segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Crítica: Que Horas Ela Volta?

Anna Muylaert encontra no jogo social exercido dentro do lar um palco para discussão sobre mães e filhos.

Por Pedro Strazza.

Nos últimos anos, vem-se notando no cinema (até agora) sul-americano uma nova tendência, que consiste em interiorizar as lutas e contradições sociais de seus países ao âmbito doméstico, usando da instituição familiar para conseguir compreender melhor como sua sociedade funciona em sua gigantesca e complexa totalidade. Do drama geracional proposto pelo peruano Casadentro ao ensaio quase presunçoso do brasileiro Casa Grande, esse movimento sinódico parecia estar perdido no excesso de preocupação sociológica em cima da causa, mas encontra novo fôlego com Que Horas Ela Volta?, que não só faz um retrato social satisfatoriamente interessante como também é sagaz em criar um drama de relações maternas que guie seu estudo sobre o coletivo brasileiro.
Escrito e dirigido por Anna Muylaert, o longa conta a história de Val (Regina Casé), nordestina que mora e trabalha numa casa de elite em São Paulo, primeiro como babá para Fabinho (Michel Joelsas), a criança da família, e depois como empregada doméstica. Há dez anos no serviço, ela vê sua vida virar de cabeça para baixo quando sua filha Jéssica (Camila Márdila), que chega na capital paulista para prestar o vestibular de arquitetura na USP, vem morar com ela na residência de luxo e começa a questionar todos os costumes adotado pela hierarquia formada no local.
Esse choque de culturas proposto pela diretora funciona muito por causa da atenção que ela dá no primeiro ato a esta organização soerguida entre empregado e empregador - nesse caso, entre Val e a matriarca Bárbara (Karine Teles). Seja no "muro" branco erguido para separar a sala de jantar da cozinha ou no posicionamento quase sempre lateral da protagonista nas cenas em que divide com sua chefe, Muylaert e a diretora de fotografia Barbara Alvarez são inteligentes em delimitar ao espectador a natureza do relacionamento das duas mães não apenas pelos diálogos, que mesmo fundamental - a situação envolvendo o jogo de xícaras, por exemplo, se faz importante para acompanhar os caminhos tomados na narrativa - não seria capaz de sozinho dar cabo de tal tarefa. Dessa maneira, quando Jéssica é apresentada aos patrões de sua mãe o palco já está pronto para ser desconstruído.
Mas enquanto peça de conflitos sociais, Que Horas Ela Volta? funciona melhor como análise do mãe-e-filha em tempos posteriores ao grande fluxo migratório nordeste-sudeste. Isso porque o roteiro entende muito bem que além da dinâmica entre Val e Jéssica existe uma relação similar da primeira com Fabinho, muito mais íntima e pessoal que ele tem com a própria Bárbara ou que ela tem com a filha. A cena de abertura da obra, no qual traz a doméstica com o filho do patrão num momento tipicamente maternal, é crucial por expor a inconsistência do próprio ato e apontar uma das maiores consequências destes deslocamentos regionais - e que, como o filme bem lembra mais adiante, ainda existem no país.
Com isso em mente, é incômodo perceber que Muylaert abra mão de figuras mais complexas e adote em seus personagens o ar caricatural, cuja força acaba dependente demais do talento individual dos atores em realizar tal construção. Assim, enquanto Casé, uma atriz experiente em tipos sociais parecidos com o da protagonista, tira de letra seu papel e dá uma vivacidade fascinante a ela, a família interpretada por Teles, Lourenço Mutarelli e Joelsas acaba preso a estereótipos não muito interessantes da elite como a mãe frígida, o pai em crise de meia-idade ou o filho playboy que insiste em usar a camisa dos Ramones para denotar sua rebeldia. Márdila, por outro lado, faz à mercê de uma corrente de simbolismos uma Jéssica bastante funcional, capaz de atrair o espectador a seus dramas e sua posição insubmissa ao sistema.
É de um equilíbrio sagaz, porém, que Que Horas Ela Volta? se consagra, tanto no gênero (a comédia e o drama encontram espaços confortáveis para se sustentar) quanto na estrutura de sua história, elaborado com a mesma delicadeza no plano simbólico e no desenvolvimento dos arcos vividos por seus personagens. Em um filme que busca humanidade em tipos estilizados, Muylaert constrói uma obra sobre famílias despedaçadas em meio às regras duras do jogo social, feito incapaz de reconhecer seus danos ao indivíduo. E quando este último percebe a tolice da hierarquia à qual pertence, nada é melhor para celebrar que um mergulho na piscina do patrão.

Nota: 8/10

1 comentários :

Muito boa análise Pedrão. Acaba ficando evidente o clichêzao da elite paulistana, mas é até cômico observar os papéis...

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