quinta-feira, 7 de junho de 2018

Crítica: Vingança

Terror contesta estruturas perniciosas dos filmes de vingança em resposta tomada pela violência.

Por Pedro Strazza.

O subgênero conhecido como filmes de vingança - que parte de uma premissa geral de pessoas subjugadas a um trauma ao qual tentam escapar da forma mais sangrenta e revanchista possível - sempre teve uma tendência ao macabro no retrato de suas vítimas dentro destas tragédias, mas é na figura feminina que este tipo de produção parece centralizar todas as suas atenções na hora de desencadear sua raiva interna. Dos sucessos setentistas como Desejo de Vingança e Desejo de Matar aos longas de horror contemporâneo que tomam emprestados algumas de suas estruturas como a série Doce Vingança, a predisposição em violentar a mulher nestas produções para aflorar todas as relações de ódio que lhe serão vitais posteriormente carregam um peso temático montado entre o exploitation e o mais puro sadismo autossatisfatório, uma linha tênue poucas vezes trafegada com consciência.

É exatamente este limite mais instável do gênero e sua consequente exploração que servem de tema a Vingança, longa-metragem de estreia da diretora francesa Coralie Fargeat. Como bem sugere a franqueza do título, o filme de horror e ação não demora para tratar do tema, mesmo que para chegar aonde queira demore um ato inteiro de seu roteiro. Embora a vingança sangrenta de uma garota (Matilda Lutz) contra seu peguete (Kevin Janssens) e dois de seus amigos (Vincent Colombe e Guillaume Bouchède) que a estupram e quase a assassinam no meio do deserto só vá acontecer à partir da primeira hora de produção, a cineasta emprega todo um jogo de texturas e saturações de cor na fotografia de Robrecht Heyvaert e pautada na trilha feita nos sintetizadores de Robin Coudert para já estabelecer o espectador dentro de um cenário onde todo o estouro é direcionado ao questionamento das convenções.

E que questionamento mais explosivo há de ser este encenado por Fargeat. Além de não desviar a câmera da violência usada pela vítima para responder à altura seus abusadores e torturadores, o filme usa de um jogo de simbologia muito claro para intensificar este limite entre satisfação e agressão no qual habita. Se no início a protagonista é trabalhada pela narrativa sob um olhar de mais pura sensualidade captado pelos homens, logo em seguida a obra já inverte a chave para revelar a objetificação corruptiva e inerente a este processo que levará à cena do estupro, um momento no qual a diretora se restringe ao essencial mesmo nesta dinâmica escancarada - ao longa, basta saber que a garota foi violentada sem motivo maior além de um desejo não materializado de seu abusador e observada por um terceiro que adquire culpa por ignorar o ocorrido.

Mas é só à partir do momento no qual a jovem sobrevive ao atentado contra a sua vida e passa a buscar revanche contra os homens que ainda a caçam, porém, que Vingança efetivamente abraça o exploitation desta sua proposta. A violência visceral que começa a ser desenrolada na tela - em cenas dominadas por litros e litros de sangue - não é direcionada a um simples quid pro quo, mas reflete todos os estágios de agressão pessoal sofridas pela protagonista no primeiro ato. De certa forma, as cenas mais pesadas empregadas na narrativa respondem de alguma forma os crimes bárbaros do início, seja em analogias diretas (quem testemunhou o estupro morre com os olhos furados) ou em paralelos gerados na intensificação da crueldade por trás da punição - o estuprador morre de um jeito banal, mas antes precisa tirar um caco de vidro que penetra fundo em sua carne contra a sua vontade.

Este processo concebido e percorrido pela obra nunca chega a ser um de ressignificação dos elementos do gênero - não é como se a crueza das cenas de vingança fossem inverter os pólos e colocar os vilões para experimentar o papel de vítimas, por exemplo - mas há algo de muito genuíno na metodologia de Fargeat em usar dos elementos de um subgênero pernicioso e visto hoje com certa reprovação para impulsionar um questionamento tão imediato a estas relações. Sua narrativa lisérgica pode perigar de entrar no campo do banal em alguns momentos (em especial na cena do peiote, no qual toda a simbologia do projeto arrisca-se por estes campos) e sua falta de contextualização dos eventos soa um tanto disruptiva, mas no geral esta necessidade em impor uma correção estrutural pelos próprios meios impede que o filme se perca em contradições.

Isso sem contar, claro, a qualidade do olhar da diretora para estruturar esta ação sem se perder no emocional da coisa, auxiliada ainda por uma atuação silenciosa e focada de Lutz. Se nos momentos internos como o clímax na casa há todo uma dinâmica lúdica que só aumenta o suspense dos eventos, Fargeat se faz também nos cenários áridos do Marrocos, cujos desertos e desfiladeiros ocasionais servem a ela para reforçar a ideia geral de Vingança de que, por mais que não queiram, seus personagens estão sempre sendo observados.

Nota: 8/10

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