sexta-feira, 19 de maio de 2017

Crítica: Corra!

Filme equilibra-se entre comédia e terror para potencializar no espectador o sentimento de opressão.

Por Pedro Strazza.

Em tempos em que a televisão e o cinema americano tem suas fronteiras cada vez menos discerníveis pelo mercado - o primeiro pela ascensão das séries e do quality TV que tomam emprestado elementos do segundo e o último pelo reforço da serialização oriundo da constante expansão de suas marcas - há de se enxergar certo valor nos esforços de um filme como Corra! de discernir os dois meios e fazer um ser o motor do outro. Pois ainda que este se insinue, se movimente e funcione como um terror baseado na inversão de perspectiva e na temática do preconceito racial que sempre esteve presente nos caminhos do país, o debute de Jordan Peele na direção parece encontrar no televisor o canal ideal para explicitar na telona o horror ao qual se propõe transmitir.

Esta é uma questão, porém, que só irá se manifestar mais para frente na trama do longa, que acompanha a princípio a viagem do jovem negro Chris (Daniel Kaluuya) para conhecer a família de sua namorada branca Rose (Allison Williams). A premissa em nenhum momento esconde a intenção central da obra, deixando claro desde os seus primeiros minutos - nos quais mostra o sequestro noturno misterioso de outro homem de cor (Lakeith Stanfield) em um típico bairro suburbano - que o que está em jogo no filme é este estado de medo e acuamento vivido pelo negro em uma maioria branca, uma mudança de ponto de vista cuja subversão ao clichê por si já coloca a produção em um cenário absurdo dos mais promissores.

Mas ainda que jogue "às claras", Peele esconde alguns trunfos para potencializar o arco crescente de sua narrativa, cujo clímax aposta na explosão do choque racial. Apostando em uma direção tradicional e fadada a poucos riscos (mesmo os planos extremamente fechados, usados no geral para deformar os personagens e reforçar seu caráter ameaçador, são utilizados com parcimônia), o diretor trabalha Corra! constantemente no limite entre o humor e o horror da situação, tanto ironizando os clichês pelo qual o roteiro passa - a piada com o fim do governo Obama, que sem surpresa surge como uma espécie de agouro aos eventos da história, permeia diversas passagens da trama - quanto apostando neles para construir a tensão - o ideal da família unida e feliz, afinal, sempre foi um desejo temido por quem a observa de fora.

E é justo neste ato de ver a situação de fora que o filme se baseia para se transformar à partir do terceiro ato, quando dá as devidas explicações ao espectador sobre os acontecimentos e parte para suas conclusões finais. Tudo por causa da televisão, que parte na história como mero acessório, presente no trauma de Chris com a perda da mãe na infância, para se fazer ponto central do horror do filme - na hipnose da mãe de Rose (Catherine Keener), com as vítimas vendo a realidade como se vissem TV do além, e no salão onde o protagonista entende tudo - e da debochada narrativa subjetiva, que cresce na mesma medida que o amigo policial de Chris, Rod (LilRel Howery), passa a atuar na trama comentando e reagindo aos acontecimentos como o típico telespectador americano - a cena de sua conversa por telefone com uma das figuras homicidas, vale acrescentar, é uma das mais engraçadas do filme.

Essa mudança de tom (que na verdade é uma revelação do teor subjetivo) ajuda Corra! a superar os problemas típicos das tramas pautadas pelo mistério, mas ao mesmo tempo ela também confere a ele uma dinâmica ainda mais instigante. Isso porque o que se alternava entre humor e horror no longa até então passa a misturar ambos os elementos em um só à partir do momento que Peele começa a combinar o terror da opressão racial com os clichês cômicos oriundos da alienação televisiva, seja no cenário de comercial de margarina em que a trama se passa quanto na revelação da conspiração atuante na trama e cujo clímax se dá no interior labiríntico de uma mansão. Para o diretor, o status de controle e hipnose social gerido pela televisão talvez seja a única forma de incutir no público geral esse estado de medo vivido pelo negro no dia-a-dia.

Nota: 8/10

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