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Jogador N° 1

Spielberg faz seu comentário sobre o próprio legado em Hollywood sem esquecer do espetáculo no processo

quarta-feira, 28 de março de 2018

Crítica: Jogador N° 1

Spielberg enfim faz seu comentário sobre o próprio legado em Hollywood sem esquecer do espetáculo no processo.

Por Pedro Strazza.


Lançado em 2011, Jogador N° 1 na época talvez tenha sido para muitos o primeiro ápice (em termos de conteúdo) de uma cultura nerd e nostálgica que hoje habita o mainstream pop como uma de suas principais engrenagens. Além de toda a profusão de referências a obras e produtos do ambiente cultural estadunidense dos anos 80, o livro escrito pelo então estreante Ernest Cline também se apoiava em narrativas e arquétipos muito celebrados pelo público, seja pelos leitores saudosos daquela época ou os mais jovens e habituado a tramas do tipo. A história de Wade Watts e sua busca pelo easter egg do falecido multimilionário James Halliday na plataforma de imersão Oasis, afinal, estão atreladas à clássica estrutura da jornada do herói, replicada tantas vezes nas diversas mídias ao qual a publicação faz reverência e que traz um protagonista vindo do absoluto nada para botá-lo em uma trajetória onde alcançará tudo que busca.

Mas por mais "fácil" que pareça a princípio adaptar uma premissa dessas para a telona, a realidade é bem outra. Ainda que seu universo de referências e apego material a um cenário do passado seja vasto o suficiente para abarcar todo tipo de público, dos leitores mais descompromissados aos fãs de RPG e adventure games mais ardorosos, a fantasia futurista não deixa de ser construída como uma literatura típica de jovens adultos voltada para nerds oitentistas do sexo masculino, uma medida que ajuda a entender parte do desgaste por trás de certas estruturas da história no contexto maior de questionamento de representatividade no mercado e na produção hollywoodiana de hoje. Nas mãos de diretores mais jovens e guiados pela tendência contemporânea de tornar suas produções em grandes homenagens pop e reverencialistas - caso de cineastas como J.J. Abrams e Jordan Vogt-Roberts - este problema criativo provavelmente passaria despercebido e relegaria a adaptação cinematográfica ao mero papel de nervo central tardio (para não dizer atrasado) de todo o zeitgeist nostálgico vivido pela indústria e o público atual.

A versão cinematográfica de Jogador N° 1, porém, não foi conduzida por uma das crias da Hollywood dos blockbusters e dos produtos de grande orçamento, mas acabou nas mãos de Steven Spielberg, um dos (senão o) membros fundadores desta indústria contemporânea e da nostalgia americana pelos anos 80. Mesmo que feita no impulso de mercado mais óbvio ("quem melhor para dirigir uma obra sobre os anos 80 que um de seus mestres?" deve ter imaginado um dos executivos da produção), a escolha pelo diretor de Caçadores da Arca Perdida e E.T. - O Extraterrestre é no mínimo peculiar e ambiciosa por gerar um encontro entre criador e criatura de altíssimas proporções: pela primeira vez em sua carreira, Spielberg tem a oportunidade de encarar de frente o culto criado em torno de sua figura e de outros colegas, um revisionismo que ao mesmo tempo escapa e se encaixa muito bem na tendência atual de seu cinema.

Spielberg já usou da nostalgia como elemento temático em outros de seus filmes aventurescos recentes como As Aventuras de Tintim e O Bom Gigante Amigo, mas se até então o tema era desenrolado sob uma perspectiva pessoal do diretor - uma noção muito alinhada à sua produção mais "séria" e amadurecida do período, que compreende obras como Lincoln, Ponte dos Espiões e The Post - em Jogador N° 1 ele enfim pode observar este sentimento pela perspectiva de outros e enxergar a si mesmo dentro deste panorama. Quem fornece este contexto na história é o próprio mundo do Oasis, que entre as infinitas possibilidades anunciadas oferece a oportunidade de materializar ao usuário um verdadeiro hall de personagens e situações iconográficas de todas as mídias, tornando a "fuga da realidade" característica da cultura de massa quase uma possibilidade física à população.

"Eu nasci depois dos tempos em que as pessoas pararam de tentar resolver os problemas do mundo e passaram a tentar conviver com eles" narra o protagonista Wade/Parzival (Tye Sheridan) logo no início do longa, enquanto faz seu passeio diário entre as pilhas de contêineres (que servem de moradia a toda uma comunidade) para chegar ao seu recinto particular e entrar no mundo virtual. Esta frase, ausente no livro de Cline, serve a Spielberg como uma espécie de estrela guia a sua produção, cujo trabalho maior aqui é o de botar em perspectiva o próprio culto cerimonialista gerado por esta cultura massificada de produtos reprocessados ad eternum. Embora não renegue ao espectador a expectativa de toda a ação rocambolesca e recheada de referências prometidas pelo livro e sua presença, o cineasta também usa do o filme para fazer um comentário próprio à indústria do qual faz parte, feito nas habituais grandes proporções e estruturação do cinema pipoca que criador e criatura habitam com naturalidade já há tempos.

Neste sentido, é divertido observar como o diretor orquestra a ação em torno deste elemento nostálgico e da história principal, que acompanha a grande caçada de Wade, seus amigos e da maléfica empresa IOI para encontrar o easter egg deixado por Halliday (Mark Rylance) no Oasis que determinará o herdeiro de sua criação e imensa fortuna. Se a princípio o longa ensaia entregar toda a protuberância de referências culturais ao qual está atrelado, proliferando cenas que enquadram grandes halls e ambientes externos povoados por multidões de personagens conhecidos e promovendo logo nos primeiros minutos uma verdadeira montanha-russa pop despirocada na disputada corrida pela primeira chave para o ovo, no próximo desafio Spielberg já reduz esta grande inundação a uma referência pessoal na reprodução literal de um filme de Stanley Kubrick no formato de um parque de diversões próprio - e mesmo neste ato de ludificação extrema o diretor não deixa de carregar um comentário a esta cultura nostálgica, explícita no fato de Aech (Lena Waithe) não conhecer o ambiente ao qual adentra no jogo por "não gostar de ver terror".

Estes dois primeiros desafios, completamente reimaginados para a telona e muito distintos dos apresentados no livro, formam com as cenas ambientadas na realidade uma dicotomia estrutural bastante funcional ao longa, que sabe se alternar entre o meio virtual e real para dar gravidade a toda a caçada. Se o livro de Cline se bastava em repetir estruturas de impersonificação do RPG em roupagem nostálgica e sobrevivia na imersão total no Oasis (com breves e violentos acenos ao mundo fora do game), Spielberg e o roteirista Zak Penn (que escreveu o filme junto do autor) são espertos de manter a realidade presente e jogar com noções mais tradicionais de roteiro, reforçando a vilania da IOI e de seu CEO Nolan Sorrento (Ben Mendelsohn) no contraste com uma revolução mais terrena e representada por Samantha/Art3mis (Olivia Cooke) - ainda que esta organização, bem como a personagem, seja no fim vítima de uma contextualização precária que não a desloque da função de mero (e puído) mecanismo da trama.

Mas dentre os vários malabarismos adaptativos feitos pelo filme (que neste departamento arrisca ser o mais complexo da carreira de seu diretor desde Tubarão), o maior e mais interessante talvez seja o deslocamento da relação com o qual este encara a figura de Halliday. Vivido por Rylance com toda a doçura que lhe é possível (talvez afim de compensar em simpatia a personalidade frágil do personagem), o excêntrico milionário no longa é menos encarado por seu relacionamento sequer iniciado com Kira (uma figura aqui relegada ao pano de fundo dos diálogos) que por sua relação com Ogden Morrow (Simon Pegg), arruinada pela reclusão cada vez maior do criador do Oasis e sua recusa em enfrentar a realidade. Erigindo a conexão entre os dois personagens como seu "Rosebud" espiritual, a produção refaz o trajeto habitual de Spielberg de reafirmar a amizade como valor social máximo, uma noção presente no companheirismo das interações do grupo de Wade e que encontra um contraste na frieza corporativa da IOI - e mesmo dentro da empresa maligna este sentimento de camaradagem se faz anunciar, a exemplo dos momentos finais do último desafio da caça.

Este reenquadramento do criador do Oasis, porém, é feito também porque no fundo ela facilita uma aproximação do próprio diretor com o personagem, um processo de identificação até esperado por parte do cineasta. Longe da pose de artista atormentado ao qual o livro procura pintar os ídolos por trás das obras ao qual faz referência e reverência, Spielberg não demora a encontrar em Halliday uma espécie de representação final de sua pessoa dentro da história, vendo no milionário que ergueu um império à partir das paixões da infância o mesmo jovem que nos anos 80 refundou junto de seus amigos uma indústria inteira por meio de blockbusters altamente lucrativos. E enquanto Halliday falece no início da história e não tem a oportunidade de enxergar o legado, Spielberg prossegue, revisitando em espírito a própria trajetória por meios simbólicos e outros nem tanto, a exemplo da "despedida" do fundador da caça no longa.

Esta conexão permite ora ou outra que o diretor faça alguns comentários alarmistas sem necessidade (a moral "saia do jogo e aproveite a realidade" lembra em alguns momentos o "desliga a TV e vá ler um livro"), mas é por meio dela que Spielberg enfim consegue colocar a própria carreira em perspectiva dentro da metodologia ágil e sempre em movimento de seu cinema. Se Jogador N° 1 nunca deixa de ser uma homenagem à geração oitentista do cinema estadunidense sob a lógica retroalimentada de personagens e estruturas desenvolvidos por esta, ele em simultâneo serve a seu diretor como forma de questionar e investigar o monumento feito à sua própria pessoa, um jogo de constatações que só ajuda a ressignificar de novo os seus principais valores e refundar o legado que está terminando de construir.

Nota: 7/10

quinta-feira, 22 de março de 2018

Crítica: A Melhor Escolha

Richard Linklater canaliza Hal Ashby em filme sobre a crise patriótica americana do pós-11 de setembro.

Por Pedro Strazza.

Como grande parte da produção recente de Richard Linklater (como Boyhood ou Jovens, Loucos e Mais Rebeldes), a premissa de A Melhor Escolha parte de um retorno ao passado que pode ser facilmente confundido com o gesto nostálgico ou de reverencialismo. Além de estar situado em um Estados Unidos do início dos anos 2000 e tratar de militares aposentados, o filme também é baseado em um livro que serve de continuação a A Última Missão, filme de Hal Ashby que rendeu uma Palma de Melhor Ator a Jack Nicholson em 1973 - e como Ashby é uma das influências do cinema de Linklater, é de se esperar um grau de homenagem implícito à obra.

Esta crença inicial de que o novo trabalho do cineasta será feito apenas por mero capricho, porém, aos poucos se dissipa na história, que acompanha os mesmos três soldados do filme original - ainda que com os nomes mudados - em uma nova jornada de carga emocional ainda maior. Se antes a missão do título se referia à tarefa dos soldados Buddusky (Nicholson) e Mulhall (Otis Young) em escoltar o cadete Meadows (Randy Quaid) à prisão, agora é Meadows - apelidado aqui de Doc (Steve Carell) - quem vai procurar os agora amigos Sal (Bryan Cranston, que assume o papel de Nicholson sob a mesma performance expansiva) e Mueller (Laurence Fishburne) para ajudá-lo a enterrar o filho, morto pelo inimigo enquanto servia na Guerra do Iraque.

Tanto A Melhor Escolha quanto A Última Missão são concebidos na mesma jornada de travessia e compartilham a temática maior do patriotismo americano, mas as dinâmicas por trás de seus três personagens não poderiam ser mais diferentes. Lançado próximo ao fim do conflito no Vietnã e com a ressaca moral da derrota militarista estadunidense já anunciada, o longa de Ashby usava muito da crise de identidade nacional e belicista para impulsionar sua desconstrução sobre o personagem de Meadows, que condenado à prisão por um crime bobo no fim mostrava estar aceitando o longo tempo na cadeia apenas por não saber o que era viver de verdade. A produção no fundo era outra das comédias do cineasta dotadas de forte peso dramático e pautadas em um protagonista fechado no próprio mundo, só que impulsionada pela conexão direta ao cenário no qual se situava.

Já esta sequência não-oficial está muito mais ligada às questões de revisionismo de contextos muito específicos ao qual seu diretor anda atrelado nos últimos anos (como os jocks de Jovens, Loucos e Mais Rebeldes), embora reaproveite muito deste equilíbrio entre comédia e drama para sua narrativa pelo viés da sátira - os superiores da hierarquia militar que surgem na tela, por exemplo, estão sempre gritando e sendo inflexíveis apenas porque podem. O longa volta a utilizar a figura de Meadows/Doc como protagonista maior da história (o que não deixa de ser natural, dado a premissa), mas sua atenção recai um pouco mais na dicotomia entre Sal e Mueller, cujos destinos na aposentadoria da vida militar geram dois opostos: enquanto o personagem de Cranston carrega o desencanto nacionalista americano na forma do proprietário de bar que tira sarro de tudo à sua volta, o Mueller de Fishburne traz a continuidade literal de uma crença convicta no sistema sob os trajes de padre que escolheu como profissão. Entre os dois há o Doc de Carell, cuja atuação conduzida na interiorização repercute de maneira silenciosa o dilema de fé instaurado pelo roteiro escrito por Linklater e o autor do livro, Darryl Ponicsan.

Mas por que um dilema de fé? Como em outros trabalhos do diretor, a resposta está intrínseca ao cenário, desta vez no espectro da invasão ao Iraque que paira como um fantasma invisível enquanto os três protagonistas fazem sua jornada para enterrar o filho de Doc no cemitério de sua cidade natal. Há uma crise de valores do patriotismo americano em A Melhor Escolha que nunca chega a ser escancarada como tema maior, uma abordagem que é preterida em prol de um olhar histórico distanciado ao qual a produção tem direito a pertencer - entre o fim do conflito no Iraque e a realização do longa são pelo menos seis anos de distância, afinal. Junto de Ponicsan, Linklater não se interessa muito de tratar ou purgar feridas deixada pelo 11 de setembro pelo filme, mas sim de usá-lo como veículo para enxergar pelos olhos da comunidade militar os sentimentos contraditórios criados pela tragédia e a decisão pela guerra novamente.

Neste viés, a grande tacada de gênio do diretor é a de colocar a história sob uma perspectiva geracional, inserindo à partir da metade um antigo amigo do morto (J. Quinton Johnson) para escoltar o caixão levado pelos três amigos. Longe de deslegitimar o drama da história e junto do tom de "comédia de idosos" e de camaradagem masculina ao qual o filme é intrinsecamente ligado, esta decisão ajuda a sobressair o caráter cíclico e ritualístico da história que é contada e frisar o valor familiar em torno de todas estas questões. É como se Linklater apontasse que a inexistência de uma resolução definitiva a este processo de dor e questionamento não por conta das falhas inerentes ao patriotismo como conceito (uma resolução que talvez fosse muito mais atraente a Ashby no contexto do Vietnã), mas porque estes altos e baixos do nacionalismo do país estão fadados a se repetirem continuamente como verdadeiros ciclos históricos - e nada explicita tanto esta afirmação do diretor quanto o momento em que os três veteranos visitam a casa da mãe do colega há muito tempo morto para contar a verdade sobre o passado distante e descobrem como a realidade já se dissolveu de novo no orgulho patriótico.

Nota: 8/10

quinta-feira, 1 de março de 2018

Projeto Flórida, Cartas Para um Ladrão de Livros e a relação entre os marginalizados e os holofotes

Às suas respectivas maneiras, documentário brasileiro e filme indicado ao Oscar proporcionam um registro similar do mainstream pelo olhar dos que estão de fora.

Por Pedro Strazza.

É no mínimo um contraste curioso, mas entre os filmes dispostos a chegar nas salas de cinema brasileiras e se aventurar neste fim de semana decisivo para o Oscar há pelo menos duas produções ligadas em caráter indireto aos caminhos que percorrem tamanho mundo permeado de celebridades e artistas. Estes dois lançamentos, embora situados em esferas muito diferentes, são situados em cenários à margem do sistema e habitados por personagens que, reduzidos à sobrevivência à parte do sistema, estão em contato constante com os restos dos restos deste luxo e pompa proporcionados pelos grandes estúdios americanos e produtores culturais. E o mais interessante desta conexão é que os dois cenários aqui retratados são totalmente distintos entre si.

Pois ainda que tratem da margem, as fronteiras físicas que separam Projeto Flórida e Cartas Para um Ladrão de Livros são muito claras. O primeiro, novo trabalho do diretor e roteirista Sean Baker e lembrado pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas na categoria de Melhor Ator Coadjuvante, acompanha a vida de algumas crianças que moram nos hotéis baratos dos arredores da cidade de Orlando, na Flórida, à margem da terra de sonhos e fantasias dos celebrados parques da Disney. O cineasta, que vinha explorando os recursos da câmera de celular em seus últimos trabalhos (entre eles o bastante elogiado e belo Tangerine), desta vez retorna na grande maioria do tempo a uma fotografia "tradicional", registrando as atividades dos menores enquanto eles fazem de todo um cenário difícil o seu playground.

De espiar a velha madame fazendo seu topless diário a irritar o gerente do complexo (Willem Dafoe), esses jovens liderados pela boca-suja Moonee (Brooklynn Prince) parecem viver não só nos cantos de um dos grandes centros do entretenimento mas também das próprias histórias. Suas brincadeiras, afinal, estão sempre entrando e saindo das narrativas protagonizadas pelos seus pais, que buscam de diferentes formas manter o "aluguel" de suas "casas" garantido para o mês. Neste sentido, a protagonista verdadeira da trama é Halley (Bria Vinaite), jovem mãe de Moonee que tenta fazer o mínimo possível para manter o lar e a filha, priorizando a diversão e o descanso a todo instante em detrimento das obrigações.

Cena de Cartas Para um Ladrão de Livros
Embora em uma estrutura um pouco mais convencional, esta narrativa do "olhar de fora" sobre a indústria também está presente em Cartas Para um Ladrão de Livros. O documentário dirigido pela dupla brasileira Caio Cavechini e Carlos Juliano Barros se propõe à contar a história de Laéssio Rodrigues de Oliveira, famoso ladrão de livros que foi parar na prisão quatro vezes nos últimos cinco anos depois de ter sido flagrado roubando páginas de publicações únicas e raríssimas de grandes bibliotecas nacionais.

Desenvolvido ao longo de todo este tempo, o longa é um trabalho de humanização da figura do protagonista e de alerta sobre o estado precário da conservação da História nacional, despindo Laéssio de sua imagem como meliante e situando no cenário maior do mercado negro de arte que encontra-se inserido nas elites do país. Tanto que, à partir de certo momento, o filme passa a focar seus interesses nas hipocrisias sistemáticas de diferentes entidades públicas e em como os grandes culpados nunca serão capturados - uma afirmação que inclusive é dita por um dos investigadores responsáveis pela prisão do jovem em certa altura da história.

Esta trama maior de Cartas Para um Ladrão de Livros o aproxima do também recente Todo o Dinheiro do Mundo (deve dar uma boa dobradinha ver o documentário seguido do filme de Ridley Scott sobre o antigo magnata do petróleo e colecionador compulsivo Jean Paul Getty), mas é no ato de repassar as origens de Laéssio que o documentário acaba encontrando um de seus traços mais interessantes. Nas entrevistas com o protagonista, conduzidas em diversas circunstâncias, o ladrão revela que entrou na vida de roubos por conta de sua obsessão por Carmem Miranda e seu desejo de possuir todas as imagens da cantora portuguesa. Segundo o próprio Laéssio, foi procurando nos mercados de pulgas e feiras de usados que ele em determinada altura se tornou um dos maiores detentores de registros fotográficos da atriz do países, tendo de fotos conhecidas até retratos raríssimos da celebridade.

O fascínio de Laéssio pela figura de Miranda, que é forte o suficiente para guiá-lo ao crime e é atribuído pelo documentário a um viés de ascensão social a qualquer custo (ele afirma depois que "não ter dinheiro é uma forma de prisão"), no fundo toca nesta mesma questão do poder da imagem provinda do entretenimento que tanto seduz a comunidade de Projeto Flórida. Fora as eventuais - e óbvias - diferenças regionais, as duas produções vê estes marginalizados como reféns de um sistema que tem na cultura o seu principal motor, seja nas artes das obras roubadas por Laéssio ou no entretenimento do mundo aparentemente doce e cor-de-rosa de Moonee e seus amigos. A imagem disfarça lugares quebrados e serve como escape maior a todas as condições insustentáveis de seus personagens.

Nesta lógica, a tragédia há de soerguer-se como único encerramento possível para estes arcos mesmos estes sendo tão distintos um do outro, uma medida ao qual os dois filmes honram arranjando saídas muito diferentes. No documentário, o constante retorno de Laéssio à prisão é tratada por Cavechini e Barros como a de um Prometeu brasileiro, sugerindo que o protagonista está para sempre condenado à posição de bode expiatório de uma teia de ilusões do qual ele não teceu e não faz parte. O ladrão é uma engrenagem menor confundida com o próprio motor, alguém que ousou desejar objetos e uma vida material que nunca lhe será disponibilizada.

Já o filme de Baker procura na própria fantasia o refúgio final de uma realidade de pura destruição, usando da amizade como meio para este caminho. O diretor volta a utilizar a fotografia pelo celular nos instantes finais para "salvar" Moonee da dura realidade que enfrenta, levando-a ao centro daquele mundo quando a garota está prestes a ser retirada dele e perder todas as bases de sua existência até ali. A resolução de Projeto Flórida, porém, está longe de suavizar os problemas apresentados; ela é na verdade a denúncia maior de toda a fragilidade de relações que ali se instaura, uma parecida ao do Cartas Para um Ladrão de Livros.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Crítica: Pantera Negra

Ryan Coogler direciona seu cinema de apropriação aos dramas de corte em filme sem grandeza dramatúrgica.

Por Pedro Strazza.

É um detalhe sutil, mas de muito efeito que Pantera Negra abra sua história em uma região pobre de Oakland do agora distante 1992. Mesmo que não se situe no palco central das rebeliões da época, é neste aceno rápido ao ano e estado de um dos maiores e mais violentos confrontos raciais da História dos Estados Unidos que o filme já toma para si as rédeas do contexto social em que se insere, assumindo do princípio este compromisso que a produção tem com a população negra neste ato simbólico de ser a primeira grande produção da hoje toda-poderosa Marvel Studios que é protagonizada e conduzida por cineastas negros.

Esta conotação entre simbologia, política e sociedade não é nem um pouco estranha ao diretor e roteirista Ryan Coogler, que já em Creed havia refeito a mitologia da franquia Rocky dentro da lógica das medidas de afirmação de posição da cultura negra e em Fruitvale Station mergulhava o espectador no cotidiano difícil das comunidades mais marginalizadas. Suas ambições com a adaptação das histórias do rei de Wakanda, porém, são muito maiores que os seus esforços bem sucedidos de ressignificação e assimilação dos trabalhos anteriores, adquirindo uma faceta um tanto quanto nobre de criar para o cenário uma nova classe de mitos, mesmo que à partir de elementos pré-estabelecidos.

Aos olhos do estúdio, essa decisão não poderia ser melhor. Se em todos os outros trabalhos a Marvel Studios prezou por um ecossistema interno e mais ou menos asséptico aos problemas externos, neste que é o seu 18° produto esta maior aderência à realidade proporciona à empresa um respiro de ineditismo à sua metodologia de entretenimento massificado, que vem sendo cada vez mais sentida pelo público nos últimos anos.

Pautado por estas questões, há de se valorizar de início a predisposição de Coogler em tornar a verve contextual de seu cinema em modus operandi máxima de Pantera Negra. Dos cenários futuristas ao perfil dos personagens, passando pela trilha sonora de Ludwig Göransson (alinhada com a curadoria musical dada pelo rapper Kendrick Lamar), tudo que circunda a cidade de Wakanda reflete esta noção de incorporação que o diretor busca traduzir às produções da Marvel. A medida traduz quase de imediato as intenções de representatividade propostas pelo longa: se no mundo o negro se encontra à margem, na realidade de Pantera Negra ele enfim pode ocupar posições centrais.

A força deste empoderamento é gigantesca, e é por estar consciente deste poder que o longa persegue aqui um dos gêneros mais tradicionais não só do cinema, mas das artes como um todo. Com base nas questões políticas e a própria deixa dada pelos acontecimentos de Capitão América - Guerra Civil, Coogler encena aqui um drama de corte dos mais tradicionais, centralizado nas disputas de poder geradas pela morte do rei de Wakanda T'Chaka (John Kani) e a ascensão de T'Challa (Chadwick Boseman) ao trono. O motor maior responsável por dar corpo a estas confrontações mora na ocupação de atores e atrizes negros nos principais papéis e na situação destes dramas em um contexto de origem africana, decisões que pelo menos a princípio soam ideais para potencializar todas as intenções da obra com suas raízes.

O que começa promissor, porém, vai se esgotando aos poucos perante uma estranha planificação dos momentos dramáticos do filme. Seja porque Coogler enfrenta algumas dificuldades com a escala (ao contrário de Creed e Fruitvale Station, Pantera Negra habita um cenário muito mais complexo e grandioso), com o CGI (a materialização de certas partes do mundo de Wakanda às vezes soam precárias e a ação falta em peso) ou com a própria fórmula pré-estabelecida do estúdio, a produção muitas vezes soa como se estivesse presa a elementos muito básicos de dramaturgia, que por sua vez parecem o capar de atingir os grandes momentos dramáticos necessários.

É um fenômeno curioso, pois embora o diretor e o seu co-roteirista Joe Robert Cole demonstrem na trama almejar personagens com múltiplas facetas no fim todos eles se revelam reduzidos a figuras deveras unidimensionais. Talvez o exemplo maior desta tendência more em Killmonger, que é vivido por Michael B. Jordan sob toda a aura de um vilão movido por traumas de perda claros mas depois acaba precisando ser justificado a todo custo pela trama como mal maior, algo que culmina em uma distorção pouco sutil. Se o antagonista parte como herdeiro negado de seu meio, sua trajetória termina confusa entre a aspiração à Malcolm X e a pose de mercenário enlouquecido em missão para desestabilizar o reinado que o agente da CIA branco vivido por Martin Freeman insinua.

Mais curioso, porém, é como todas estas complicações levam Pantera Negra a morar no pólo oposto ao do primeiro Thor, o outro exemplar de drama de corte que a Marvel Studios produziu nestes primeiros dez anos. Enquanto o longa dirigido por Kenneth Branagh compensava em dramaturgia aquilo que não tinha em contexto e ambientação - a Asgard fria e sem vida deve ter sido um dos maiores tormentos do estúdio na última década -, o filme de Coogler talvez precise se equilibrar demais em cima do cenário afrofuturista de Wakanda para desviar da falta de força das cenas de impacto. A comprovação desta tendência está no humor, característica primordial dos produtos Marvel e que em Wakanda surge naturalmente em alguns momentos e em outros mostra-se deslocada - e quando ela soa fora de tom, é justo no meio dos enfrentamentos e grandes diálogos da corte wakandense.

Nota: 6/10

sábado, 17 de fevereiro de 2018

Crítica: Lady Bird - É Hora de Voar

Grandes performances de Saoirse Ronan e Laurie Metcalf ancoram filme de Greta Gerwig sobre o abandono do ninho.

Por Pedro Strazza.

É uma prática comum em filmes voltados a adolescentes que o universo colocado à disposição dos personagens seja retratado quase como um fantasia de consumo desta idade ou - no pólo exatamente oposto - com todo o teor cru da "realidade". Pelo menos no imaginário estadunidense, onde foi popularizado nos anos 80 e é mantido até hoje como um dos subgêneros dominantes da produção nacional, os chamados coming of age gostam de se manter atrelados a uma destas esferas pre-concebidas, reduzindo diferentes ambientações ao clichê dos bairros suburbanos ou daqueles marginalizados. A estas obras interessa muito mais o drama em sua raiz, traduzido no conflito entre seus personagens que no geral, apesar dos diferentes gêneros e abordagens temáticas, resulta nos mesmos arcos de amadurecimento ou de emancipação do conforto do lar.

Dentro desta equação, Lady Bird - É Hora de Voar à princípio não parece ter muito à oferecer além da conversão destes arcos a uma ótica feminina, acompanhando a protagonista Lady Bird (Saoirse Ronan) enquanto ela realiza as tradicionais descobertas do sexo e de outros prazeres da juventude no começo da década de 2000. Esta aparente premissa superficial, porém, é somente a base para o longa da diretora e roteirista Greta Gerwig, cuja condução está menos atenta aos cacoetes tradicionais deste tipo de história que nos elementos que circundam a trama e se inscrevem no pacato cenário de Sacramento, palco do filme e também a cidade natal da cineasta.

Esta conexão de Gerwig com a região prevalece na produção como uma estrela-norte, mas não dentro da lógica nostálgica tradicional. De caráter semibiográfico, o longa assume do início uma noção de dualidade para sua estrutura, permeando relações e espaços sobre a ambiguidade de atração e repulsa que culmina na relação contraditória sentida pela protagonista com sua origem, que busca a todo custo estudar em Nova York mas também mostra aspirar certos desejos regionais, desde suas grandes mansões até amizades e amores com a elite da cidade. O clima quente da região ajuda a dar este ar receptivo comum a todos os espaços, mas é o olhar de Lady Bird que determina se este "calor" de fato está materializado - e um bom exemplo disso talvez esteja no contraste dos retratos do quarto do namorado interpretado por Timothée Chalamet antes e depois da cena da primeira transa.

Gerwig trabalha estas aflições com o contorno adocicado do típico produto adolescente contemporâneo, mas mantém alternado na narrativa as projeções do olhar de Lady Bird com a realidade dura do cenário. Neste sentido, é interessante observar como esta dualidade reverbera como contestação às fantasias da protagonista, seja nas limitações financeiras que insistem em prendê-la ao chão ou nas dores alheias que a atingem em diferentes níveis - se o trauma do padre responsável pelo grupo do teatro (Stephen Henderson) passa quase desapercebido por ela, a depressão do pai (Tracy Letts) há de revelar parte de seu egoísmo com a família. Os dois namorados presentes na trama, enquanto isso, são responsáveis por este de materialização e destruição dos desejos da personagem: o de Lucas Hedges oferece o conforto da vida rica na cidade, o de Chalamet dá a opção de viver "à margem" ridicularizando revoltado toda as concepções de ideal social propagadas pelos pais.

No centro de todos estes cenários e relações, quem rege tamanha ambiguidade é a relação de mãe e filha, o lógico maestro maior da obra. Encenado por Gerwig com naturalidade e foco nas reações das duas atrizes, os sucessivos conflitos de Lady Bird com Marion (Laurie Metcalf) pautam essa dicotomia nostálgica ao mesmo tempo que operam dentro dela - outro sinal desta dualidade quase simbiótica do filme -, pontuando momentos emocionais vividos pela protagonista (a formatura do colégio, a perda da virgindade) e propondo a ela novas situações dramáticas (a cisão no fim). A medida é feita para dar ao longa um eixo maior que o permita se desviar constantemente nas diferentes subtramas, mas acaba responsável aqui por canalizar todo o sentimento de contradição do qual a produção busca se apoiar.

É claro que existe uma natureza conservadora implícita em toda esta proposta emocional (no fundo a grande mensagem por trás do longa exprime um certo saudosismo eterno pelo ninho), mas é por desejar a duplicidade irracional deste sentimento que Gerwig torna seu filme tão especial e permanente em seus efeitos. Não à toa, a relação central de Lady Bird começa e termina em olhares subjetivos e incapazes de serem resolvidos em afirmações frontais, seja o da mãe que precisa abrir mão da filha ou da filha que precisa abrir mão da mãe e do lar - e há de se valorizar a potência dos trabalhos de Ronan e Metcalf nesta hora, pois seus olhares em suas respectivas últimas cenas no filme exprimem toda a dor emocional envolvida nestes processos tão diferentes e ao mesmo tempo tão similares.

Nota: 8/10

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Crítica: Três Anúncios Para um Crime

Martin McDonaugh busca enquadrar questões sociais americanas dentro de dinâmicas irlandesas em filme povoado de inadequações.

Por Pedro Strazza.

Em tempos de extrema polarização social, a premissa de Três Anúncios Para um Crime mira a princípio atiçar um barril de pólvora. Indignada com a condução da investigação da morte brutal de sua filha, uma mãe (Frances McDormand) resolve alugar três outdoors em uma estrada abandonada para questionar as ações do xerife (Woody Harrelson) e o porquê do culpado ainda não ter sido encontrado pelas forças da lei. Sua ação, porém, desperta a ira da população da cidade pois o mesmo xerife possui um câncer pancreático maligno, o que faz com que a maioria dos cidadães, incluindo aí um policial com histórico permeado de casos de racismo (Sam Rockwell), se virem contra a busca por justiça da mulher.

Junto de outros enfrentamentos pequenos e dispersos na narrativa, são estes conflitos interpessoais que logicamente hão de pautar o filme como um comentário nada discreto sobre as relações de ódio que prevalecem nas interações sociais hoje. Emerso do meio teatral irlandês e estabelecido na indústria por seu Na Mira do Chefe, o diretor e roteirista Martin McDonaugh em teoria usa de seu humor negro em chave dramática para fins mais nobres, intensificando o gesto teatral para abordar de vez as grandes questões que seu cinema ensaia desde o seu primeiro trabalho - o curta Six Shooter - e por consequência absorvendo com maior entusiasmo a influência de gênero que tem dos filmes dos irmãos Coen - sob certo olhar, Três Anúncios não deixa de ser uma versão (ainda) mais violenta do tipo de história contado pela dupla já há algumas décadas.

Seria um produto pronto com resultados garantidos (uma afirmação verdadeira considerando o sucesso da obra na temporada de premiações) se McDonaugh não repetisse aqui a formatação básica de seus filmes, impondo deficiências estruturais no roteiro e na direção que antes já davam claros sinais de desgaste. O diretor continua a ter uma dificuldade palpável de conciliar drama e comédia nas situações que encena, orbitando as duas sem nunca conseguir encontrar um ponto de equilíbrio ideal para tratar de questões às quais claramente não tem o mínimo tato para colocar no roteiro ou executar na direção. Sobram em Três Anúncios cenas de confrontação que se dispersam em tiradas sarcásticas e tentativas de humor arruinadas pela dramaticidade do momento, lideradas por uma escrita pouco sutil que tenta guia emocionalmente seu espectador a trancos a barrancos pelos eventos contados na história. O longa no fundo parece estar querendo ser sarcástico e compreensivo a todos os lados dispostos nas múltiplas confrontações, e essa indecisão torna-se um motor involuntário da obra.

O problema central do filme, porém, está nessa abordagem de supostas grandes questões, que desabam frente a uma sobreposição de cenários para lá de inadequada. Além do desequilíbrio de tom, McDonaugh também busca trazer de Six Shooter e Na Mira do Chefe algumas noções de honra e cumplicidade do cinema de máfia irlandês para dentro do cenário sulista que é palco para a história de Três Anúncios, forçando nos personagens as mesmas relações de violência que permeiam a esmagadora maioria destas produções. A medida vem para diferenciar o longa de esforços similares, mas no fim acaba por corromper qualquer alegoria posta em jogo pelo filme, cujo manejo das situações soa como dos mais equivocados possíveis.

Essa narrativa falha se faz notar ao longo da produção, mas se acentua com maior propriedade no ato final quando todas as confrontações geradas na história passam a ser resolvidas com meros pedidos de desculpas e os dois protagonistas maiores - os personagens de McDormand e Rockwell - são postos em uma trajetória de reconciliação moral perante um inimigo maior. Neste momento explica muito que McDonaugh tenha escrito o roteiro de Três Anúncios oito anos atrás, pois se antes esta possibilidade de reunião das partes era tida como possível por alguns ela decididamente não se verifica nos tempos atuais, onde esta divisão de posicionamentos se converteu em pura intolerância. O filme, porém, mantém-se adepto do perdão maior, de uma busca por justiça cega capaz de unir grupos mesmo a medida não fazendo o mínimo sentido.

O que sobra então a Três Anúncios Para um Crime, além das "grandes" atuações (que no fundo estão tirando leite de pedra neste ato de conferir a grandiosidade a momentos inverossímeis) e a aura de prestígio que lhe foi conferida em sua trajetória? A mensagem equivocada sugere um conforto ingênuo frente ao ódio de tempos recentes, um alento de que sim, mesmo brigando no fundo somos todos irmãos de armas frente ao que "de fato" interessa. Mas é como o final bem sugere, é melhor manter misteriosa a identidade deste suposto vilão maior para impedir quaisquer novos questionamentos.

Nota: 4/10

domingo, 11 de fevereiro de 2018

Crítica: Cinquenta Tons de Liberdade

Entregue aos dilemas do matrimônio, terceiro episódio assume o viés de produção B mas mantém-se apegada aos problemas de sempre.

Por Pedro Strazza.

Nascido na polêmica e criado na banalidade, a franquia Cinquenta Tons teve uma trajetória um tanto quanto insossa na sua previsibilidade. A adaptação dos livros da escritora E.L. James eram desde o seu anúncio contaminados pelo caráter extremamente problemático do conteúdo das obras, que de fanfics eróticas de Crepúsculo se tornaram em um fenômeno best seller no mundo literário, nutridos do relacionamento abusivo sofrido por Anastasia Steele nas mãos do milionário Christian Grey. Quem acabou com a bomba-relógio nas mãos foi o primeiro filme, cuja inabilidade para lidar com tamanhas questões de problematização levaram a série a uma remodelação criativa completa e ao caminho (talvez esperado) da ridicularização, um rumo tomado como tendência narrativa pelo segundo episódio.

O curioso dessa medida, porém, foi a disposição do diretor James Foley e do roteirista Niall Leonard para adotar este ridículo como DNA da franquia. Se Cinquenta Tons de Cinza foi duramente criticado pela péssima qualidade de seu material, os cineastas tornaram as continuações Cinquenta Tons Mais Escuros e este Cinquenta Tons de Liberdade em obras conduzidas pelo mal gosto, assumindo a precariedade dramatúrgica como blindagem e guiando o relacionamento abusivo de seus protagonistas sob a embalagem de um produto B de "alta" "qualidade", agora um conto de fadas de um amor sadomasoquista com estética de produto televisivo. Neste sentido, as duas sequências se comportam como um díptico bastante desconjuntado dentro da trilogia, um imperado por estas propensões recém-adquiridas de encarar o verdadeiro novelão do roteiro sob o olhar honesto de produção softcore de TV a cabo e cujo grande ponto de transformação reside no casamento de Anastasia (Dakota Johnson) e Christian (Jamie Dornan).

Ainda que seja restrito aos limites da sanidade (ou do senso de "correto" de seus produtores), é por este ângulo de "pornô para patrícios" que o terceiro episódio parece ter impulsionado todo o drama em torno do relacionamento dos dois personagens. Despido dos choques de primeiro impacto e ressignificação dos anteriores, Cinquenta Tons de Liberdade parece enfim estar livre para abraçar a sua vertente B e executar sua história de dominações moralmente questionáveis e falsas libertações com a propriedade purista de um entretenimento de baixo escalão. E o tema é bastante apropriado considerando o público pagante: o casamento, este eterno signo do fim do amor.

A posição central que o matrimônio assume na história não deixa de ser adequada à franquia, que pautada do início pelas "leis" (haja aspas para definir isso) de submissão das relações amorosas estava fadada a encarar esta instituição como o palco final do que é uma grande crise de relacionamento. As forças de atração e repulsão que movem Anastasia em direção a Christian, antes voltadas exclusivamente à violência de seus impulsos sexuais, são transferidas aqui para dentro das dinâmicas de um casal recém-casado, tratando o sexo "selvagem" como alegoria maior para o caminho cheio de choques do amor após sua oficialização. Se a paixão fervente dos protagonistas começa intensa, emendando uma montagem musical atrás da outra - devem acontecer umas cinco no primeiro ato - para repassar com velocidade sua lua-de-mel, a narrativa desenvolvida por Foley aos poucos entrega a vida do casal de volta ao cotidiano e, com ele, os problemas da vida comum - e por "vida comum" há de se entender "dramas de gente rica".

Não existe maior temor a qualquer relação amorosa padronizada, afinal, que o conforto do matrimônio e a revelação da permanência de hábitos idiossincráticos individuais que ameaçam a unidade do casamento, e com Christian e Anastasia isto não será diferente. O lado divertido desta inevitável DR conjugal, porém, é a maneira como Cinquenta Tons de Liberdade busca materializar isso das formas mais lúdicas dentro de sua abordagem dominada pelo mal gosto: se os dois personagens brigam, a tentativa fracassada da esposa em animar o marido no banho sinaliza o afastamento; quando uma "interesseira" é afastada à força por Anastasia, uma perseguição de carros de luxo há de culminar em transa; após um pesadelo, nada melhor que um sexo com sorvete - uma cena, bom demarcar, dentro de uma fuga para as montanhas afim de "reavivar o romance". O ápice desta lógica é a subtrama criminal, que não só parece muitas vezes estar à parte de tudo na trama como vem para servir de clímax à aceitação de Christian do fim de sua "selvageria carnal" por conta do advento de um... bebê.

Se fosse realizado apenas sobre estes grandes choques conjugais trajados de thriller B, Cinquenta Tons de Liberdade talvez conseguisse se elevar ao entretenimento baixo ao qual tanto aspira. O que o priva de alcançar tamanha meta é que, ao invés de se focar no casal em caráter igualitário, este último episódio no fundo ainda mantém como temática maior a tal desconstrução do "monstro interior" de Christian assistida por Anastasia, que por conta deste processo passa por uma jornada de "libertação sexual" - incluindo aí o desfecho da saga - em nada verdadeira. Não deixa de ser o signo maior do conjunto de sinais de mal gosto espalhados por Foley ao longo da trama, mas entre montagens pop, relações sexuais melosas banhadas pelo luar e revelações de nomes à altura de sua cafonice (a mãe de Christian se chama Ella?Sério?), este talvez seja o mais insosso por conta de seu caráter restritivo.

Nota: 4/10

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Crítica: A Forma da Água

Guillermo del Toro vai aos Estados Unidos da Guerra Fria para mais um desfile de referências.

Por Pedro Strazza.

Embora só agora tenha se manifestado como tendência nas temporadas de premiações, não é de hoje que a indústria cinematográfica estadunidense vê a própria História como meio para a glorificação de sua existência. Nascida no espetáculo e criada sob uma classe de prestígio, Hollywood é desde os anos 50 um local consagrado na forte reputação da "terra onde os sonhos se realizam", uma espécie de Disneylândia da realidade que é capaz de transformar o cidadão comum em uma celebridade multimilionária com um estalar de dedos. Sob certo ângulo, o cinema hollywoodiano é um prosseguimento da lógica das promessas de riqueza da expansão para o Oeste (que não por um acaso foi tornado em um de seus cenários clássicos): se você está infeliz com sua vida, este lugar mágico sem dúvida há de solucionar todos os seus problemas.

É claro que esta noção não demora a se comprovar tão falsa quantos os cenários dos sets dos estúdios, e é em cima deste choque de expectativas que grande parte da produção atual voltada ao tema funciona. Os novos (e celebrados) produtos pautados na visão sobre a indústria do entretenimento, porém, se diferem de seus antecessores por trazerem um ponto de vista exterior a todas as engrenagens da máquina e reconhecerem em parte os atrativos do cinema hollywoodiano, feitos por cineastas que de um jeito ou de outro observam este problemático oásis do lado de fora. Se antes este tipo de obra era concebido por diretores com décadas de trabalho nos estúdios - o que gerava por sua vez todo tipo de comentário ácido, desde Crepúsculo dos Deuses à Pânico 3 - a nova onda ainda é relativamente jovem dentro de Hollywood e prefere muito mais abordar as contradições desta indústria da arte.

Isso acaba valendo também para produções mais distantes do subgênero como A Forma da Água, filme de Guillermo del Toro que se princípio parece desvinculada do tema logo mostra-se bastante afiliada a ele. O longa, centrado numa história de amor entre uma jovem faxineira muda (Sally Hawkins) e uma criatura aquática aos moldes do Monstro da Lagoa Negra de 1954 (Doug Jones),  não se ambienta na Los Angeles dos anos 60, mas carrega esta disparidade entre sonho e real impresso em cada penduricalho do cenário retrô de sua Baltimore e serve de temática central ao conto de horror trajado de romance aqui disposto.

O que o cineasta mexicano busca encenar no longa não deixa de ser mais uma de suas paradas fabulescas e reverencialistas, no qual ele desfila toda a sua paixão por um gênero e múltiplos filmes inseridos nestes. Tal qual os antecessores Círculo de Fogo e A Colina Escarlate, A Forma da Água se aproveita muito do alto orçamento para se banhar em todo o tipo de referência do diretor, que desta vez foca suas atenções sobre o glamour da Hollywood clássica e os terrores de monstro norte-americanos tradicionais. O curioso da produção em relação a este aspecto é a frontalidade com a qual del Toro assume suas paixões desta vez, uma espécie de exagero estilístico que chega ao cúmulo de colocar um cenário em cima de um cinema e parar a narrativa para reproduzir números musicais.

Se esta decisão pelo pictórico por um lado intensifica a propensão plástica do cinema do mexicano (uma noção que só se fortalece no casamento sempre equilibrado entre efeitos digitais e práticos da filmografia do cineasta), ela também ajuda a produção a elevar o seu jogo de contradições ao nível do devaneio. Estabelecido no contexto da crise da normalidade dos subúrbios americanos, o longa contradiz constantemente estes esforços da padronização perante a lógica de seus personagens, que de diferentes formas são reduzidos pelo próprio cenário onde tentam se inscrever, desde a protagonista muda de Hawkins aos arcos dos coadjuvantes representantes de minorias vividos por Octavia Spencer e Richard Jenkins - mesmo o vilão interpretado por Michael Shannon tem seu mal justificado pela pressão do sistema sob sua identidade tradicional.

O que A Forma da Água busca neste sentido é um contraste da propaganda do american way of life com a realidade da Guerra Fria, um ambiente que por um lado queria a aniquilação da "ameaça comunista" e por outro era muito restrito nas imposições familiares que impunha sobre seus cidadãos. Alinhado a esta narrativa de exageros, esta proposta termina sendo movida por impulsos emocionais no filme, que se em alguns momentos sabe como direcionar estas batidas a seu favor (a relação entre os personagens de Hawkins e Jenkins, por exemplo, rende uma dramaturgia forte) em outros mostra-se um tanto quanto perdido - em especial em relação a toda a paranoia do período, oscilando entre contexto e mecanismo de roteiro sem nunca se decidir.

É uma pena, então, que del Toro termine rendido à própria nostalgia de sua obra, pois ainda que estes conflitos do emocional sejam responsáveis pelos melhores momentos do longa eles são responsáveis por levá-lo a uma trilha sentimentalista capaz de fazer a produção tropeçar repetidas vezes no próprio raciocínio. No fim, este olhar "de fora" que o diretor traz ao filme soa como uma ampla apologia inocente a Hollywood no reconhecimento de seus problemas mas no contínuo (e insistente) fascínio por sua "magia", tal qual a criatura que a certa altura da trama é encontrada no cinema hipnotizado com a tela gigante da sala e as histórias contadas nela.

Nota: 7/10