinema dos dois;  "A gente não consegue sentar em um escritório em Belo Horizonte e escrever uma história, fazer um casting de atores e colocar tudo na tela imediatamente. Essa não é a nossa onda, a nossa onda passa um pouco por experimentar nesses diferentes processos".

Confira o nosso bate-papo com Affonso Uchoa e João Dumans na íntegra a seguir.


Eu queria começar perguntando como é que vocês conceberam este projeto. Da onde ele vem? Ele é tão anômalo dentro da produção nacional e ao mesmo tempo não é, há algo de muito único dentro de toda a sua proposta.

JOÃO DUMANS: Bom, o filme começa um pouco antes e dentro do contexto onde estava fazendo outro filme chamado A Vizinhança do Tigre, que foi o primeiro longa que o Affonso dirigiu e eu também trabalhei. O A Vizinhança teve um processo muito longo, foi um filme que durou quatro ou cinco anos para ser finalizado e foi feito de uma maneira muito independente, com equipe pequena de duas ou três pessoas às vezes. E aí quando a gente estava fazendo A Vizinhança a gente resolveu pensar num outro filme que envolvia questões que para a gente eram importantes em relação às nossas origens - o Affonso é de Contagem e eu sou de Ouro Preto. E a gente queria trabalhar um filme que colocasse estes dois universos que são tão distantes, de uma cidade industrial como Contagem e de uma cidade histórica como Ouro Preto, e entendesse que ressonâncias e conexões essas cidades tinham. A gente tinha essa convicção de que tinha alguma coisa a ser explorada. 

Então o filme começou como uma espécie de cartografia de Minas Gerais?

JD: É, começou com uma cartografia que passava por esses dois lugares, que saía de um lugar contemporâneo para chegar num lugar histórico. Só que de repente a gente resolveu transformar esse lugar histórico também num lugar contemporâneo, vamos dizer assim, onde se pode pensar a situação real de uma cidade que está ali presa a uma certa imagem colonial, uma certa imagem arquitetônica e certos clichês visuais inclusive, mas que a cinco minutos deste centro histórico tá uma fábrica de bauxita que está instalada ali há 50 anos e que de certa forma reproduz uma estrutura de poder e de exploração que é muito parecida com que Ouro Preto tinha durante o século 18. Isso chamou muito a nossa atenção e a gente resolveu transformar esta vila operária de novo no centro do nosso filme. Ao mesmo tempo, existia vindo do Vizinhança esse personagem (essa personalidade na verdade) que é [interpretado pelo] o Aristides, que é o protagonista. E aí a gente resolveu começar a construir uma história em torno desse personagem histórico que nós mesmos escrevemos, mas inspirados um pouco pelo ator, que nós chamamos de Juninho. E aí construímos.

Na verdade, o filme tem muitas origens diferentes porque o processo foi muito longo, e aí várias coisas foram se depositando ao longo desse processo. Então primeiro tinha ideia desse encontro de cidades, aí tinha essa coisa do Juninho e da gente construir um personagem ficcional para ele. Tinha outros elementos que foram aparecendo, tinha nossa vontade de trabalhar com certas referências literárias que a gente tinha em comum...

E uma delas é o Arábia do James Joyce, presumo.

JD: Não só. Na verdade o Joyce era um disparador, mas nossas referências mesmo tem mais a ver com a literatura moderna brasileira de Graciliano Ramos, de João Antônio, de Oswaldo França Júnior e etc, que eram coisas que a gente lia e que tinham uma tradição artística brasileira que para nós estava um pouco esquecida. 

Vocês podem comentar um pouquinho mais sobre isso? Admito que fiquei curioso com este lado da produção.

JD: Existe uma tradição literária forte no Brasil, especialmente na primeira metade do século 20, que tem a ver com tentar construir um retrato do país e da realidade brasileira através da perspectiva dos trabalhadores e de pessoas comuns. Então de Grande Sertão Veredas a Vidas Secas e outros romances brasileiros, além do João Antônio Machado que traz um pouco da coisa regionalista para a cidade, tinha essa ideia de criar narrativas que seriam não só protagonizados como narradas por pessoas comuns, fossem eles criminosos, bandidos, loucos ou trabalhadores, e muitos destes romances exercitaram um pouco essa forma de narrar das pessoas comuns. E isso pra gente era uma coisa muito marcante, tanto como gesto artístico quanto como gesto criativo, de tentar criar espaço para que estas pessoas contassem sua própria história. Então de São Bernardo do Graciliano Ramos a Jorge, Um Brasileiro do Oswaldo França Jr., esses romances marcaram a gente pelo esforço de construir histórias que passavam pelo eu lírico e pela subjetividade de pessoas comuns da nossa sociedade de trabalhadores, e não só pela voz do intelectual do escritor.

Vocês queriam levar isso para a realidade de vocês, então?

JD: Na realidade a gente queria trazer um pouco disso para o cinema também.

AFFONSO UCHOA: A gente está falando deste trabalho da literatura como uma influência, como uma fonte de reflexão que fizesse com que a gente olhasse esta realidade de uma maneira diferente. É a partir daí que vem a parte dois do trabalho, que é como fazer essa percepção se transformar em cinema, e o jogo do cinema também envolve outras questões e outras referências. Mas certamente o que une tudo isso é fazer com que esses essas figuras mais marginalizadas da sociedade sejam os protagonistas das histórias. Isto não significa que elas tenham que ser heróis. Acho que isso também é importante dizer porque pode gerar uma confusão esquisita.

E isso no filme se reflete no fato do personagem do Aristides não ser uma figura heroica e sim uma pessoa comum.

AU: Justamente. O que une também o nosso cinema com isso tudo que a gente está falando da literatura é de ver uma grandeza nesse universo, nessas histórias e nessas pessoas. Por que contar a história dessas pessoas? Porque elas são grandes o suficiente para a gente conseguir não só entender melhor o mundo, mas principalmente um Brasil, o que sozinho era uma espécie de ambição da escrita brasileira, mesmo se você pega um Oswald de Andrade da vida com um poema da linguagem e o “mim dá um cigarro”. Sempre lembro muito da frase dita pelo John Dos Passos, um escritor que não é brasileiro e que foi muito influente para o nosso trabalho, que diz que um país é acima de tudo a língua de seu povo. Então a língua que tem que ser escrita e as palavras que tem que ser usadas tem que bater com essa língua e não com a linguagem do bacharel. E como as histórias são protagonizadas por gente que fala desse jeito a gente tem essa perspectiva. É a ralé que a gente quer botar no primeiro plano. 

E isso não é todo processo, ele só vai até a página 2. A gente pensa “beleza, então a partir do momento que a gente coloca esta camada das pessoas das cidades como protagonista e dá poder à fala deles, a parada acabou aí?” e conclui que não, porque muitos filmes já fizeram isso como por exemplo Cidade de Deus e o Tropa de Elite da vida, que são filmes focados em pessoas e situações marginalizadas que vão ali para a periferia tirar todas as suas histórias. Então é isso que a gente tem que fazer? Tem que se contentar com essa fórmula? Não, porque na verdade a gente queria fazer uma coisa diferente. E aí a gente tinha um problema cinematográfico, que era como retratar estas pessoas e este universo. 

A nossa solução foi trafegar por uma espécie de meio de caminho. Ao mesmo tempo em que a gente era muito tocado pela realidade e pela força daquela gente, a gente pensava que o cinema tinha um potencial de invenção na relação com essa realidade. A gente queria fazer um filme muito franco e muito direto na relação com a realidade, mas quis deixar clara a construção dos planos, do roteiro, da encenação e a sensação de que a gente está construindo este filme junto deste universo. A gente não está colocando o cinema em um lugar discreto e do mero registro, de um lugar de apequenamento perante a força da realidade. 

Este filme começou como um média-metragem e só depois se transformou em um longa. Eu queria saber se o que aumentou esta duração da produção foi o prólogo protagonizado pelo garoto e o irmão pequeno.

JD: O que acontece aqui é que nosso processo de criação do filme é um pouco conturbado - e para nós isso faz parte, não falo como demérito e sim como método, cada diretor vai trabalhar com um método específico que ele acredita que é mais viável para chegar onde ele quer. E no nosso caso o nosso método é meio bagunçado mesmo, a gente faz testes, experimenta ver se acontece e aí vai construindo as coisas a partir do que a gente tá vendo. A gente não consegue sentar em um escritório em Belo Horizonte e escrever uma história, fazer um casting de atores e colocar tudo na tela imediatamente. Essa não é a nossa onda, a nossa onda passa um pouco por experimentar nesses diferentes processos. 

Em 2014 a gente filmou a primeira parte da história que era de fato o primeiro momento da história, mas já existia ali a figura do protagonista. Na verdade o Juninho estava preso na época em que a gente realizou essa primeira parte, então um outro ator teve que fazer o papel. Mas existia sim aquela cena do menino encontrando o caderno, só que isso não tinha nesse média-metragem a dimensão que a história do Cristiano tem, ele encontrava uma carta muito longa que tomava quase metade do filme. Só que a gente descobriu ao longo do processo que a força maior do filme na verdade estava ali naquela carta, e aí a gente resolveu abrir essa carta e transformá-la numa coisa gigantesca e com teor de uma novela literária.

Então o filme começou na perspectiva do garoto e só depois se expandiu para o Cristiano? Que curioso.

AU: Sim. Na verdade a gente tinha esse personagem do Cristiano pouco desenvolvido e o nosso principal problema em parte era porque o Juninho estava preso porque a gente queria escrever para ele, só que a gente não tinha como. E aí a gente arriscou fazer um teste com outro ator porque a gente não sabia quando que ele ia ser solto.

Ele foi preso por que?

AU: Ele foi preso por um furto, era um momento muito difícil da vida dele, que foi no final do A Vizinhança do Tigre. Era um momento em que ele estava muito deprimido, muito mal mesmo. E a força com a qual ele superou esta fase, da maneira como ele aguentou ficar preso um ano e meio, ficar esse período todo afastado e achando que perdeu as oportunidades oferecidas é um sinal do quanto a gente se inspira nele. Esse cara sai disso, se recupera e se reinventa completamente.

JD: Ele saiu três dias antes das filmagens começarem. A gente decidiu adiar o filme em quatro dias e ele virou pra nós dois e disse “Não, eu tô pronto. Pode ir, podemos começar a filmar.”. Isso depois de um ano na prisão!

Falando no Aristides, eu preciso perguntar sobre aquele monólogo que ele entrega no final do filme. Da onde veio a ideia daquela cena e como ela foi gerada na produção?

AU: É muito engraçado, a gente filmou o filme em um espaço de tempo de três anos. Filmamos uma etapa em 2014, que foi centrada nesta primeira porção do filme, depois filmamos uma grande parte do caderno em 2015 e a gente só filmou o final em 2016, quando já tínhamos começado a montagem do longa.

JD: A gente já tinha um primeiro corte, aí fomos filmar na fábrica.

AU: Exato. Foi durante a montagem que a gente conseguiu a ideia desse final e a gente foi filmar ele, filmar aquela fábrica em busca daquela cena. Mas quando a gente começa a montar um filme a gente não tem final. 

JD: É, nós só escrevemos o off depois que a fábrica estava filmada. 

AU: Esta ideia deste final só surgiu durante a montagem, a gente filmou essas imagens depois de ter o filme pronto. E só fomos escrever o texto mesmo depois de já ter tudo praticamente montado, de já conseguir entender um ritmo e já ter gravado um monte de off antes.

Eu acho fascinante o desencanto que vocês refletem, ele traz embutido uma forte posição política. E isso é algo que venho percebendo em outros em discussões sobre o filme.

AU: A gente tem uma certa inspiração que acho muito bonita e que vale a pena contar. Tem um poema do italiano Cesare Pavese chamado Disciplina cujos últimos versos dizem exatamente o que dizemos no fim. É algo como “a fábrica nos deixa levantar a cabeça e olhar a cidade, mas sabendo que logo após abaixaremos”. Então o que queríamos com este final é se interrogar se este sujeito não volta a cabeça pra baixo, se ele não levanta a cabeça e ele olha o outro, olha a variedade do mundo na frente dele. E se ele não voltar para o trabalho, se convencer de que precisa voltar? Era um pouco desta pergunta que a gente queria refletir ali. E na verdade esse cenário é uma utopia, porque todo mundo volta a cabeça para baixo de novo, porque a urgência e a necessidade do trabalho se impõe. Mas vamos tentar pensar esse momento quase utópico e ver o trabalhador refletindo sobre o próprio trabalho e sobre si mesmo naquele momento. Acho que esta é a nossa inspiração final, no fim de tudo.

0 comentários :

Postar um comentário