domingo, 6 de abril de 2014

Crítica: Noé

O dilúvio e seus ensinamentos segundo Darren Aronofsky

Por Pedro Strazza

Para se produzir um filme bíblico, existem dois caminhos bastante distintos. Os responsáveis podem ou fazer uma adaptação literal do conteúdo da Bíblia e, portanto, reverenciar os valores e dogmas divulgados por este; ou podem rever as histórias do principal livro da religião cristã. Nesta última, realiza-se pequenas modificações nos conteúdos bíblico para atribuir a estes novos significados e direções ou críticas - algo que, nestes dois casos, com certeza deixará a Igreja Católica e seus seguidores levemente irritada.

Sob esse olhar categorizado deste "gênero", Noé é um filme que obviamente se encaixa no lado mais interpretativo das escrituras, mas que estranhamente ainda assume as funções da outra categoria. Lançado em um ano curiosamente repleto de lançamentos bíblicos cheios de pompa (Além dele, temos também Exodus e O Filho de Deus), o sexto longa-metragem da carreira de Darren Aronofsky reconta a clássica história da arca de Noé por meio de uma visão mais épica e fantasiosa, assumindo para si a mesma atitude de produções cinematográficas sobre a mitologia grega. Em meio a isso, o roteiro escrito por Aronofsky e Ari Handel procura, ainda sim, transmitir ensinamentos ambientalistas e existenciais, por meio do confronto entre o próprio Noé (Russell Crowe) e Tubal-Cain (Ray Winstone).

Cada um destes dois homens representa, ao mesmo tempo, as suas respectivas ascendências e crenças de seus povos quanto à fé em Deus. O construtor da famosa arca e sua família descendem de Set e ainda acreditam, de certa forma, na bondade divina, fazendo de tudo para preservar as Suas criações; Tubal-Cain e seus súditos, por outro lado, são filhos de Caim e crentes de que Deus os abandonou no mundo, e, como  em nada O deve, destroem a natureza em seu próprio benefício. Essa divisão é, na maioria do tempo, sabiamente não abordada por Aronofsky como maniqueísta, mas sim opinativa, tornando um pouco menos tendenciosa as questões abordadas (exceto, claro, na posição ambiental) e reduzindo o tom dogmático do filme.

Essa personificação dos pensamentos sociais sobre os protagonistas esvazia o protagonista e seu inimigo, entretanto, suas respectivas individualidades, prejudicando a construção e o desenvolvimento de ambos no roteiro. Em grande parte do tempo, têm-se a impressão de que Noé não faz nada sem a permissão ou opinião divina - e às vezes dá a entender que interpretou erroneamente as intervenções de Deus, tal qual é o caso de seu excelente, mas mal introduzido, arco de "enlouquecimento" -, ao passo que as ações de Tubal-Cain parecem apenas maléficas por essência, sem possuir um objetivo. Para piorar, esses dois perfis acentuam-se demais na parte final do longa, tirando do conflito qualquer envolvimento emocional por parte do espectador.

Se os dois líderes são mal desenvolvidos pela significação social imposta, os personagens coadjuvantes em sua maioria sofrem tropeços pela ausência de um fechamento apropriado às suas jornadas pessoais ou de uma trama própria. Ham (Logan Lerman) e Ila (Emma Watson), por exemplo, não fazem sentido em suas ações finais com relação à família e seu patriarca, enquanto Shem (Douglas Booth) é quase que irrelevante ao roteiro ao ser atribuído de uma função paternalista que em nenhum momento se faz presente. Naameh (Jennifer Connelly) e Methuselah (Anthony Hopkins), por outro lado, desempenham bem suas funções, mesmo sendo menores em relação ao quadro geral.

Apesar de problemas sérios na concepção de seus personagens, Aronofsky é inteligente na construção do épico que procura fazer de Noé. Mesmo com efeitos visuais notavelmente datados, o longa tem bons momentos de ação e mostra-se claro em estabelecer-se como fantasioso através de pequenas inserções, representados na figura dos Vigilantes e dos milagres. Dessa forma, o filme retira de si mesmo qualquer atribuição realística - fator perigoso para uma produção que se dispôs a construir a arca para as filmagens - e torna-se, na eventual falta de entendimento de sua mensagem principal pelo público, um bom entretenimento.

Como reinterpretação (de uma história que originalmente tinha três páginas, lembrando), Noé possui defeitos ao caracterizar seus heróis e vilões como reles representantes de opiniões coletivas, prejudicando um pouco a condução da mensagem que o diretor procura passar. Ainda sim, os vieses ambientalistas e questionadores de fé da produção são bem estabelecidos e interessantes o suficiente para tornar o longa um bom épico. O maior acerto de Aronofsky, porém, é o de mostrar que nem toda produção baseada na Bíblia precise necessariamente criticar ou fundamentar seus preceitos - algo que pode vir a ser necessário para futuras produções do "gênero".

Nota: 7/10

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