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sábado, 13 de abril de 2019

Crítica: Em Trânsito

A Europa enquanto terra dos amaldiçoados.

Por Pedro Strazza.

Embora seja em teoria passado nos anos da Segunda Guerra (e, de forma mais específica, os meses seguintes à ocupação alemã na França), a Marselha de Em Trânsito não poderia ser mais contraditória em termos de contextualização histórica. Se o interior dos prédios é "vestido" de acordo com a época, as ruas da cidade denotam o mundo contemporâneo que cerca os personagens, das fachadas dos edifícios a - principalmente - os carros que habitam os fundos de cena, passando pelas forças policiais que se vestem como verdadeiras tropas de choque.

A sensação de estranhamento é imediata, mas não despida de propósito. Em um mundo onde movimentos de extrema-direita ensaiam (e realizam) um retorno às instituições de poder, interessa ao diretor alemão Christian Petzold deslocar o espectador dos confortos do passado oferecido pelo cinema de época, ainda mais quando este novo projeto trata de uma situação de oprimidos em fuga. Adaptação do livro de mesmo nome da escritora Anna Seghers, o longa acompanha um jovem (Franz Rogowski) que busca sair do país antes que as tropas nazistas fechem as fronteiras, o que o força a assumir a identidade de um escritor morto com o qual dividiu um trem e cujas chances de migração parecem maiores. Preso no porto de Marselha devido a questões burocráticas governamentais, o protagonista começa a entrar em contato com a vida do morto e de outras pessoas em igual situação, incluindo de uma mulher que ele descobre ser a ex-esposa (Paula Beer) do autor.

Se a premissa alinhada com as disrupções visuais sugere em teoria um drama pautado nas justaposições históricas das duas épocas e que chamem a atenção para os problemas do mundo atual, o filme aos poucos se revela direcionado à via contrária, mas não pelas vias do isolamento do cenário. Como em seu trabalho anterior, Phoenix, Petzold invoca o passado aqui para promover uma espécie de erupção de traumas enterrados fundo na identidade nacional alemã - ou, talvez agora, da própria Europa como um todo - sem exatamente buscar soluções para tal. A diferença é o timing das duas situações: o que em Phoenix se mostrava um amargor consumado e a ser carregado, em Em Trânsito o processo ainda está em movimento, dado que a meta de todos em Marselha é mesmo de escapar da morte.

É neste ponto que os anacronismos da produção se manifestam como sua narrativa central, reconfigurando todos os arcos do livro de Seghers a uma questão de maldição. Assim, o que nas vias tradicionais se adequaria às estruturas de um épico histórico localizado se torna no filme de Petzold uma coalizão de histórias condenadas a se repetir ad eternum, incapazes de serem resolvidas por conta da própria natureza do sistema - este por sua vez tragicamente confundido com a História do continente europeu. Que a jornada dos protagonistas e dos coadjuvantes more nos meandros da burocracia da imigração só torna esta proposição mais evidente em sua crueldade, além de aos poucos desesperadora dado as consequências mortais do jogo.

Mas se o labirinto percorrido é insolúvel, o que resta aos corredores? Deste questionamento nasce o objetivo maior de Petzold com a trama, o qual além de reforçar o caráter de espírito de seus personagens presos neste Casablanca dos infernos ainda se encarrega de potencializar a força dos diversos "encontros desencontrados" como única escapatória emocional a um mundo tão perdido. O que para o protagonista é um música da infância cantarolada à partir de um rádio de pilha, por exemplo se torna para uma mãe despida de fala o alento necessário para continuar tentando; o que para um casal nunca mostrado são cães a serem transportados para fora do país e dentro de seus lares é a única razão de sobrevivência de uma mulher sem qualquer chance de escapatória; e enfim aos dois amantes, o que é uma ilusão alimentada por um é a busca de uma vida do outro.

Neste sentido - um que alimenta acima de tudo o poder do encontro e da identificação entre dilemas - a resposta do protagonista ao questionamento do autor a quem assume a identidade (o tal do "Quem esquece primeiro: quem abandona ou quem é abandonado?") ilustra o que é a grande potência de Em Trânsito e, talvez, do cinema de Petzold: o de dar corpo e alma àqueles que deixaram a vida para trás, condenados para sempre à fuga sem propósito.

Nota: 8/10

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Crítica: Suspíria - A Dança do Medo

Aproximação sensorial de Luca Guadagnino sobre filme de Dario Argento se perde no próprio jogo simbólico.

Por Pedro Strazza.


Desde seu anúncio o remake de Suspiria tem gerado todo tipo de debate sobre o porquê de Luca Guadagnino querer refazer o tão cultuado terror de Dario Argento, mas talvez a melhor forma de entender o filme e (principalmente) suas intenções comece em outro questionamento: o que leva Luca Guadagnino a Suspiria?

Tal qual a resposta, esta pergunta não é exatamente simples de se fazer, ainda mais se considerar a obra que o cineasta italiano concebe à partir desta premissa. De semelhanças, afinal, Suspíria - A Dança do Medo não pode sequer afirmar que mantém a premissa do original, expandindo e alterando o filme compacto de 1977 a toda uma epopeia sinfônica de seis atos e um epílogo passados na Alemanha dos tempos da Guerra Fria - uma expansão, aliás, cuja própria existência já contradiz por completo os mecanismos do cinema de Argento, um diretor que apesar do caráter operístico ainda não deixa de ser uma cria do giallo e de todas as suas limitações orçamentárias. Preserva-se o básico: uma garota chamada Susie (Dakota Johnson) chega a uma prestigiada escola de dança alemã pouco depois do desaparecimento de outra bailarina, passando a experimentar todo tipo de fenômeno inexplicável enquanto outros ao seu redor são submetidos a mortes escabrosas.

Posto desta maneira, é inegável que apesar dos rumos estéticos e narrativos distintos as duas obras dividem um mesmo propósito de existência, e é a partir deste ponto que os motivos da atração de Guadagnino pela história começam a ficar um pouco mais claros. Isso porque tanto o Suspiria de 77 quanto o Suspíria de 2018 carregam em seu âmago uma intenção de sobrecarregar os sentidos, um exercício de transbordamento o qual aos olhos de um diretor que em tempos recentes dirigiu filmes tão centrados em narrativas sensoriais como Me Chame Pelo Seu Nome e Um Mergulho no Passado (este também um remake, do thriller francês A Piscina) se mostra dos mais intrigantes de ser feito.

Assim, o cineasta refaz os caminhos do original a seu próprio jeito, "atualizando" o frenesi de cores de Argento com as ferramentas à mão. Ao invés do excesso sonoro e visual, Guadagnino se aventura pelo campo do simbólico, multiplicando frentes pelas vias da arte (a dança, que toma de forma evidente o campo central da narrativa de horror) e do contexto histórico, da Berlim ocupada, dividida e destroçada pelo caos político de grupos radicais e o mundo pós-Segunda Guerra à representação do feminino enclausurado e oprimido dentro de relações maternas. O diretor não parece querer se restringir em nenhum ponto desta trajetória, o que se por um lado liberta o longa para abraçar o horror à potência que julgar necessário - seja no som dos objetos aterrissando subitamente em outras superfícies, seja no bem vindo clímax explosivo - também contribui para encorpar a narrativa, pesando-a até o limite do possível.

Esta metodologia sem dúvida é uma das grandes responsáveis por trás do caráter divisivo do remake - até porque há quem queira e há quem não queira se perder em mares simbólicos cada vez mais complexos, e por este ângulo específico o filme é muito bem sucedido em seus propósitos - mas é também a partir dela que o novo Suspíria começa a se perder no próprio jogo. Se o transbordamento de significações sugere que o remake mira algo mais profundo na essência, seu desenrolar não hesita muito de encarregar o espectador de preencher as lacunas de seu mistério, dotando do público a tarefa um tanto ingrata de buscar justificativas e ligações às suas várias vertentes. É uma medida feita para estimular o destrinchamento da obra, é claro, mas na prática só contribui para alimentar um paradoxo, o do filme de múltiplos sentidos que se esvazia de significado.

Não que esta vontade de traduzir dores da Alemanha da época do muro e da ocupação renda algo tão valioso, porém. No curso de suas longas duas horas e meia, o Suspíria de Guadagnino se prova muito mais sólido quando se aventura pelo horror, o qual se equilibra entre a brutalidade e a leveza para promover todo tipo de estranhamento, mas se nem esta proposta se revela estável o suficiente para conduzir o todo - o que num sacrifício por traição sai bizarro e propositalmente desconfortável soa redundante e, por que não, bobo numa configuração complexa, a exemplo da grande dança preparada pela academia - é sinal de que esta nova versão se mostra muito mais aprisionada nos próprios propósitos do que aparenta ou mesmo gostaria.

Nota: 4/10

domingo, 24 de fevereiro de 2019

Oscar 2019, em um mundo ideal

Os indicados e vencedores pessoais da edição deste ano.

Por Pedro Strazza.

Todo ano criticamos o Oscar e a Academia pela lista de filmes indicados ao grande prêmio do cinema estadunidense, mas poucas vezes temos a chance de vocalizar nossas preferências caso fôssemos votantes da entidade. Seguindo uma ideia proposta pelo Filmes do Chico do querido colega Chico Fireman, este ano decidi me submeter ao experimento de fazer uma lista de indicados de acordo com minhas preferências, escolhendo os longas, cineastas, atores, atrizes e tantos outros membros da indústria que gostaria de honrar. Adotando uma postura egocêntrica, seria um "Oscar do mundo ideal", longe de politicagens e focado em contemplar os melhores do último ano.

O critério é simples e segue o longo recordatório postado pela Academia em seu site com as produções elegíveis à edição deste ano, um recorte que embora exclua alguns ótimos trabalhos é ideal para ninguém pirar no processo. Além disso, em categorias técnicas como Documentário e Filme Estrangeiro eu procurei a lista completa de obras submetidas à avaliação dos "branches" da entidade, tentando pular na medida do possível quaisquer fases de seleção para assumir (pelo menos até onde for possível) o controle total do processo de escolha. Os únicos filmes considerados por minha pessoa, aliás, são aqueles que eu tive a oportunidade de assistir ao longo do último ano.

Como era de se esperar de ser, a lista final está longe da verdadeira e criada pelo corpo de votantes do Oscar, ainda que muitas coincidências aconteçam. Entre as semelhanças, a mais interessante é a permanência ou crescimento de Nasce Uma Estrela e Pantera Negra no número de indicações, que junto de Fé Corrompida lideram a "classe" com meras sete nomeações cada um. Embora quase todos os indicados a Melhor Filme este ano permaneçam na lista de um jeito ou de outro (Green Book e A Favorita são os dois únicos que saem fora de todos os páreos), a maioria perde espaço na minha versão pessoal do prêmio, especialmente nas categorias principais.

Só para registro, segue abaixo a lista com todos os filmes com mais de duas indicações neste "Oscar ideal":

7 indicações: Fé Corrompida, Nasce Uma Estrela, Pantera Negra
5 indicações: Sem Rastros
4 indicações: A Mula, Infiltrado na Klan, Minding the Gap, O Passageiro, Roma, Se a Rua Beale Falasse, Support the Girls
3 indicações: Em Chamas, Homem-Aranha no Aranhaverso, Zama

Enfim, segue a lista na íntegra abaixo, com os vencedores de cada categoria colados. Bom Oscar a todos.

Melhor Filme

Fé Corrompida
Infiltrado na Klan
Minding the Gap
A Mula
Nasce Uma Estrela
O Outro Lado do Vento
O Passageiro
Roma
Sem Rastros
Support the Girls

Levaria: Fé Corrompida

Melhor Diretor

Paul Schrader (Fé Corrompida)
Spike Lee (Infiltrado na Klan)
Clint Eastwood (A Mula)
Jaume Collet-Serra (O Passageiro)
Debra Granik (Sem Rastros)

Levaria: Spike Lee

Melhor Ator

John Cho (Buscando...)
Ethan Hawke (Fé Corrompida)
Clint Eastwood (A Mula)
Bradley Cooper (Nasce Uma Estrela)
Ben Foster (Sem Rastros)

Levaria: Clint Eastwood

Melhor Atriz

Rachel McAdams (A Noite do Jogo)
Elsie Fisher (Oitava Série)
Kathryn Hahn (Mais Uma Chance)
Thomasin McKenzie (Sem Rastros)
Regina Hall (Support the Girls)

Levaria: Regina Hall

Melhor Atriz Coadjuvante

Amanda Seyfried (Fé Corrompida)
Dianne Wiest (A Mula)
Sally Hawkins (Paddington 2)
Regina King (Se a Rua Beale Falasse)
Haley Lu Richardson (Support the Girls)

Levaria: Amanda Seyfried

Melhor Ator Coadjuvante

Mark Rylance (Jogador N° 1)
Sam Elliott (Nasce Uma Estrela)
Michael B. Jordan (Pantera Negra)
Rafael Casal (Ponto Cego)
Brian Tyree Henry (Se a Rua Beale Falasse)

Levaria: Michael B. Jordan

Melhor Roteiro Original

Fé Corrompida
Mais Uma Chance
Minding the Gap
Ponto Cego
Support the Girls

Levaria: Fé Corrompida

Melhor Roteiro Adaptado

Em Chamas
Homem-Aranha no Aranhaverso
Infiltrado na Klan
Nasce Uma Estrela
Sem Rastros

Levaria: Sem Rastros

Melhor Filme Estrangeiro

Assunto de Família (Japão)
Eu Não Me Importo Se Entrarmos Para a História Como Bárbaros (Romênia)
Em Chamas (Coréia do Sul)
Roma (México)
A Valsa de Waldheim (Áustria)

Levaria: Eu Não Me Importo Se Entrarmos Para a História Como Bárbaros

Melhor Documentário

A Valsa de Waldheim
Hale County This Morning, This Evening
John McEnroe: No Império da Perfeição
Minding the Gap
Serei Amado Quando Morrer

Levaria: A Valsa de Waldheim

Melhor Animação

Homem-Aranha no Aranhaverso
Incríveis 2
Mirai

Levaria: Homem-Aranha no Aranhaverso

Melhor Fotografia

Em Chamas
Fé Corrompida
Guerra Fria
Mid90s
O Passageiro

Levaria: Em Chamas

Melhor Montagem

Fé Corrompida
John McEnroe: No Império da Perfeição
Minding the Gap
O Outro Lado do Vento
O Passageiro

Levaria: O Outro Lado do Vento

Melhor Trilha Sonora

Aniquilação
Pantera Negra
Infiltrado Na Klan
Mid90s
Se a Rua Beale Falasse

Levaria: Se a Rua Beale Falasse

Melhor Canção Original

"All the Stars" (Pantera Negra)
"When a Cowboy Trades His Spurs For Wings" (A Balada de Buster Scruggs)
"Trip a Little Fantastic" (O Retorno de Mary Poppins)
"Maybe It's Time" (Nasce Uma Estrela)
"Shallow" (Nasce Uma Estrela)

Levaria: Shallow

Melhor Design de Produção

Maus Momentos no Hotel Royale
Pantera Negra
Roma
Se a Rua Beale Falasse
Zama

Levaria: Pantera Negra

Melhor Figurino

A Balada de Buster Scruggs
Pantera Negra
O Retorno de Mary Poppins
Um Pequeno Favor
Zama

Levaria: Zama

Melhor Maquiagem e Penteados

Bohemian Rhapsody
Pantera Negra
Vice

Levaria: Vice

Melhor Edição de Som

Hereditário
Homem-Aranha no Aranhaverso
Pantera Negra
Roma
Zama

Levaria: Roma

Melhor Mixagem de Som

Legítimo Rei
Missão: Impossível - Efeito Fallout
Nasce Uma Estrela
O Primeiro Homem
Você Nunca Esteve Realmente Aqui

Levaria: Missão: Impossível - Efeito Fallout

Melhores Efeitos Visuais

Aniquilação
Homem-Formiga e a Vespa
Jogador N° 1
O Primeiro Homem
Vingadores: Guerra Infinita

Levaria: Jogador N° 1

sábado, 23 de fevereiro de 2019

Crítica: A Mula

Despido de pose, Clint Eastwood revisita o arquétipo que definiu sua carreira em filme regado a frontalidades.

Por Pedro Strazza.

Em determinada altura de A Mula, pouco depois do primeiro encontro do protagonista Earl Stone (Clint Eastwood) com o agente do DEA Colin Bates (Bradley Cooper) em um restaurante de beira de estrada, o próprio Bates sai do estabelecimento buscando o senhor de idade para lhe devolver uma garrafa térmica que havia esquecido no local. Após o que é uma segunda breve conversa sobre amenidades, a câmera no minuto seguinte ao fim do encontro registra o alívio de Earl de saber que não foi pego pelo policial, mas menos por uma questão de relaxo e mais de temor; o longa enquadra pela primeira vez o nonagenário de maneira encolhida perante a picape gigantesca - agora quase uma criatura, com vida própria e ameaçadora - que se encontra no primeiro plano.

Por mais trivial que pareça e tardio que esteja dentro da narrativa, este momento é um ponto de virada importante aos rumos do filme por sacramentar uma mudança de perspectiva brutal na visão de seu protagonista, que começa a história fazendo uma opção sem volta pelo trabalho em detrimento da família. Item fundamental na realização do tal do sonho americano, o carro também é naturalmente um elemento dramático central nos caminhos do road movie no qual A Mula se estrutura: os veículos dirigidos por Earl ocupam espaço considerável em seu arco dramático, refletindo parte de suas transformações tanto no campo financeiro quanto no espiritual, o qual desemboca neste cenário onde a picape deixa de ser um membro do personagem para de algum jeito confrontá-lo e assustá-lo.

A grande questão é: por que um carro intimidaria tanto o protagonista?

A resposta é tola mas ao mesmo tempo exige uma certa complexidade contextual, uma que ilustra em parte o jogo narrativo curioso que nutre as ambições e frutos do longa que marca um novo retorno de Eastwood da aposentadoria como ator e mais uma vez o submete ao exercício da própria direção. A volta é curiosa dado o cenário da coisa: oficialmente longe da frente das câmeras desde Gran Torino, o filme não só é a primeira ocasião no qual o artista contorna a própria declaração para trabalhar de novo consigo mesmo (o ator já havia voltado atrás antes com o drama esportivo Curvas da Vida) mas também é o seu segundo projeto com o roteirista Nick Schenk, com o qual havia trabalhado justo na produção de 2008 sobre um idoso sendo forçado a reconhecer que seu tempo havia passado. E embora o Gran Torino do título não esteja presente, a premissa da última colaboração de Schenk com o cineasta aparece aqui novamente, agora baseada na história real de um senhor de oitenta anos pego traficando noventa quilos de cocaína.

O mais curioso de se observar em termos de contexto, porém, é como este novo trabalho de Eastwood se relaciona com seus antecessores no campo temático, mesmo mostrando distância clara em vários aspectos cruciais. Isso porque A Mula no fundo não deixa de servir de continuidade ao processo de desconstrução que o diretor vem exercendo aos próprios valores desde Sniper Americano, levantando contradições cada vez maiores - e desestabilizadoras - dentro do mito de formação dos supostos "heróis americanos" através de histórias reais e ocorridas no século XXI. Se Sniper, Sully e o recente 15h17: Trem Para Paris vieram para formar uma espécie de grande trilogia sobre a fragilidade e a maldição de tal arquétipo dentro deste novo século, faz sentido que agora Eastwood decida redirecionar este processo à própria imagem, ainda mais porque ele já abraça há tempos esta figura do "homem sem nome" que é síntese dos valores de um Estados Unidos passado.

Se esta ideia sugere de início uma auto-homenagem explícita e enaltecedora, o procedimento que guia as quase duas horas da produção revela o contrário. Do alto de seus quase 89 anos, o diretor-ator encarna um personagem claramente frágil, desde o físico "caído" e longe do auge da musculatura até a composição do papel, que denota a mente mais fraca e fadada à falha a qualquer instante, para dar voz a uma atuação que já nos minutos iniciais traça conexões íntimas com a figura de Eastwood; se o flashback para meados dos anos 2000 do prólogo serve para estabelecer a raiz de todos os conflitos morais de Earl no retrato simbólico do abandono de sua família em prol da carreira, ela também resgata uma imagem do passado do diretor, a de cineasta reconhecido e popularizado pela indústria.

O tempo sem dúvida passou para Earl e Eastwood, porém, e esta constatação circunda todos os movimentos da narrativa como uma maldição nunca verbalizada mas bastante presente na residência prestes a ser retomada pelo governo ou o conflito escancarado com a família - somente a neta (Taissa Farmiga), coitada, ainda nutre algum carinho pelo protagonista, talvez apenas pela imagem de avô que ele carregue de maneira inerente. O diretor, enquanto isso, nunca deixa de manter alimentado esta chama que alimenta o espelho para com seu papel, em movimentos que incluem atos drásticos como os de escalar a filha Alison Eastwood para o papel da filha do floricultor e Cooper (com o qual trabalhou em Sniper Americano e depois passou o comando do remake de Nasce Uma Estrela) na função de seu captor, o agente do DEA que depois nutre uma relação quase parental de aconselhamento.

Nestes momentos, o que impera na narrativa é acima de tudo o desmonte, em especial da relação que o protagonista nutre com o trabalho a ponto de levá-lo a traficar para a máfia, e é aí que o filme deslancha pra valer em seus propósitos. Todos os meandros da história se revelam aos poucos convertidos para uma questão de status; ela começa no desejo semi-automático de Earl por "mais" (mesmo quando em certo ponto ele já acumulou o suficiente para viver uma boa vida), mas também passa por outros como o chefe da operação (Andy Garcia), o Julio (Ignacio Serricchio) que acompanha o senhor de idade depois dele se tornar uma das principais "mulas" (e é o "segundo em comando" quem melhor representa os perigos desta ambição pela reputação tratadas pela produção, depois de Earl) ou mesmo os agentes federais cuja sede maior na trama é o "valor midiático" de uma grande apreensão. A Mula, enquanto isso, filma todos estes arcos como um grande ciclo fadado à destruição - o momento da morte do mafioso vivido por Garcia, por exemplo, não esconde a intenção na confusão visual dos tiros disparados "simultaneamente", ainda mais quando eles sucedem uma salva de palmas artificial.

É também esta sensação de frontalidade na representação, aliás, que comanda o longa de forma tão clara quanto seus movimentos. É uma artificialidade aparente que Eastwood carrega de seu Trem Para Paris e que aqui não só reforça a estruturação do projeto mas lhe amplifica sua potência pela banalidade, pois é ela quem despe o cineasta de qualquer postura maior e o mergulha sem hesitação na posição de "alvo". Isto fica claro nas interações com seus membros familiares mais próximos - em especial nos diálogos com a ex-esposa, vivida com muito cuidado por Dianne Wiest no equilíbrio dramático e cômico - mas ganha virulência quando Earl se encontra na estrada e, portanto, em contato com o mundo: suas interações com pessoas como a gangue de motoqueiras lésbicas, o casal negro e o policial de beira de estrada ajudam a acentuar o deslocamento antes não percebido pelo personagem da realidade à sua volta, além de ressaltar os limites e os absurdos de sua própria posição em relação a outros - algo evidente na cena no qual os acompanhantes da "mula" são parados com suspeita pelo oficial, que não repete o mesmo tratamento para o idoso.

O mais curioso deste processo narrativo, porém, é como A Mula admite o tom cômico em meio a tudo isso. Por mais trágicas e dolorosas que suas resoluções sejam (e o último plano não mente nesta condenação literal), a performance e a direção de Eastwood saem leves até onde é possível, num bom humor que talvez reflita a real aceitação de quem produza uma obra destas em um estágio de vida tão avançado. Se Clint entende que sua imagem já se encontra cristalizada na História a ponto de servir de tema de debate, ele aproveita sua "queda" não apenas para (de algum jeito) acertar as contas deixadas em sua trajetória como refletir se sua jornada no fim valeu a pena - uma noção que só poderia estar presente em sua última conversa com o personagem de Cooper, óbvio.

Nota: 9/10

domingo, 17 de fevereiro de 2019

Crítica: Alita - Anjo de Combate

Adaptação é apenas Robert Rodriguez com orçamento e um grande estúdio por trás.

Por Alexandre Dias.

O cenário pós-apocalíptico devastado pela guerra e a sociedade disforme. Sejam quais forem as pequenas diferenças dos filmes que possuem esse pano de fundo, dos ciborgues aos desertos, é difícil não ter um pouco de preguiça do tema. O desgaste é claro, tanto pela imensa quantidade de projetos assim nos últimos anos – muito disso se deve à invasão juvenil de adaptações literárias -, como pela falta de criatividade nas histórias; os roteiros parecem reciclados de tão similares, recorrendo a pequenas reviravoltas “diferentes” para mudar.

Não que o assunto em pauta não seja legal, basta ver quantos clássicos e sub-clássicos advindos dessa linha fílmica já foram lançados. É redundante comentar sobre Mad Max, porém O Livro de Eli é uma ótima prova de produção totalmente derivada do gênero e que sabe ser inventiva dentro dele, ainda que com os seus escorregões. Se não um novo expoente que siga esse caminho, talvez uma das únicas opções para uma reinvenção seria a desconstrução, a exemplo de Os Imperdoáveis e Logan, no faroeste e com os super-heróis, respectivamente. Alita: Anjo de Combate não flerta com nenhum desses rumos.

Depois de ser adiado algumas vezes, o longa dirigido pelo veterano Robert Rodriguez e que tem a mão de James Cameron na produção e no roteiro, traz o contexto mais clichê possível do pós-apocalipse. Humanos cada vez mais com partes mecânicas, uma terra dividida entre ricos no céu e pobres no solo e um passado de guerras. Elysium, Blade Runner e Ghost in the Shell são apenas algumas das reproduções temáticas que podem ser identificadas na obra. E não há problema nisso, sendo o verdadeiro demérito a maneira como esse mundo e os seus integrantes são desenvolvidos.

Comecemos pelos personagens. O único deles que é realmente digno de nota é a protagonista, encarnada por Rosa Salazar. Na verdade, o papel em si é muito fraco e todos os mistérios que cercam a jovem guerreira são óbvios, contudo a inocência de Alita mesclada a sua perseverança geram um carisma que a atriz segura bem ao longo da produção. Os outros ao seu redor são absolutamente mal construídos. Hugo (Keean Johnson), por exemplo, começa como o clássico interesse amoroso juvenil, mas a importância desenfreada que ele ganha na trama torna-se bizarra, a ponto do espectador se perguntar se aquilo é burrice ou só piegas mesmo.

A impressão destas consequências é de que o roteiro foi remendado devido à produção atribulada, especialmente na virada do segundo para o terceiro ato. A trama começa a perder sentido, como no momento em que do absoluto nada Alita participa de uma competição logo após uma série de acontecimentos estranhos. Isso sem falar nas atitudes de personagens similares a de Hugo; Chiren (Jennifer Connely) e Zapan (Ed Skrein) são os que mais sofrem com ações esquisitas ou incoerentes nos seus pontos decisivos.

Entretanto, é engraçado como essa confusão narrativa acaba beneficiando os clichês da história por um lado, mesmo que não chegue nem perto de salvá-la. Com certeza o responsável é Robert Rodriguez, que faz o seu Pequenos Espiões com orçamento. O jogo citado acima é divertido, ainda que surja abruptamente e é algo que pode ser esperado do cineasta. Inclusive, o visual como um todo transmite essa sensação, pois é extremamente digitalizado e difícil de engolir em determinadas horas – leva tempo para se acostumar com o rosto de Alita -, porém o excesso do caricato em cima disso promove uma imersão curiosa no universo, que entre uma cena e outra é bonito de se ver.

A maioria delas acontece na ação. Rodriguez ativa totalmente a sua caracterização de videogame, o que deixa a habilidade de Alita, por exemplo, um tanto inverossímil, mas agradável. O confronto dela com Grewishka (Jackie Earle Haley) é literalmente a incorporação desse exagero benéfico. Não se pode dizer que estamos diante de um filme empolgante e que a pancadaria enche os olhos, mas há uma escolha oferecida ao público de ter um pequeno deleite naquele estilo.

Para um projeto clichê e destrambelhado é uma vitória ter esses momentos. É o melhor que Alita tem a disponibilizar, mais nada. Muito menos uma franquia, a qual foi pensada antes mesmo do nascimento deste longa por si só. Há um gancho enorme no final, que só realça a falta de potencial para uma nova marca hollywoodiana. Pelo menos a figura que dá as caras nos últimos minutos é interessante. Um pouco...

Nota: 3/10

domingo, 10 de fevereiro de 2019

Crítica: Vice

Adam McKay confunde sátira com escárnio em cinebiografia tomada pela ira.

Por Pedro Strazza.


A política dos Estados Unidos nunca deixou de pautar as comédias de Adam McKay, mesmo quando seus projetos descambavam para o completo besteirol. Por mais "inocentes" que fossem na superfície de sua escatologia e ridículo, longas como Quase Irmãos, Ricky Bobby e os dois O Âncora carregavam nas entrelinhas críticas ácidas a modelos de conduta dos norte-americanos, num jogo que servia ao diretor para ressaltar a hipocrisia por trás do conservadorismo de uma sociedade disposta a colocar no poder pessoas que pregavam a família e o divino acima de tudo. É um procedimento, vale acrescentar, que o cineasta nunca executou com sutileza, a exemplo de Quase Irmãos cuja abertura é literalmente uma fala do então presidente George W. Bush sobre núcleos familiares.

Mas depois de passar quase duas décadas dedicando este esforço de sátira por segundas vias, McKay enfim tem em Vice a chance de direcionar seu cinema aos republicanos do governo Bush e, claro, o vice-presidente Dick Cheney, em sua visão responsáveis pela preservação de tal lógica no início do século XXI e por isso mesmo (e pelo menos até a administração Trump) seus maiores vilões. E é uma frontalidade que o diretor abraça sem o maior medo, graças a toda uma "reputação" de autor que conquistou com o sucesso de A Grande Aposta: o filme logo nos primeiros momentos faz questão de retratar Cheney (Christian Bale) em uma posição humilhante, sendo parado pela polícia por dirigir tão bêbado a ponto de ser incapaz de se levantar da cadeira de motorista.

É exatamente este viés de humilhação, de oferecer poucos espaços para qualquer tipo de humanização que toca a narrativa do longa. Enquanto o roteiro de McKay busca organizar a história de vida de Cheney intercalando o processo político que o levou ao poder com relances do monstro que ele se tornaria enquanto vice-presidente do país, sua direção não hesita em ressaltar o quão patético era a pessoa por trás da figura do monstro. É uma condição a se tornar mais clara nos golpes fáceis a exemplo de todo o retrato da juventude delinquente do político - e cujo clímax óbvio é a cena da bronca da esposa Lynne (Amy Adams) -, mas até em cenários onde Cheney poderia ganhar pontos com o público o filme parece se divertir em ressaltar as hipocrisias do personagem pelo humor: no momento em que a filha Mary (Alison Pill) revela aos pais ser lésbica, por exemplo, a câmera de McKay parece se concentrar na dinâmica entre Dick e a esposa, enfocando a maneira como a última julga o marido por trair ideais ao aceitar a sexualidade da cria.

O principal objetivo de Vice, porém, é o ato de jogar os holofotes sobre o político e os republicanos que comandou para expor na telona todos os seus atos vis enquanto vice-presidente, especialmente seu assalto ao poder em meio ao caos do 11 de setembro e tendo em vista a posição de banana do então presidente Bush (retratado como verdadeira caricatura nas mãos de Sam Rockwell). Para tanto, McKay não economiza na metáfora e exposição para dispor ao espectador todos os motivos e elementos que levam Cheney a conseguir colocar em prática na política americana a tal da teoria do poder executivo unitário, que o permitiria ter controle total sobre o sistema do país e executar a máquina direcionada a seus interesses - e é esta ira do diretor perante o mal uso das instituições pelo oficial quem no fundo move a produção a todo instante, até porque são estes atos vis retratados que viriam a pautar todos os rumos da próxima década de uma sociedade da qual ele e o público se inserem.

Esta postura raivosa do filme sobre os fatos relatados em teoria seria suficiente dado o nível das consequências dos atos de Cheney em sua manipulação dos mecanismos políticos do país, mas no fim é também ela quem leva o longa à lona mesmo antes da luta começar. Se McKay tem toda uma irritação para converter na produção, esta por sua vez parece ser acometida por uma condição de momento no qual a cada passo dado se faz necessário criar um tom jocoso próprio para expor a farsa em andamento, uma metodologia que na montagem estilizada de Hank Corwin só contribui para tornar o projeto desencontrado. Não ajuda também, claro, o fato de que ao contrário de A Grande Aposta o diretor aqui assina o roteiro sem tomar qualquer material (um livro, uma pesquisa) como base, um fator que talvez explique o porquê de Vice soar tanto como um exercício reacionário - algo em si contraditório, dado a clara postura liberal de McKay - quanto cafona e bobo nas metáforas e alegorias propostas.

Assim, o que começa como vingança aos poucos descamba para uma explosão emocional sem direcionamento, um stand-up de ira que não sabe diferir a sátira do escárnio. Vestidos de versões mais fidedignas de celebridades parodiadas pelo SNL, Bale e Adams só tem como dar voz a este jogo perverso  pela consciente aceitação do desastre em andamento, equilibrando-se a passos trôpegos entre o humor sádico e o que quer que reste de sobriedade ao projeto para viver cenas patéticas como o solilóquio shakespeareano (é difícil não revirar os olhos ao paralelo com Macbeth) e manter a produção longe da ofensa pura e simples. Não há espaço para personagens ou uma trama no filme, mas sim uma sequência de comentários irônicos mal costurados.

O que mais entristece em meio a tudo isso, porém, não é apenas a oportunidade perdida de se fazer uma investigação a uma das figuras políticas mais nefastas e importantes do cenário político estadunidense moderno, mas também a aparente ingratidão de McKay com as origens de seu próprio cinema e mesmo seu público. Além do aceno à desatenção do público com a realidade à sua volta feito por A Grande Aposta se converter aqui em moral condenatória - o discurso de Cheney ao espectador, com seu "Eu apenas os servi", é o momento em que Vice efetivamente assume e escancara a chacota para o próprio público -, a cena pós-créditos ainda vem para confirmar esta tendência e ampliá-la ao escopo do "sistema", apontando o dedo a tudo e todos como um velho louco e paranoico que só brada aos quatro ventos que é tudo uma grande piada de mal gosto - algo que não deixa de ser uma grande ironia se considerar o locutor da vez, veja bem.

Nota: 3/10

sábado, 26 de janeiro de 2019

Crítica: Creed II

Adonis mais uma vez relembra o legado de Rocky e constrói o seu próprio.

Por Alexandre Dias.

Da leva de franquias gigantes restauradas nos últimos anos, Creed é a que mais sabe se aproveitar dos elementos clássicos dos seus antecedentes. A nostalgia, os personagens originais e novos e a modernização dos pontos técnicos são fatores que, apesar de bem sucedidos no geral em marcas como Star Wars e Jurassic Park, não foram tão bem esquematizados como nos derivados de Rocky Balboa.

Em 2015, Ryan Coogler conseguiu imprimir uma identidade urbana e visual muito contundente na primeira jornada do filho de Apollo Creed. A junção com o carisma habitual de Sylvester Stallone na pele do Garanhão Italiano terminou por garantir o retorno desse universo cinematográfico ao mercado, com uma sequência já esperada sendo confirmada pouco tempo depois.

Não era muito difícil de imaginar a volta de Dolph Lundgreen como Ivan Drago. A questão era fazer um confronto plausível entre o seu pupilo, o próprio filho, contra Adonis (Michael B. Jordan) sem parecer piegas. De fato, é isso que Creed II faz. Uma grande costura. Porém, a ligação entre os eventos premeditados não é fútil e o diretor Steven Caple Jr. promove, por meio do roteiro de Stallone e Juel Taylor, um filme saudosista e que olha para frente.

O longa é previsível, mas tira proveito disso. Há situações que replicam sem rodeios os acontecimentos passados, principalmente de Rocky 3 e Rocky 4. E o mais impressionante é que o efeito impactante delas ainda está lá, justamente pelo timing preciso de Caple. Ele sabe, por exemplo, em que momento utilizar o tema clássico e um rap motivacional. São pequenos ajustes de tom como esse que “modernizaram” a breguice da franquia, aceitável para a época, ao mesmo tempo em que há a manutenção de sua essência.

A trajetória de Balboa tornou-se cada vez mais pipoca ao longo de sua vida. Desafios maiores e até habilidades quase que especiais – o treinamento dele na Rússia e o resultado físico em comparação ao primeiro filme já falam por si só – atribuíram uma faceta divertida ao lutador e não eliminaram o grande trunfo dele, que é a superação e força de vontade. Na jornada de Adonis isso permanece. Ele está mais musculoso nesta sequência e enfrenta um adversário mais poderoso, que, inclusive, tem um treinamento cômico e empolgante simultaneamente. 

As próprias lutas merecem ser evidenciadas. Coogler já havia caracterizado as batalhas com maestria, por meio da movimentação de câmera ímpar. Caple consegue replicar a atualização que o diretor de Pantera Negra fez nos combates, contudo dá a sua cara, deixando-as mais cruas. A pancadaria é surreal de certa forma, porque todos apanham muito mais do que poderiam, mas não há a impressão que estamos vendo algo programado e distante. Todas as vezes que os oponentes sobem no ringue há tensão e euforia.

Os personagens também são muito bem trabalhados e se desenvolvem na medida certa. Michael B. Jordan firma o seu guerreiro impulsivo e em constante amadurecimento, muito por causa de Bianca. O roteiro é sagaz em colocar o alter ego de Tessa Thompson (ótima, por sinal) como parte essencial do crescimento de Adonis, porém com pontos pessoais igualmente importantes e que sustentam o papel – um dos números musicais da atriz é simplesmente espetacular. 

O maior ídolo da Filadélfia é outro que é bem utilizado. Seu desafio principal nesse longa é a relação com o filho, algo bem puxado dos anos 80. O que realmente o coloca em uma posição confortável é a interação com o filho do Doutrinador e Bianca, que o permitem deslanchar frases de efeito e emocionantes. A grande surpresa é a dupla Drago, que ressurge em um contexto bem clichê e segue assim durante toda a produção, até comprovar a sua verdadeira profundidade no terceiro ato. Viktor (Florian Munteanu) mal fala e é um dos melhores personagens do projeto.

Por que Adonis Creed está lutando? É a pergunta que ele se faz o filme inteiro e que é respondida sem ser respondida. Isso é Creed II. Uma obra que existe para deleitar completamente os fãs de Rocky Balboa, mas que entende esse fato, não se deixando, portanto, a cair em armadilhas batidas. E é por não subestimar o espectador que alcança um patamar significativo na história do Garanhão Italiano e também cria a sua própria.

Nota: 8/10

sábado, 19 de janeiro de 2019

Livrai-nos do mal

Ou como Colette e A Esposa são em essência o mesmo filme.

Por Pedro Strazza.

Só pode ser uma coincidência irônica do destino que A Esposa e Colette tenham sido produzidos e lançados para a mesma temporada de premiações. Para quem assistiu os dois filmes - o que é uma probabilidade, dado que o primeiro foi lançado nos cinemas praticamente um mês depois do segundo - a sensação de déjà vu é clara mesmo que envolta em uma neblina de sentimentos conflitantes, já que ambas as obras em teoria compartilham apenas uma ou duas características imediatas.

Dado, é válido notar a princípio que ambas surgem de premissas diferentes em contextos diferentes. Enquanto A Esposa é baseado em um livro de ficção ambientado nos tempos atuais, Colette é uma cinebiografia da escritora francesa homônima que viveu entre o fim do século XIX e o começo do XX. Mesmo em suas formatações as duas obras não se assemelham: o primeiro, dirigido pelo sueco Björn Runge e estrelado pelos veteranos Glenn Close e Jonathan Pryce, conduz sua narrativa aproveitando o máximo das predisposições teatrais de seu elenco; o segundo, de autoria de Wash Westmoreland e encabeçado por Keira Knightley, segue o padrão convencional do gênero com alguns poucos twists para manter a história em rotação diferente de outras tantas biografias da telona, sem tirar o espectador do terreno conhecido no meio do caminho.

Ao mesmo tempo, porém, os dois filmes não deixam de possuir os pontos de contato superficiais citados acima, especialmente na questão da relação dos casais principais. Isso porque a grande reviravolta de A Esposa é o ponto de partida de Colette: o marido que toma a autoria (e por consequência, a fama) da esposa. No primeiro, isso é um segredo a ser desvendado pelo espectador, conforme vai ficando clara na condução da história que a relação entre os personagens de Close e Pryce são assombradas de alguma forma por erros do passado - que serão devidamente ilustrados em flashbacks nada discretos. Já o segundo usa isso como base para explorar o relacionamento "atípico" de Colette com o primeiro marido Henry Gauthier-Villars (Dominic West), cujo casamento emulou de certa forma os livros picantes escritos por ela e publicados no nome dele.

Mas se esta coincidência de roteiros de início é, bem, uma mera coincidência, a maneira como tanto Runge quanto Westmoreland lidam com o desenrolar deste fato acaba por converter ambos os projetos a um assustador mesmo ponto de encontro.

O mais bizarro, porém, é como os dois longas cometem os mesmos erros na hora de lidar com uma relação mais ou menos similar. Tanto A Esposa quanto (e em especial) Colette faltam em maleabilidade e, talvez, maldade na hora de lidar com relacionamentos que aos olhos de hoje são vistos - de forma correta, vale acrescentar - como tóxicos. Tanto Runge quanto Westmoreland adotam posturas conservadoras e de julgamento perante a relação de seus respectivos casais, jogando o marido na posição de grande vilão a ser derrubado e privilegiando o drama da esposa que se vê intimada a se submeter a tamanho vil esquema.

É uma narrativa correta e que certamente há de agradar o olhar do público de hoje - que, pelo menos espero, já aprendeu a identificar estas dinâmicas e adotar a devida postura crítica a elas. Ao mesmo tempo, esta decisão pelo julgamento contemporâneo do passado não deixa de carregar um olhar anacrônico de relações: aos olhos do público e do cineasta, é fácil olhar para eventos do passado dos personagens e julgá-los como certos ou errados de sua posição no presente, diagnosticando os momentos - seja em flashback, seja no presente narrativo mesmo - que levaram estes relacionamentos a uma posição tão maléfica.

O mais difícil (e, portanto, mais interessante) nestas horas seria abraçar esta aparente toxicidade declarada pelos olhos de hoje para entender seus mecanismos, algo que nem é tão inédito assim. Só no ano passado, por exemplo, tivemos na mesma época de Oscar o Trama Fantasma de Paul Thomas Anderson que tinha numa toxicidade de relações o seu mote de existência, mas que ao invés de dar o passo para trás e criar uma esfera de julgamento sobre cada um dos personagens fazia este mergulho; havia a constatação de que tanto o marido quanto a esposa tinham suas próprias motivações perturbadoras para viver aquele amor vil, o que só potencializava o drama em torno dos personagens.

É inevitável, então, que ambos os filmes terminem num mesmo poço, mergulhados em problemas parecidos. Enquanto o esposo há de pagar por seus pecados, de um jeito ou de outro sendo despido do amor de sua vida sem perceber a própria tragédia, a mulher liberta-se na confissão ao público - ou, pelo menos, na promessa de que a verdade há de ser revelada, como é o caso de A Esposa.

Não deixa de ser um bom espaço às atrizes envolvidas, que cada uma a seu jeito são obrigadas a carregar estas sinas das produções nas costas. No caso de Close, talvez tenha chamado a atenção dos votantes do Oscar o fato da atriz praticamente ter que fabricar o próprio drama no longa, já que toda a dramaturgia que move sua personagem mora na sua versão mais jovem - que claramente não consegue dar voz à tragédia, vide o caráter funcional que os relances do passado assumem na narrativa.

Em outros tempos (e caso Colette não fosse baseado em fatos, é bom lembrar), seria bem capaz de haver um mote religioso embutido nesta confissão, com direito a "livrai-nos do mal", bíblia e até padre no meio. Uma pena, dada a dedicação dos respectivos elencos protagonistas e dado que o pérfido sempre rende filmes no mínimo curiosos de serem vistos.