quinta-feira, 1 de março de 2018

Projeto Flórida, Cartas Para um Ladrão de Livros e a relação entre os marginalizados e os holofotes

Às suas respectivas maneiras, documentário brasileiro e filme indicado ao Oscar proporcionam um registro similar do mainstream pelo olhar dos que estão de fora.

Por Pedro Strazza.

É no mínimo um contraste curioso, mas entre os filmes dispostos a chegar nas salas de cinema brasileiras e se aventurar neste fim de semana decisivo para o Oscar há pelo menos duas produções ligadas em caráter indireto aos caminhos que percorrem tamanho mundo permeado de celebridades e artistas. Estes dois lançamentos, embora situados em esferas muito diferentes, são situados em cenários à margem do sistema e habitados por personagens que, reduzidos à sobrevivência à parte do sistema, estão em contato constante com os restos dos restos deste luxo e pompa proporcionados pelos grandes estúdios americanos e produtores culturais. E o mais interessante desta conexão é que os dois cenários aqui retratados são totalmente distintos entre si.

Pois ainda que tratem da margem, as fronteiras físicas que separam Projeto Flórida e Cartas Para um Ladrão de Livros são muito claras. O primeiro, novo trabalho do diretor e roteirista Sean Baker e lembrado pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas na categoria de Melhor Ator Coadjuvante, acompanha a vida de algumas crianças que moram nos hotéis baratos dos arredores da cidade de Orlando, na Flórida, à margem da terra de sonhos e fantasias dos celebrados parques da Disney. O cineasta, que vinha explorando os recursos da câmera de celular em seus últimos trabalhos (entre eles o bastante elogiado e belo Tangerine), desta vez retorna na grande maioria do tempo a uma fotografia "tradicional", registrando as atividades dos menores enquanto eles fazem de todo um cenário difícil o seu playground.

De espiar a velha madame fazendo seu topless diário a irritar o gerente do complexo (Willem Dafoe), esses jovens liderados pela boca-suja Moonee (Brooklynn Prince) parecem viver não só nos cantos de um dos grandes centros do entretenimento mas também das próprias histórias. Suas brincadeiras, afinal, estão sempre entrando e saindo das narrativas protagonizadas pelos seus pais, que buscam de diferentes formas manter o "aluguel" de suas "casas" garantido para o mês. Neste sentido, a protagonista verdadeira da trama é Halley (Bria Vinaite), jovem mãe de Moonee que tenta fazer o mínimo possível para manter o lar e a filha, priorizando a diversão e o descanso a todo instante em detrimento das obrigações.

Cena de Cartas Para um Ladrão de Livros
Embora em uma estrutura um pouco mais convencional, esta narrativa do "olhar de fora" sobre a indústria também está presente em Cartas Para um Ladrão de Livros. O documentário dirigido pela dupla brasileira Caio Cavechini e Carlos Juliano Barros se propõe à contar a história de Laéssio Rodrigues de Oliveira, famoso ladrão de livros que foi parar na prisão quatro vezes nos últimos cinco anos depois de ter sido flagrado roubando páginas de publicações únicas e raríssimas de grandes bibliotecas nacionais.

Desenvolvido ao longo de todo este tempo, o longa é um trabalho de humanização da figura do protagonista e de alerta sobre o estado precário da conservação da História nacional, despindo Laéssio de sua imagem como meliante e situando no cenário maior do mercado negro de arte que encontra-se inserido nas elites do país. Tanto que, à partir de certo momento, o filme passa a focar seus interesses nas hipocrisias sistemáticas de diferentes entidades públicas e em como os grandes culpados nunca serão capturados - uma afirmação que inclusive é dita por um dos investigadores responsáveis pela prisão do jovem em certa altura da história.

Esta trama maior de Cartas Para um Ladrão de Livros o aproxima do também recente Todo o Dinheiro do Mundo (deve dar uma boa dobradinha ver o documentário seguido do filme de Ridley Scott sobre o antigo magnata do petróleo e colecionador compulsivo Jean Paul Getty), mas é no ato de repassar as origens de Laéssio que o documentário acaba encontrando um de seus traços mais interessantes. Nas entrevistas com o protagonista, conduzidas em diversas circunstâncias, o ladrão revela que entrou na vida de roubos por conta de sua obsessão por Carmem Miranda e seu desejo de possuir todas as imagens da cantora portuguesa. Segundo o próprio Laéssio, foi procurando nos mercados de pulgas e feiras de usados que ele em determinada altura se tornou um dos maiores detentores de registros fotográficos da atriz do países, tendo de fotos conhecidas até retratos raríssimos da celebridade.

O fascínio de Laéssio pela figura de Miranda, que é forte o suficiente para guiá-lo ao crime e é atribuído pelo documentário a um viés de ascensão social a qualquer custo (ele afirma depois que "não ter dinheiro é uma forma de prisão"), no fundo toca nesta mesma questão do poder da imagem provinda do entretenimento que tanto seduz a comunidade de Projeto Flórida. Fora as eventuais - e óbvias - diferenças regionais, as duas produções vê estes marginalizados como reféns de um sistema que tem na cultura o seu principal motor, seja nas artes das obras roubadas por Laéssio ou no entretenimento do mundo aparentemente doce e cor-de-rosa de Moonee e seus amigos. A imagem disfarça lugares quebrados e serve como escape maior a todas as condições insustentáveis de seus personagens.

Nesta lógica, a tragédia há de soerguer-se como único encerramento possível para estes arcos mesmos estes sendo tão distintos um do outro, uma medida ao qual os dois filmes honram arranjando saídas muito diferentes. No documentário, o constante retorno de Laéssio à prisão é tratada por Cavechini e Barros como a de um Prometeu brasileiro, sugerindo que o protagonista está para sempre condenado à posição de bode expiatório de uma teia de ilusões do qual ele não teceu e não faz parte. O ladrão é uma engrenagem menor confundida com o próprio motor, alguém que ousou desejar objetos e uma vida material que nunca lhe será disponibilizada.

Já o filme de Baker procura na própria fantasia o refúgio final de uma realidade de pura destruição, usando da amizade como meio para este caminho. O diretor volta a utilizar a fotografia pelo celular nos instantes finais para "salvar" Moonee da dura realidade que enfrenta, levando-a ao centro daquele mundo quando a garota está prestes a ser retirada dele e perder todas as bases de sua existência até ali. A resolução de Projeto Flórida, porém, está longe de suavizar os problemas apresentados; ela é na verdade a denúncia maior de toda a fragilidade de relações que ali se instaura, uma parecida ao do Cartas Para um Ladrão de Livros.

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