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sábado, 25 de agosto de 2018

Crítica: Gauguin - Viagem ao Taiti

Cinebiografia de Paul Gauguin reflete vida e obra do artista: bonita, mas problemática.

Por Isabela Faggiani.

O diretor e roteirista do longa Gauguin - Viagem ao Taiti, Édouard Deluc, teve a ideia de fazer o filme em homenagem ao pintor Paul Gauguin após ler Noa Noa, o diário de viagem do artista escrito após sua primeira viagem ao Taiti. O filme de Deluc não tem como proposta retratar toda a vida e trajetória de Gauguin (Vincent Cassel); a história contada se passa ao longo de dois anos, entre 1891 e 1893, período em que o pintor produziu 66 obras.

O longa começa com a decisão de Gauguin deixar Paris e ir para a Polinésia sob o pretexto de que a vida urbana já não o agradava mais e ele precisava entrar em contato com a natureza “selvagem” para buscar inspiração. Essa primeira parte do filme se passa de forma crua, rápida e sem muito desenvolvimento. Vemos apenas um Gauguin triste e cansado que não hesita em deixar para trás a esposa e cinco filhos e ir buscar sua musa em outro continente. 

Chegando em Papeete - a capital da Polinésia Francesa - Gauguin logo é acometido por uma doença. O doutor Henri Vallin (Malik Zidi) trata do pintor e afirma que este teve um problema no coração e tem diabetes em estágio avançado. O filme, porém, não menciona que esses problemas provavelmente estavam ligados à sífilis cardiovascular que o pintor tinha.

Ao longo dos 102 minutos de filme, o espectador é agraciado com cenas cativantes do novo lar de Gauguin, que explora tanto quanto pinta. A fotografia do filme, cheia de vida e cores, é, junto com a atuação de Cassel, o ponto mais forte da obra. O ator faz um ótimo trabalho passando a delicadeza que Gauguin tinha ao pintar suas obras e ao desbravar o desconhecido. O ator entrou de cabeça no projeto, estudou a vida e obra do pintor que interpretou, leu Noa Noa, perdeu peso para o papel e até fez aulas de pintura, pois, segundo ele “não queria parecer um idiota no set, adicionando cores sem saber como”.

A jovem Tuheï Adams também não deixou a desejar no papel de Tehura, a musa e amante do pintor, que foi entregue à ele de bom grado pela sua aldeia e serviu de inspiração para dezenas de seus quadros icônicos. 

Sem uma boa história para contar, Deluc cria um triângulo amoroso entre Gauguin, Tehura e o jovem local Jotépha (Pua-Taï Hikutini), pupilo do artista. Enquanto Gauguin está sofrendo por conta de sua doença e da falta de dinheiro, Tehura e Jotépha, vão cada vez mais se mostrando interessados um no outro. O problema é que nenhum dos personagens é cativante a ponto de prender a atenção do espectador, e mais que isso: o longa não traz à tona um problema alarmante dessa relação.

A jovem Tehura de verdade tinha apenas 13 anos de idade quando seus pais a entregaram ao pintor francês, que à época já tinha mais de 40 anos. Além dela, Gauguin também manteve relações com outras duas jovens polinésias, que também tinham entre 13 e 14 anos. No filme, apenas Tehura é mostrada, e Deluc decidiu retratá-la de forma mais adulta, ignorando o fato de que sua inspiração para o filme é um pintor europeu pedófilo que se casou com três adolescentes em sua viagem à “natureza selvagem” e, provavelmente, infectou as garotas com sífilis.

Por conta dessa “licença potética”, o filme de Deluc negligencia uma das mais importantes problemáticas da viagem de Gauguin - algo que merecia uma análise cinematográfica muito mais do que as belas paisagens do Taiti e as mais de 60 pinturas de Gauguin. Ao deixar esse importante fato de fora de sua história, Deluc transformou seu filme em uma história de um homem doente e pobre que pinta quadros - o que assemelha Gauguin - Viagem ao Taiti a outras cinebiografias sobre pintores do século XX, com a diferença de que este longa não se passa na Europa.

Nota: 4/10

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Crítica: Histórias que o Nosso Cinema (Não) Contava

Compilação de Fernanda Pessoa é retrato, análise e diálogo.

Por Alexandre Dias.


Devo revelar, antes de qualquer coisa, que o que tinha em mente sobre as pornochanchadas era basicamente aquele estereótipo clássico: filmes que não abordavam temas densos, orçamentos pífios, produção bizarra e erotismo brega. O conteúdo raso era apenas o "permitido" a ser feito no período da ditadura militar no Brasil, algo que não comprometeria o governo e suas ideias altamente retrógradas. Será que era mesmo?

Histórias que Nosso Cinema (Não) Contava é a desconstrução perfeita de como esta vertente do cinema nacional não era tão repleta de ingenuidade assim; ou, pelo menos, mostra que o descompromisso aparente que a cercava tinha - ou poderia vir a ter, como posso utilizar-me de exemplo - um efeito social significativo. Por meio de um conceito baseado na pesquisa e o recorte de informações, da mesma forma que Eduardo Coutinho concebeu Um Dia na Vida, a diretora Fernanda Pessoa consegue fazer um retrato de um ciclo em paralelo a um diálogo com a atualidade.

O documentário é estruturado pelos trechos das obras, em sua maioria dos anos 70, alinhados por assunto, além de uma introdução rápida do contexto político e uma conclusão. Tortura, aborto, comunismo, machismo e influência externa são apenas alguns dos campos percorridos no longa-metragem. É impressionante ver como quase cinco décadas depois ainda estamos no mesmo ponto de “debate”. O modo debochado como os personagens – grande parte homens – falam sobre isso de uma maneira conservadora – para, na maior parte, mulheres – soa tristemente familiar. Basta ligar a televisão hoje para observar candidatos à presidência que fazem apologia ao estupro e recusam a lei do feminicídio.

Assim, é notável o alcance do trabalho de Fernanda Pessoa, porque a desolação trazida ao comprovar que as coisas não mudaram tanto desde aquele período vem em formato de reflexão. Ou seja, a nossa "democracia" atual tem aspectos semelhantes à da ditadura militar. Isso é muito grave, tornando a função desse filme mais importante ainda. Não é só um produto que conversa sobre política. Ele é político. E isso é bom, ao contrário do que alguns espectadores podem pensar. Não há nenhuma apelação, a exposição de ideias e argumentos são inteligentes e fluidas.

A cineasta responsável pelo projeto, que também assina o roteiro, merece grande destaque, porém não há como não trazer à tona o nome de Luiz Cruz, organizador da montagem. Os 80 minutos de duração são perfeitamente bem utilizados, sem cansar quem está assistindo e sempre provocando a curiosidade do que será o próximo tema. Os fragmentos extraídos das obras variam o seu tempo, alguns sendo mais curtos e outros mais longos - há verdadeiras cenas de discussão entre os personagens, assim como pequenos comentários e atos.

A propósito, o fato do "gênero" da pornochanchada ser o assunto em questão foi destrinchado com eficiência. O besteirol desses longas conseguem causar risadas pela breguice, o que, por outro lado, auxiliou muito na ironia da produção, algo que Pessoa valorizou para passar alguns de seus pensamentos. Nem por isso não há momentos chocantes e perturbadores. Nunca pensei que um filme assim teria uma cena de tortura, por exemplo, como a que uma mulher é amarrada pelas mãos e os pés e é agredida por homens, ou um momento realmente dramático, representado pela jovem que debate aborto com a sua família católica tradicional. Há, mais uma vez, uma dupla função: gerar uma análise e desfazer um rótulo.

Dizer que as pornochanchadas eram trabalhos com uma sabedoria enrustida não é propriamente uma verdade, mas com certeza pode-se afirmar que representaram uma sociedade e os seus pontos diversos, ainda que sem querer. Portanto, é admirável a tarefa que Fernanda Pessoa trouxe para si, de entender como aquele cinema era uma janela do nosso mundo e colocar isso em questão, trazendo uma abertura de diálogo para os dias atuais que é urgentemente necessária.

Nota: 9/10


sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Crítica: Você Nunca Esteve Realmente Aqui

Novo filme de Lynne Ramsay explora nova face da violência.

Por Letícia Dauer.

Veteranos de guerra traumatizados e a espetacularização da violência são temas antigos e explorados à exaustão por Hollywood. O thriller Você Nunca Esteve Realmente Aqui, baseado no livro homônimo de Jonathan Ames, apresenta uma narrativa que foge do tradicional maniqueísmo - herói ou assassino - com toques de Táxi Driver e O Profissional.

A diretora escocesa Lynne Ramsey venceu o prêmio de Melhor Roteirista e Joaquin Phoenix de Melhor Ator no Festival de Cannes de 2017, sendo aclamados pela crítica e pelo júri presidido por Pedro Almodóvar. Em seu quarto longa-metragem, Ramsey nos apresenta a história de Joe (Phoenix), veterano de guerra que ganha a vida resgatando garotas desaparecidas. Durante o primeiro ato, o protagonista enfrenta uma rotina mecânica e alienante que se resume a matar criminosos e cuidar de sua senil mãe (Judith Roberts). 

A fotografia sombria de Tom Townend, ocasionalmente esverdeada, acompanhada da frenética trilha sonora de Jonny Greenwood, integrante da banda Radiohead, são reflexos da mente perturbada e autodestrutiva de Joe, lembrando o personagem Travis Bickle de Robert De Niro. Breves flashbacks sobre a infância revelam que seu sofrimento vai muito além da experiência militar. Seu pai era extremamente abusivo e agredia a mãe com frequência, por isso encontrou na violência uma forma de extravasar seus traumas. 

O mérito do roteiro está em trabalhar com a dualidade. Ao mesmo tempo em que Joe é violento, sendo o martelo sua arma favorita, ele também demonstra muita doçura com a mãe ao cantarem juntos ou ao colocá-la na cama para dormir. O público transita entre a repulsa e a empatia, tendendo mais ao segundo sentimento durante a narrativa. Afinal ele se mostra mais uma vítima de uma sociedade violenta e desumana. 

"De todos os gêneros, o thriller é o que mais se aproxima da experiência de sonhos, e em que se armazena repertório de medos", diz a jornalista Ana Maria Bahiana. Em Você Nunca Esteve Realmente Aqui, o espectador é convidado a compartilhar os sonhos, ou melhor dizendo os pesadelos, do veterano de guerra, que perpassam por tentativas de suicídio. Como Joe é um personagem extremamente silencioso e antissocial, é função dessas cenas oníricas e os flashbacks revelarem sua verdadeira natureza. 

Como o próprio título afirma, Joe nunca esteve realmente ali, sempre viveu de forma automática e anestesiada até aceitar resgatar a filha do senador Albert Votto, que foi raptada por membros de uma rede de prostituição infantil. Após alguns acontecimentos, o desejo de libertar a pequena Nina Votto (Ekaterina Samsonov) desperta Joe de sua alienação e torna-se sua motivação de vida em meio aos ímpetos suicidas, o que talvez seja a única falha do roteiro. É difícil crer na rápida conexão entre esses personagens. Diferente, por exemplo, do relacionamento entre o assassino de aluguel Leon e da pequena Mathilda, em O Profissional, que é desenvolvida ao longo de toda a película.  

Nota: 7/10

domingo, 22 de julho de 2018

Crítica: O Orgulho

Produção francesa embarca no atual conflito ideológico do país por sua via mais discursiva.

Por Pedro Strazza.

Embora a rápida colagem de entrevistas sobre a retórica que serve de prólogo à produção acene para a possibilidade de tornar o discurso um tema de debate, O Orgulho no fundo está menos interessado na construção e metodologia das discussões que se dão ao longo da história que na possibilidade de trabalhar o confronto entre conservadorismo e liberalismo que ocorre na sociedade francesa, um tópico vital aos caminhos do país e da Europa nos dias de hoje. Cada vez mais recorrente no cinema francês por estar presente em quase todas as suas questões político-sociais, o assunto é aproveitado pelo diretor Yvan Attal no filme sob um teor subjetivo, mas presente desde o início nos conflitos entre seus dois protagonistas, uma estudante de direito pobre e descendente de árabes (Camélia Jordana) e seu professor reacionário e de argumentação quase sempre preconceituosa em sala de aula (Daniel Auteuil).

Se este duelo começa instigante por conta de seu contexto histórico e o verniz discursivo que assume com rapidez - algo inaugurado no longa sob uma discussão tensa em sala de aula por conta de um atraso da aluna e depois tornado recorrente conforme o professor, querendo evitar a demissão, se vê forçado a ensinar à nova pupila sobre os pormenores da retórica - ele também ganha consistência pela fachada que não demora a incorporar no esforço de tocar o debate pelas vias literais deste discurso. Como todo diretor emergido de uma relativa bem-sucedida carreira de atuação, Attal trabalha a narrativa com interesse maior pelas questões de atuação que pela encenação em si, uma medida que se a princípio favorece apenas o trabalho dos dois atores depois se revela feita para privilegiar os diálogos, cuja escrita joga em cima destas duas ideologias antagônicas e em suas consequentes desconstruções conforme o contato entre os dois personagens se prolonga.

Neste sentido, a produção não demora a lembrar A Trama, outro longa francês que tinha nas discussões o motor principal para promover o choque de pessoas de origens e realidades completamente distintas. É uma comparação também capaz de ajudar a melhor compreender o que impede o trabalho de Attal de obter um resultado similar de qualidade: se o filme de Laurent Cantet via no embate entre a professora esquerdista e o aluno de flerte com a extrema-direita um espaço para discutir o atual clima de extremos do cenário, a relação pouco amigável que norteia os movimentos de O Orgulho aos poucos se revela confortável para fazer a opção pelo drama de relações tradicional e disposto a conciliações, uma medida que sai cara a quaisquer intenções ambicionadas pelo projeto quando ele se vê na incômoda tarefa de fazer a aluna liberal "passar pano" para o professor preconceituoso afim de ter seu final feliz.

Mas enquanto que os debates entre os dois protagonistas aos poucos vão descambando para as soluções óbvias e novelescas, o filme acaba se mantendo mais ou menos unido graças à dinâmica de Jordana e Autuil, que mesmo preso a papéis clichês sabem como tornar seus embates fluidos. A direção conformada em fazer o trivial e o roteiro escrito a quatro mãos (além de Attal, também colaboram no texto Noé Debré, Victor Saint Macary e Yaël Langmann), porém, ajudam a sedimentar no longa a noção de um projeto com muito pouca vontade de elaborar em cima da boa premissa, disposto (com o perdão do trocadilho) a adotar o chavão do pensamento comum ao invés de plenamente desafiá-lo.

Nota: 4/10

segunda-feira, 25 de junho de 2018

Crítica: Desobediência

Tensão e delicadeza se complementam em narrativa sobre liberdade.

Por Isabela Faggiani*.

O novo longa do diretor chileno Sebastián Lelio, Desobediência, se enquadra no ainda pequeno nicho de filmes sobre mulheres que amam mulheres. Isso coloca sobre a história uma responsabilidade enorme, pois filmes desse tipo tendem a cair em alguns estereótipos prejudiciais e clichês. Lelio no entanto se saiu muito bem em seu papel, conduzindo a narrativa de forma bonita e delicada, ainda que complexa.

O filme começa com a morte do rabino mais respeitado de uma comunidade ortodoxa judaica de Londres. A cena seguinte, porém, é uma mudança drástica da comunidade religiosa para as ruas de Nova York, onde somos apresentados à Ronit (Rachel Weisz), uma fotógrafa solitária que vive na cidade e que é filha do rabino.

Sabendo da morte do pai, a jovem decide retornar à comunidade da qual saiu há muitos anos sem intenção de voltar. Ao chegar, ela é recebida pela notícia de que seus dois melhores amigos de infância, seu primo Dovid (Alessandro Nivola) e a amiga Esti (Rachel McAdams), estão casados. Ambos vivem de acordo com todas as normas da sociedade em que estão inseridos e estão mais religiosos do que nunca, o que aumenta ainda mais a distância entre o trio. 

A delicadeza de Desobediência pode ser vista em todas as situações de tensão do filme. O tom do filme, sempre com cores escuras e músicas instrumentais, já dá ao espectador uma sensação de que algo não vai bem, mesmo não havendo um momento de grande ação. Não há óbvia repulsa, mas fica sempre claro que a presença de Ronit na comunidade é desconfortável para ela e desagradável para as outras pessoas, com exceção de Esti, que logo descobrimos não ser tão distante de Ronit como antecipamos. 

A razão de todos esses sentimentos da comunidade - e da partida de Ronit - é o fato de que as duas mulheres tiveram um romance escondido quando mais novas e foram flagradas pelo pai de Roni, que depois da partida da filha sugeriu o casamento entre Esti e Dovid.

A história tem tudo para cair em contos batidos de religião contra sexualidade, mas não o faz. Ronit e Esti nunca tiveram dúvidas ou arrependimentos de seus sentimentos, e Esti nunca teve raiva de sua religião por causa de sua sexualidade. O filme trata de questões muito mais complexas: ele trata de liberdade e de livre arbítrio. O livre arbítrio de Ronit ao decidir sair da comunidade e ser verdadeira com ela mesma e seus sentimentos, se desprendendo de pessoas que tentaram reprimi-la no processo, mas também o livre arbítrio de Esti de decidir ficar na comunidade, se casar com um homem - mesmo nunca negando sua homossexualidade - e viver de acordo com sua religião.

Vemos ao longo do filme que o livre arbítrio nem sempre resulta em liberdade. As questões que tensionam Ronit, Esti e Dovid nos mostram que há vezes que precisaremos fazer escolhas que mudarão todo o curso de nossas vidas e teremos que lidar com as consequências disso. 

O filme é de uma importância tremenda para a comunidade LGBT por mostrar um romance homossexual, mas não ser sobre um romance homossexual. A homossexualidade na história é uma metáfora para a liberdade. É um filme que tem o poder de fazer qualquer pessoa se identificar com as personagens, afinal, o tema de liberdade é tanto pessoal quanto coletivo, o que torna primordial a reflexão trazida por Desobediência.

Nota: 8/10

*Isabela Faggiani é jornalista e comenta o lesbianismo no entretenimento no site Tecla SAP(atão).

segunda-feira, 11 de junho de 2018

"O cinema pode achar lugares mais incorretos" afirma diretor de Los Territorios

Conversamos com Iván Granovsky sobre a exploração dos limites entre ficção e realidade de seu primeiro longa-metragem.

Por Pedro Strazza.

Selecionado para o Festival de Roterdã deste ano, o argentino Los Territorios parte de uma premissa que é um tanto inusitada mesmo para o campo que adentra, no caso os limites entre os macrogêneros da ficção e do documentário. Situado em um momento posterior ao ataque terrorista à sede do periódico Charlie Hebdo, o longa de estreia do argentino Iván Granovsky percorre uma jornada um tanto fútil com base nas desventuras de seu protagonista, um jovem que ao mesmo tempo é e não é o seu diretor. Entrevistas não faltam ao filme, mas enquanto personalidades como o ex-presidente Lula, o presidente boliviano Evo Morales e até mesmo o jogador de futebol argentino Lavezzi acumulam uma boa carga de realidade ao projeto, outras tantas cenas da vida pessoal do autor mergulham a produção constantemente na fantasia por não encenarem nem por um segundo a verdadeira versão dos fatos ocorridos.

"Eu acredito que este filme não seja um documentário, ele é uma ficção que ocupa elementos da realidade" diz Granovsky em entrevista ao O Nerd Contra-Ataca, feita numa tarde fria e com alguma garoa durante a divulgação do lançamento do projeto no Brasil. "Eu queria fazer um filme que não tivesse tanto respeito por temas tão delicados" ele continua, se referindo ao próprio caráter efêmero do longa que depois ele define como um tipo de cinema mais "incorreto" que outros cineastas poderiam estar seguindo ao abarcar os conflitos da realidade. Esta irreverência ao trabalhar conflitos sociais ao redor do mundo, afinal, é o que essencialmente define a produção, ainda mais porque todos estes assuntos "delicados" acabam sendo um pouco esvaziados de sentido conforme o diretor estrutura uma narrativa que, em suas palavras, se iguala à prática de ler um jornal: "A gente como consumidor de notícias acaba não recebendo todas as notícias: Às vezes elas chegam até você, outras não, às vezes você consome mais uma coisa que a outra. É esta aleatoriedade que eu queria abordar." confirma o cineasta à nossa reportagem.

Confira nosso papo com o diretor a seguir. Los Territorios atualmente se encontra em cartaz nos cinemas de Brasília, Curitiba, Fortaleza, Goiânia, Palmas, Porto Alegre, Rio Branco, São Paulo e Vitória.


No filme há bandeiras de vários países que são colocadas na tela, mas só a da Argentina, seu país de nascimento, aparece invertida. Por que isso?

Eu acho que as bandeiras são só desenhos, eu não acho que elas sejam representações dos países. Para mim o que representa um país é muito mais do que uma bandeira, mas eu adoro bandeiras como desenhos, então achei que poderia fazer uma piada com o desenho da Argentina porque eu não tenho respeito por símbolos que são para a guerra. É uma coisa que só os argentinos sabem, mas a bandeira com o Sol era o jeito que a Argentina tinha de bradar sua conquista sobre os índios e sua vitória contra o Paraguai, enquanto que a bandeira sem o Sol era aquela que não ia para a guerra. Eu achei que tinha que fazer uma piada com isso, uma espécie de provocação.

A narrativa de seu filme é muito particular, ela parte dos vários percalços de sua história pessoal ao longo dos anos e vai intercalando as diversas entrevistas obtidas por você em inúmeros bicos. O que levou você a estruturar o projeto em cima de sua pessoa ao invés destas entrevistas?

Eu tinha mais interesse em fazer da narrativa do filme mais próxima da atividade de se ler um jornal. Quando você lê um jornal, você meio que faz a sua própria ordem de leitura: começa-se do início, do fim, pela seção de esportes ou de política. É também como assistir TV, em que você vai zapeando os canais até encontrar um conteúdo que lhe agrade. Eu gostava desta ideia de que nós estamos sempre mudando nosso foco para diferentes assuntos, e eu queria que este filme proporcionasse esta mesma sensação. Então por conta disto eu não achava que os conteúdos destas entrevistas não eram tão importantes, o importante era a forma.

E depois há também um viés que é mais político em mim sobre cinema e documentário, porque eu acredito que este filme não seja um documentário, ele é uma ficção que ocupa elementos da realidade. Para mim, o diretor de documentário é muita soberbia, ele acredita que pode falar de qualquer coisa como se fosse Deus e sempre tem muito respeito pelo conteúdo, e eu queria fazer um filme que não tivesse tanto respeito por temas tão delicados como a questão palestina. Não que eu não tenha respeito pela causa palestina, eu só pró-Palestina, mas eu acho que o cinema pode achar outros lugares mais incorretos.

Você quer dizer então que você quis imbuir um caráter efêmero às narrativas tradicionais, é isso que você está dizendo?

Isso e que a gente como consumidor de notícias acaba não recebendo todas as notícias: Às vezes elas chegam até você, outras não, às vezes você consome mais uma coisa que a outra. É esta aleatoriedade que eu queria abordar.

Aproveitando que você tocou neste assunto dos limites entre ficção e documentário, o filme mostra vários das relações pessoais que você nutriu ao longo destes últimos anos, seja com a família, as equipes que te acompanharam ou mesmo casos românticos que você teve, e muitas vezes estas cenas partem de uma dinâmica de encenação muito clara aos olhos do espectador, especialmente na cena que mostra você e seu pai discutindo e o microfone aparece. Por que inserir estes momentos?

A gente [a equipe] sempre esteve em um número reduzido, óbvio, e a ideia do cinema metalinguístico nunca foi pensada. Ela acontecia naturalmente, quando eu falo com meu pai na Argentina o microfone aparece porque eu acho que o cinema tinha que aparecer naquele momento, tinha que ficar um pouco mais claro que era encenação porque a cena seguinte mostrava como minha mãe estava custeando a minha próxima viagem. E era isso, às vezes era mentira, às vezes era verdade, e eu acho que quando eu mostro a equipe é pra ajudar a esclarecer como o filme no fim é uma grande construção. Por isso o filme não é político, mas sim interiorizado.

Então todas aquelas cenas com as namoradas não eram reais?

Isso, nenhuma delas foi minha namorada. Além desta discussão entre ficção e realidade, eu sempre penso no relato. Então se a imagem real é melhor para o relato, ótimo, vamos colocar a imagem real, mas se for melhor a imagem de ficção, então vamos colocar a ficção. Um bom exemplo é a personagem da tradutora basca: ela era uma atriz, mas a gente na hora de gravar falou para ela “Olha, nós não temos um roteiro desta cena, mas precisamos que você responda nossas perguntas nas duas línguas e estas perguntas são como se você estivesse dando uma entrevista. Então você responde como se fosse real.”. Mas como ela é atriz, ela trazia algo a mais para o filme neste momento, então a gente fazia muito este jogo durante as filmagens. Mas claro, há momentos que são reais, como as entrevistas com os políticos ou a cena na zona de guerra palestina.

Nestas cenas reais, houve uma que mais te marcou neste processo?

Talvez seja meio clichê dizer isso, mas as cenas que mais me marcaram foram na Palestina em que a gente viu este deslocamento das pessoas em meio à guerra. Esta foi a parte mais forte da produção, mas o momento mais intenso do filme foi a entrevista com Miki Kratsman, que dirige a Breaking the Silence, pois eu lembro que quando a gente foi fazer a fala ele estava resignado, e eu já não sei se isso foi parar no filme ou não mas ele disse naquele momento que o conflito não tinha nenhum fim. O Miki é alguém que está bastante imerso naquela situação, então tinha pra mim uma coisa de olhar a resignação de uma pessoa que é muito forte; eu lembro que eu olhei para trás e vi meu produtor e o meu fotógrafo quase chorando.

Outro momento que eu acho muito forte mas que é muito pequeno no filme é a cena do engarrafamento na Palestina, em que a câmera tá se mexendo muito e ouve-se o chofer gritando muito. Aquele momento foi muito intenso para a gente porque a gente entendeu que, além da violência militar e do sofrimento bélico sentido pelos palestinos, tem uma coisa muito mais normal que é como o caos é local. Foi um engarrafamento gerado no meio do nada só porque uma parte do exército israelense bloqueou a entrada do povo palestino dizendo que tinha uma célula do Hamas ou algo do tipo, e por conta do bloqueio de uma rua por esta justificativa sete quilômetros de trânsito foram criados, porque os palestinos só tem uma estrada para entrar na Palestina. Então quando você vê isso, que é a coisa doméstica, você não está vendo os mortos ou balas, mas você está vendo os efeitos da guerra no cotidiano das pessoas e aí que você se toca que elas estão sofrendo com isso todos os dias. O problema não é que elas sabem que vão morrer, o problema é que elas sabem que vão morrer e que a vida delas é muito ruim. E acho que o filme no fim mexe um pouco com isso, porque estes conflitos estão muito mais ocultos do que se imagina.

sábado, 9 de junho de 2018

Crítica: Os Estranhos - Caçada Noturna

Continuação se despe das necessidades de amarração de mitologia e abraça vocação ao pop.

Por Pedro Strazza.

Lançado em 2008, o primeiro Os Estranhos tinha no horror doméstico o mote central para um filme que tirava primordialmente de um caráter fabular seu maior mal-estar. O longa de Bryan Bertino (que até o momento não conseguiu superar o peso desta forte estreia na carreira) usava de uma premissa um tanto básica - casal em crise passa a ser perseguido por três completos estranhos - para criar uma narrativa que buscava o horror a princípio no inexplicável e, depois, na deturpação do conto-de-fadas às avessas que revelava ser a história.

É uma mistura que é no mínimo muito complicada de se continuar para além desta trama inicial, mas isso não impediu Bertino de ir atrás de uma continuação mesmo se ela ficasse um bom tempo entre idas e vindas no mercado. Passam-se dez anos, e com uma nova equipe criativa por trás chega agora aos cinemas este Os Estranhos - Caçada Noturna, sequência que mostra-se um tanto distante de toda a dinâmica que consagrou o original. O truque do longa dirigido por Johannes Roberts, porém, está justamente na percepção da inoperância do processo ao qual foi submetido, passando a trilhar caminhos próprios dentro de uma lógica do qual só toma emprestado do primeiro "capítulo" o imaginário visual marcante das três figuras psicopatas.

Pois por mais que o roteiro de Ben Ketai assuma a princípio grande parte das estruturas do filme anterior - seja na cartela inicial do "Baseado em eventos reais" ou na promessa de uma premissa que expanda os valores do original para o núcleo familiar - o horror proposto por Caçada Noturna é muito distinto daquele usado por Bertino há uma década. Diretor de carreira feita em terrores de baixo orçamento como Medo Profundo, Roberts aproveita desta primeira incursão por uma produção de maior destaque para fazer um slasher de via tradicional, ancorado de certa forma a muitas das convenções usadas pelo saudoso Tobe Hooper em seu primeiro O Massacre da Serra Elétrica. Ao invés de seguir pela claustrofobia gerada no desconhecido, a sequência aposta na multiplicação dos espaços (o hotel de trailers vazios é assustador pela ausência de identidade e seu consequente caráter labiríntico) e em um perfil mais terreno dos misteriosos vilões mascarados, que se aproximam aqui da imagem de um grupo de caçadores em perseguição de suas vítimas - no caso, a família de Cindy (Christina Hendricks) e Mike (Martin Henderson).

Esta emulação feita no princípio da inspiração, porém, só ganha força no longa à partir do momento que Roberts começa a revelar um desejo claro de conduzir a sequência pelo seu viés mais pop, uma medida que se por um lado demora um pouco para se firmar na narrativa também é eficaz para criar uma identidade muito distinta ao filme. Da trilha sonora equilibrada entre os sintetizadores de Adrian Johnston e músicas chiclete oitentistas ao néon que domina a fotografia de Ryan Samul, o segundo Os Estranhos é em seus melhores momentos um grande pastiche consciente e auto-satisfatório do gênero, disposto a seguir com vontade todos os joguetes estruturais que permeiam sua narrativa na mesma medida com a qual abraça o sadismo da história da forma mais estilizada e caricatural possível - a cena do confronto na piscina do hotel, por exemplo, parece se banhar na profusão de cores proveniente da violência, por sua vez filmada quase como um ritual de morte pelo cineasta.

Mas o que de fato fortalece todas estas intenções da produção, em meio a todas as perseguições e assassinatos, é a sua despreocupação com eventuais amarrações de mitologia ou mesmo de ligar-se de alguma forma a tudo que foi estabelecido visualmente e narrativamente no original. Roberts não hesita na hora de fazer cair máscaras, inverter expectativas sobre os psicopatas e dispensar toda e qualquer qualidade do primeiro Os Estranhos, uma ação tão estranha em tempos onde a imensa maioria das franquias precisam prestar reverência ou respeitar o terreno do passado de cinco em cinco minutos. É uma decisão por seguir em frente que não deixa de estar de acordo tanto com a proposta efêmera de Caçada Noturna quanto com o tributo do diretor a Hooper, que fez da sequência da trupe de Leatherface um grande escarro com o original - e a bem da verdade este segundo Os Estranhos soa bastante como um O Massacre da Serra Elétrica dirigido pelo Tobe de O Massacre da Serra Elétrica 2, como bem escancara o clímax no parque.

Nota: 6/10

quinta-feira, 7 de junho de 2018

Crítica: Vingança

Terror contesta estruturas perniciosas dos filmes de vingança em resposta tomada pela violência.

Por Pedro Strazza.

O subgênero conhecido como filmes de vingança - que parte de uma premissa geral de pessoas subjugadas a um trauma ao qual tentam escapar da forma mais sangrenta e revanchista possível - sempre teve uma tendência ao macabro no retrato de suas vítimas dentro destas tragédias, mas é na figura feminina que este tipo de produção parece centralizar todas as suas atenções na hora de desencadear sua raiva interna. Dos sucessos setentistas como Desejo de Vingança e Desejo de Matar aos longas de horror contemporâneo que tomam emprestados algumas de suas estruturas como a série Doce Vingança, a predisposição em violentar a mulher nestas produções para aflorar todas as relações de ódio que lhe serão vitais posteriormente carregam um peso temático montado entre o exploitation e o mais puro sadismo autossatisfatório, uma linha tênue poucas vezes trafegada com consciência.

É exatamente este limite mais instável do gênero e sua consequente exploração que servem de tema a Vingança, longa-metragem de estreia da diretora francesa Coralie Fargeat. Como bem sugere a franqueza do título, o filme de horror e ação não demora para tratar do tema, mesmo que para chegar aonde queira demore um ato inteiro de seu roteiro. Embora a vingança sangrenta de uma garota (Matilda Lutz) contra seu peguete (Kevin Janssens) e dois de seus amigos (Vincent Colombe e Guillaume Bouchède) que a estupram e quase a assassinam no meio do deserto só vá acontecer à partir da primeira hora de produção, a cineasta emprega todo um jogo de texturas e saturações de cor na fotografia de Robrecht Heyvaert e pautada na trilha feita nos sintetizadores de Robin Coudert para já estabelecer o espectador dentro de um cenário onde todo o estouro é direcionado ao questionamento das convenções.

E que questionamento mais explosivo há de ser este encenado por Fargeat. Além de não desviar a câmera da violência usada pela vítima para responder à altura seus abusadores e torturadores, o filme usa de um jogo de simbologia muito claro para intensificar este limite entre satisfação e agressão no qual habita. Se no início a protagonista é trabalhada pela narrativa sob um olhar de mais pura sensualidade captado pelos homens, logo em seguida a obra já inverte a chave para revelar a objetificação corruptiva e inerente a este processo que levará à cena do estupro, um momento no qual a diretora se restringe ao essencial mesmo nesta dinâmica escancarada - ao longa, basta saber que a garota foi violentada sem motivo maior além de um desejo não materializado de seu abusador e observada por um terceiro que adquire culpa por ignorar o ocorrido.

Mas é só à partir do momento no qual a jovem sobrevive ao atentado contra a sua vida e passa a buscar revanche contra os homens que ainda a caçam, porém, que Vingança efetivamente abraça o exploitation desta sua proposta. A violência visceral que começa a ser desenrolada na tela - em cenas dominadas por litros e litros de sangue - não é direcionada a um simples quid pro quo, mas reflete todos os estágios de agressão pessoal sofridas pela protagonista no primeiro ato. De certa forma, as cenas mais pesadas empregadas na narrativa respondem de alguma forma os crimes bárbaros do início, seja em analogias diretas (quem testemunhou o estupro morre com os olhos furados) ou em paralelos gerados na intensificação da crueldade por trás da punição - o estuprador morre de um jeito banal, mas antes precisa tirar um caco de vidro que penetra fundo em sua carne contra a sua vontade.

Este processo concebido e percorrido pela obra nunca chega a ser um de ressignificação dos elementos do gênero - não é como se a crueza das cenas de vingança fossem inverter os pólos e colocar os vilões para experimentar o papel de vítimas, por exemplo - mas há algo de muito genuíno na metodologia de Fargeat em usar dos elementos de um subgênero pernicioso e visto hoje com certa reprovação para impulsionar um questionamento tão imediato a estas relações. Sua narrativa lisérgica pode perigar de entrar no campo do banal em alguns momentos (em especial na cena do peiote, no qual toda a simbologia do projeto arrisca-se por estes campos) e sua falta de contextualização dos eventos soa um tanto disruptiva, mas no geral esta necessidade em impor uma correção estrutural pelos próprios meios impede que o filme se perca em contradições.

Isso sem contar, claro, a qualidade do olhar da diretora para estruturar esta ação sem se perder no emocional da coisa, auxiliada ainda por uma atuação silenciosa e focada de Lutz. Se nos momentos internos como o clímax na casa há todo uma dinâmica lúdica que só aumenta o suspense dos eventos, Fargeat se faz também nos cenários áridos do Marrocos, cujos desertos e desfiladeiros ocasionais servem a ela para reforçar a ideia geral de Vingança de que, por mais que não queiram, seus personagens estão sempre sendo observados.

Nota: 8/10