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domingo, 31 de dezembro de 2017

O Cinema em 2017: Melhores do Ano

Os melhores filmes do ano e algumas considerações finais sobre o ciclo que está para se encerrar.

Por Pedro Strazza.

Se 2017 foi o ano das tensões, com verdadeiros choques acontecendo em todos os campos do pensar e seções do cotidiano, sem dúvida o cinema não se concebeu como exceção. A lógica do enfrentamento prevaleceu desde os primeiros meses do ano e manteve-se como força motora do debate no segundo semestre, nunca perdendo o passo enquanto todo tipo de conflito se instaurava envolvendo a sétima arte.

Foi um ano que começou com o Oscar empreendendo mil e uma reviravoltas até o ápice com a entrega equivocada do prêmio de Melhor Filme a La La Land - Cantando Estações ao invés de Moonlight - Sob a Luz do Luar e que terminou embalado na onda de denúncias de assediadores e estupradores em Hollywood, levando para o além as carreiras de homens antes poderosos na indústria do entretenimento estadunidense como Harvey Weinstein e Kevin Spacey. 2017 foi o ano também do questionamento da representação das minorias no cinema, com Vazante e Zama se tornando centro de uma briga explosiva no meio do Festival de Brasília e Detroit em Rebelião sendo duramente criticado pelos meios de comunicação americanos por sua representação do negro.

No Festival de Cannes, estourou a briga do streaming com o circuito exibidor, com o festival instituindo a regra de só filmes com garantia de exibição no circuito comercial francês poderem participar da competição pela Palma de Ouro. O site agremiador de notas Rotten Tomatoes, enquanto isso, se viu no centro de uma polêmica gigantesca envolvendo a sua classificação dos filmes como apenas ruins e ótimos, uma dicotomia que terminou 2017 sob julgamento severo conforme foram reveladas manobras de grupos conservadores para derrubar a nota do público do novo Star Wars apenas porque o filme ameaçava uma suposta ordem natural das coisas.

Nem mesmo a produção cinematográfica do ano escapou deste ar de confrontação, pois as já acaloradas discussões entre cinéfilos foram levadas à temperatura máxima com a estreia de Mãe! e uma divisão radical entre aqueles que odiavam e os que amavam o novo filme de Darren Aronofsky. E no fim do ano, quando tudo parecia se acalmar, o debate sobre a validade do retorno de Twin Peaks como elegível às listas de fim de ano elevou os ânimos das pessoas mais uma vez.

Chegou-se até a estourar um confronto físico em uma das sessões da 41° Mostra de São Paulo, com direito a presença da polícia na sala de cinema!

Foi um clima de caos genuíno que se instalou no terreno da sétima arte, um que não se via manifestar desta forma já há muito tempo. Sob este clima de tensões e polarizações, deste "ame ou odeie" perigoso, o debate nunca foi tão importante para manter em vista o posicionamento de seus arguidores, uma determinação de espaços que passa longe da questão do "você está do lado de lá ou de cá?" e que reafirma a nossa humanidade perante os problemas do mundo. Nós podemos errar, mas é preciso reconhecer a validade de nosso erros e resolver o como proceder à partir disso.

É necessário esclarecer todo este cenário antes de partirmos para mais um Melhores do Ano porque esta lista no fim das contas mostra ser regida inconscientemente a este estado instável do mundo e do cinema. Cada uma das escolhas que compõe os 25 melhores filmes de 2017 mostra ter sido impactada por este tremores do debate, refletindo uma ou duas ou várias (ou nenhuma, é possível) destas questões em seu cerne estrutural. Foi um ano cheio de reviravoltas e de mudanças de julgamento, passos que tornam surpreendente algumas das produções presentes na lista.

Antes de prosseguirmos, algumas observações:

- Mantendo o que foi estabelecido em 2015, a lista deste ano põe em destaque 25 produções de forma a abranger um número significativo de filmes que ao meu ver marcaram este 2017 que se vai;

- O critério adotado para definir se este ou aquele filme entrou na lista, porém, mudou: agora, além dos filmes que estrearam no circuito exibidor das salas de cinema brasileiras e que foram produzidos nos últimos cinco anos, passam a contar também as produções originais e de outros estúdios deste ano que a Netflix colocou em seu catálogo. É uma medida provisória para dar conta de incluir esses produtos cinematográficos na lista, pois o canal de streaming indubitavelmente se tornou também um distribuidor chave da produção cinematográfica do ano aos olhos do público, lançando filmes que poderiam muito bem ter passado nas telonas;

- Dito isso, os filmes do catálogo da Netflix incluídos no ranking são: "A Babá", "Bright", "Creep 2", "Death Note", "Five Came Back", "Jim and Andy: The Great Beyond – Featuring a Very Special, Contractually Obligated Mention of Tony Clifton", "Jogo Perigoso", "Os Meyerowitz - Família Não se Escolhe", "Nossas Noites", "Okja", "War Machine";

- Mantendo o legado de 2015 em perspectiva, há algumas boas notícias, ainda que pequenas. Depois de ocuparem dois espaços na lista do ano passado, o número de diretoras presentes no Melhores do Ano cresceu para três, indo para sete se considerar o top 50; no campo do protagonismo feminino, porém, o número diminuiu para dez.

Posto tudo isso, vamos à lista. MAS ANTES há de se fazer uma pequena (e ao mesmo tempo estratosférica) menção honrosa:

Hors-Concours: Twin Peaks - The Return, de David Lynch

O retorno de Twin Peaks em 2017 tem absolutamente todos os motivos para não estar no Melhores do Ano (ele não é um filme propriamente dito, foi desenvolvido para a TV e não foi exibido no circuito de exibição brasileiro ou produzido pela Netflix, só para citar alguns exemplos), mas ao mesmo tempo seria um crime não destacar de alguma maneira a enlouquecedora produção audiovisual de David Lynch. Depois de se "aposentar" do cinema em 2006 e lutar por mais de um ano com o Showtime para obter total controle criativo sobre o produto final, o diretor entregou junto do roteirista Mark Frost uma das obras audiovisuais mais cabulosas e revolucionárias da última década. Twin Peaks - The Return vai além do mero revival da série homônima do começo dos anos 90 e transcende até a significação de série ou filme; é uma obra-prima, que serve tanto como retrato surrealista da decadência estadunidense, uma extrapolação sensorial quase apocalíptica do sentimento pessimista que tomou de assalto o novo século e suas gerações e um avanço notável da linguagem cinematográfica e da percepção que se tem sobre a televisão. Independente da polêmica discussão que se deu sobre The Return ser uma série ou um filme neste fim de ano, um fato permanece incontestável: depois destes dezoito episódios, nada no meio audiovisual permanecerá o mesmo.

Posto isso, vamos aos Melhores do Ano:

25) Em Ritmo de Fuga

Em Ritmo de Fuga é o filme mais metódico da carreira de Edgar Wright até o momento. Se em seus outros (ótimos) trabalhos o diretor se entregava a um caos quase espetacular regido por suas referências e montagem extremamente dinâmica, aqui ele reduz o hiperdinamismo a uma velocidade mais adequada para fazer uma história de assalto pautada pelo ritmo, um musical nada ortodoxo onde o balé acontece com os carros nas diversas perseguições, conflitos e tiroteios do roteiro. É uma proposta até simples que em outros casos poderia dar em uma produção bem contida em suas pretensões, mas a maneira como Wright a executa pensando em suas referências culturais torna o filme pulsante em seus gestos e caprichos estéticos. É um banho de juventude sincero, que faz menção a longas de perseguição de carro do final dos anos 60 e Monstros S.A. com a mesma paixão e claramente se diverte com isso.

24) Resident Evil 6 - O Capítulo Final

Paul W.S. Anderson já havia chegado a um glorioso ápice de sua carreira dentro da franquia Resident Evil com o quinto capítulo, onde ele desconstruiu seu cinema a seus valores essenciais e mais puros. Com este O Capítulo Final, que como bem indica o título serve por enquanto de fim à série, o cineasta buscou impulsionar sua metodologia a novos rumos, aliando-se ao montador Doobie White afim de alavancar sua estrutura labiríntica e de inspirações nos games para um status hiperdinamizado. Justapondo esta narrativa com o seu retorno à lógica de ação dentro do horror claustrofóbico e alimentado por uma dramaturgia responsável por dar liga a toda essa loucura, Anderson faz de Resident Evil 6 um trabalho de ambições curiosas mas que nunca abandona a identidade formada por ele para a franquia, ditando pelo movimento relações singelas entre o perfeito e o imperfeito dentro do combate final entre Alice e a corporação Umbrella.

23) A Trama

Quase dez anos depois de ganhar Cannes com seu Entre os Muros da Escola, Laurent Cantet retorna uma vez mais aos seus grupos de jovens com A Trama, filme que também traz em suas estranhas alguns reflexos dos rumos políticos da França de hoje. Mas ainda que o palco esteja armado para um confronto de posições entre uma professora liberal e um aluno seduzido por movimentos ultra-conservadores no meio de um workshop, o longa evita o caminho fácil da alegorização de seus tempos; o interesse maior de Cantet está no descompasso geracional entre seus personagens, que aos poucos se assume como um diagnóstico subentendido desta crise ideológica vivida pelo país. É um estudo difícil, mas que rende discussões fascinantes ao diretor e seu público.

22) Paterson

Depois de adentrar pela fragilidade da imortalidade em 2014 com Amantes Eternos, o "papa" do cinema independente estadunidense Jim Jarmusch volta seus olhos ao ordinário com Paterson. Quase uma elegia ao homem comum, o longa protagonizado por Adam Driver é outro trabalho do diretor que está em busca de signos capazes de curar as feridas da sociedade norte-americana nesses anos posteriores à crise de 2008, encontrando-os agora nos pequenos hábitos e rotinas a serem eternizados pelas delicadas palavras de seu protagonista, um motorista de ônibus que é também poeta. Dotado de certo aspecto onírico, Paterson é sincero em seu otimismo acerca da superação dos pecados americanos.

21) Logan Lucky - Roubo em Família

Outro cineasta que resolveu ir atrás de soluções ao sentimento pós-crise dos Estados Unidos (e que curiosamente também contou com a ajuda de Adam Driver) foi Steven Soderbergh, de volta ao cinema depois de uma breve aposentadoria. Mas se Paterson busca a cura na rotina, Logan Lucky vai de fininho se aliar aos laços comunitários enquanto se faz como (e é) um dos trabalhos mais despretensiosos de seu diretor. Dentro desta lógica de desambição, porém, Soderbergh encontra uma purgação de pessimismo na simpatia que desperta com e entre seus personagens, incluindo aí a belíssima cena do concurso de talentos do colégio com a filha do personagem de Channing Tatum cantando John Denver, esse ícone americano que frequentou o cinema assiduamente em 2017.

20) Personal Shopper

Misto de suspense de perseguição com drama de luto, o novo filme de Olivier Assayas é no mínimo estranho em suas pretensões. Capitaneado por uma forte atuação de Kristen Stewart, a produção é uma salada de narrativas que muitas vezes soa como um mero exercício de intercalação de gêneros inusitado, mas é por meio das idas e vindas entre o sobrenatural e a realidade que o longa aos poucos vai estabelecendo relações de sofrimento que se complementam, paralelos entre as duas histórias contadas que no fim se revelam assustadoramente muito similares em suas particularidades. Personal Shopper é mais um desses filmes recentes que tratam das feridas do emocional como impossíveis de serem superadas, mas é a maneira como ele processa a dor tradicional a este tipo de obra que chama tanto a atenção para si.

19) Divinas Divas

Da safra de documentários que passaram este ano pelos cinemas brasileiros e se mostraram dispostos a realizar o seu próprio retrato singelo de um grupo muito específico, o Divinas Divas de Leandra Leal foi talvez aquele que tenha sido mais certeiro. E isso não ocorre apenas por conta da grande simpatia de suas personagens, parte da primeira geração de artistas travestis do país: ligada de maneira íntima à história dessas pessoas graças ao avô, que comandava um dos teatros onde essas atrizes tinham a possibilidade de trabalhar, Leal realiza um trabalho de intimidades muito difícil, colocando o seu espectador em contato frontal com suas entrevistadas ao mesmo tempo que evita qualquer tipo de auto-congratulação (para não dizer puxação de saco) sobre sua família. Dotado de uma ternura estimulante, o filme faz do seu palco uma homenagem sincera a essas artistas, donas de uma trajetória única dentro da narrativa de nosso próprio país.

18) Silêncio

Há décadas em planejamento, a adaptação do livro de Shusaku Endo pelas mãos de Martin Scorsese enfim chegou às telonas em 2017 e entregou toda a potência que prometia. Invertendo o direcionamento da obra literária (se lá era a temática da religião que impulsionava uma análise do contexto histórico, aqui é o contrário), o celebrado cineasta realiza mais um de suas produções sobre as instabilidades da fé, se alimentando das dúvidas de seu protagonista que entra numa verdadeira espiral de sofrimento capaz de fazê-lo questionar suas convicções. Mas se em outros trabalhos similares do diretor mirava-se uma reafirmação de valores, em Silêncio Scorsese se rende à indeterminação como moral final, uma atitude que potencializa seu cinema a novas alturas.

17) La La Land - Cantando Estações

A princípio uma grande homenagem ao gênero do musical e uma carta de amor asséptica a Los Angeles, o suave La La Land - Cantando Estações a bem da verdade funciona pela reafirmação de antigos valores que realiza em um cenário contemporâneo. Em meio ao seu desfile de cores e danças, o filme de Damien Chazelle parece ressuscitar o antigo sonho americano dentro da lógica individualista e extremamente egoísta dos tempos atuais, uma atitude que se por um lado gerou todo tipo de posicionamento de seu público (um efeito responsável por tirar o Oscar de Melhor Filme de suas mãos nos segundos finais do segundo tempo) também reflete as contradições por trás das consequências da busca pelo sucesso. É de angústias e questões mal resolvidas, inclusive, que o número final do filme se baseia, executado sob uma forma onírica destinada a se dissipar em um último gesto de adeus.

16) Mulheres do Século 20

Mulheres do Século 20 é um literal estudo dos choques geracionais, uma literalidade presente até na definição "literal" com sua bibliografia adjacente que pulsa na tela em determinados momentos. Ainda que o protagonista seja um garoto, o verdadeiro interesse do diretor Mike Mills está no contato das diferentes mulheres em torno deste homem, uma atitude que parece desvendar a mitologia do feminino que suporta o masculino mas no fundo revela as transformações de um século pela perspectiva delas. Annette Bening, Greta Gerwig e Elle Fanning estão fantásticas e as cenas de conflito ditadas por elas rendem momentos dignos do sublime - em especial a maravilhosa cena do jantar e o "menstruação".

15) Uma Mulher Fantástica

Novo produto de um certo realismo mágico do cinema latino-americano, o Uma Mulher Fantástica de Sebastián Lelio aposta no poder da metáfora para construir uma história de opressão por pequenos atos. É da história de luto e enfrentamento da transexual Marina (Daniela Vega, em atuação espetacular) que o cineasta chileno constrói as mais belas cenas alegóricas, num esforço de transmissão de dor ao seu espectador que passa por todo tipo de crise de identidade e do eu que acomete sua protagonista. Ainda que exista nessa metodologia um inchaço subsequente, Lelio mostra-se muito consciente das consequências de suas ações e as utiliza a seu próprio favor, uma medida que só potencializa o lado sensorial - e, portanto, a beleza - de sua obra.

14) Melhores Amigos

Se o Columbus de Kogonada foi o filme de 2017 que mais diretamente aludiu ao cinema de Yasujirô Ozu, Melhores Amigos foi aquele que soube melhor do que ninguém como incorporar os valores intimistas do mestre japonês a sua narrativa. A pequena produção de Ira Sachs realiza um estudo duro sobre o desfazimento de relações comunitárias sob a sombra do pós-crise, mas o faz dentro de uma lógica intimista e familiar que mergulha o espectador dentro da história e o torna senciente de todos os efeitos doloridos sentidos por seus personagens ao longo da narrativa. É uma desconstrução de valores bela, ainda que dominada pelo sabor amargo. 

13) Detroit em Rebelião

A América do Medo. Kathryn Bigelow seguiu sua fase de filmes sociais em 2017 com uma reencenação visceral e beirando ao exploitation da tragédia no hotel Algiers durante as revoltas de Detroit de 1967. A câmera da diretora não se interessa pela violência, porém, para entender o sofrimento das vítimas de racismo envolvidas no processo, mas sim para tratar das forças policiais que cercam e ditam os rumos daquela noite do mesmo jeito que o fazem nos dias de hoje. Da caracterização dos oficiais como verdadeiras crianças à atuação memorável de Will Poulter (quem diria?), Detroit em Rebelião é um filme de estrutura de cálice que não hesita em se debruçar sobre a brutalidade policial, aproveitando-se da claustrofobia intrínseca do cenário da tragédia que captura para tornar palpável o verdadeiro mal por trás dessas situações. E tudo se resume ao terror no olhar do personagem de Algee Smith conforme ele conversa com o padre sobre encontrar o refúgio final contra todo o seu enlouquecimento.

12) Okja

Um dos filmes que causou polêmica no Festival de Cannes deste ano, Okja é mais uma fábula de Bong Joon-ho que combina horror e conto infantil de forma natural. Mas ainda que a produção tenha chamado a atenção do público sobre sua mensagem contra a violência feitas aos animais na indústria dos alimentos, o filme traz emoções palpáveis na narrativa tocante que faz em cima do que é basicamente uma história de perda da inocência. É um lado da trama a ser percebido nos pequenos atos de ingenuidade como a perseguição no shopping ou o ato final da pequena garota protagonista interpretada por Ahn Seo-hyun para evitar que o rebelde de Paul Dano machuque seu animal de estimação no desfile, cenas que sem dúvida servem de grandes ápices para uma produção pautada pelo gesto dramático.

11) Star Wars - Os Últimos Jedi

O oitavo capítulo da saga Star Wars dividiu o público por suas decisões ousadas em relação à narrativa clássica da série, mas é justo por essa abordagem do eterno confronto maniqueísta da história que Os Últimos Jedi se destaca. Rian Johnson coloca em xeque na trama o posicionamento de diversos personagens, mas faz isso para ao final reforçar os pólos de bem e mal e evidenciar o quão impossível é a resolução de qualquer conciliação entre os dois lados, uma atitude que não só traz paralelos com a realidade atual (é uma problematização da polarização que não destitui a validade das posições) mas que reforça o signo de rebeldia que é vital à franquia desde Uma Nova Esperança. O episódio oito se destaca também por seu terceiro ato como um todo: todos os grandes momentos se enfileiram para entregar uma experiência de espetáculo visual digna das grandes audiências que Star Wars agremia, capaz de superar inclusive os problemas do inchaço narrativo que circundam a estrutura do longa. É uma obra tão sobrenatural quanto os caminhos da Força.

10) Na Praia à Noite Sozinha

Hong Sang-soo continua realizando filmes sobre a farsa por trás da reputação intocável dos grandes autores, mas em Na Praia à Noite Sozinha essa narrativa é levada ao limite. O diretor sul-coreano faz aqui uma obra de cunho metalinguístico, implodindo a sua própria figura enquanto filma a personagem de Kim Min-hee (sua namorada atualmente) sofrendo os efeitos de uma relação que ela teve com um cineasta. O humor de Na Praia à Noite Sozinha é ácido e mira a garganta, não deixando sobreviventes enquanto realiza cenas e cenas de longos embates entres seus personagens à partir dos zooms característicos de Sang-soo, que mantém um olhar pérfido sobre o próprio eu.

9) Bom Comportamento

Os irmãos Benny e Josh Safdie tomaram o ano de assalto com este thriller protagonizado por Robert Pattinson, cujas inspirações bebem principalmente da urgência do cinema de Sidney Lumet e Walter Hill. Situado em cenários dominados pelas classes pobres da sociedade estadunidense, o longa coloca em questão o privilégio branco dentro de uma estrutura pautada pela adrenalina do momento, da correria desenfreada de seus personagens atrás de suas libertações da autoridade. Pattinson entrega uma de suas maiores atuações até o momento, praticamente se tornando um camaleão perante a estética "suja" da câmera dos Safdie, se transformando a cada ambiente e ferrando quem precisar para alcançar os seus (pequenos) objetivos.

8) Manchester à Beira-Mar

Se o objetivo era derrubar no chão o emocional do público, Kenneth Lonergan sem dúvida alcançou a meta com seu Manchester à Beira-Mar. Pautada pelo arrependimento e a dor, o longa trabalha o drama de situações que já aconteceram há muito tempo, mas que se recusam a deixar o semblante de seus personagens, reunidos em torno de uma tragédia que destruiu as suas fundações familiares. Casey Affleck se torna neste contexto uma espécie de anjo da morte, um espírito condenado ao sofrimento pelo resto dos seus dias que habita os locais como um gigantesca penumbra, mas a cena que marca o filme a ferro em brasa é, claro, o desabafo da personagem de Michelle Williams para este seu ex-marido.

7) Aliados

Passou despercebido pelo circuito (e se não fosse a indicação ao Oscar não teria chegado mesmo), mas Aliados é talvez o maior trabalho de Robert Zemeckis nos últimos anos. O diretor enfim encontra um veículo capaz de acomodar suas relações entre efeitos visuais digitais com a dramaturgia, trabalhando este romance entre espiões sob o aspecto da dubiedade do olhar e confundindo seu espectador sobre o que é real ou não nesta narrativa. Contando com um Brad Pitt com trejeitos de Humphrey Bogart e uma Marion Cotillard disposta a assumir o tom duvidoso da trama a sua personagem, o longa trafega entre o romance e o suspense com habilidade e se utiliza muito bem do digital como elemento cênico, tudo isso consagrado na belíssima cena da tempestade de areia.

6) John Wick - Um Novo Dia Para Matar

Outro filme que soube utilizar o visual de elemento dramatúrgico como ninguém foi a explosiva continuação de De Volta ao Jogo. Pautado cena após cena pela ação, John Wick - Um Novo Dia Para Matar praticamente se faz como balé de tiros e socos enquanto vai desestabilizando os seus espaços de encenação, transformando a cidade num gigantesco lar de assassinos destinado ao descontrole. O clímax na exposição de espelhos do museu é daquelas sequências de ação tão memoráveis quanto a performance física de Keanu Reeves, o bailarino principal deste espetáculo circense cuja missão de vida parece ser a de provar ao seu espectador o quão frágil é a estrutura do palco onde atua.

5) Corra!

É difícil imaginar nos dias de hoje um debute na direção tão certeiro quanto o de Jordan Peele. O comediante combina humor e horror de maneira sublime num filme que se propõe a uma inversão de perspectiva pautada tanto pelo objetivo (o negro que vai visitar a família da namorada branca) quanto subjetivo. Corra! é um exercício fabuloso de tensão aliviado pelo terror e a comédia, um que não hesita em colocar o dedo na ferida e mergulhar seu espectador em uma espiral de temor pela própria segurança e fazê-lo entender de uma vez por todas o quão particular é o drama de ser negro num país que nunca conseguiu se livrar por completo do racismo. Como bem prova o crescimento da produção na corrida pelo Oscar, este é um filme que nasce grande e cresce ainda mais com o tempo. 

4) A Qualquer Custo

Outro grande diagnóstico dos Estados Unidos de hoje feito sob a chave da aparente despretensão do filme de gênero foi o A Qualquer Custo de David Mackenzie. Se Detroit em Rebelião e Corra! trabalham sumariamente com uma América do Medo, o roteiro de Taylor Sheridan aborda a América do Ódio, uma que despreza o próximo na mesma intensidade que se preocupa só com a segurança de si mesmo. A história de dois irmãos que roubam do sistema para se salvar dele é um faroeste de cenários representativos deste estado atual do país, sendo capaz de colocar os filhos do branco colonizador e do índio para discutir o país que herdaram de forma direta e franca. É desde já um dos grandes trabalhos cinematográficos destinados a compreender este clima de disparidades, esta raiva interior que vem ditando os rumos do país nos últimos anos.

3) Martírio

Dos filmes incontornáveis de 2017, Martírio é aquele que é mais significativo para o brasileiro, tanto como cinema quanto debate político-social. O longo documentário de Vincent Carelli sobre a luta das tribos Guarani-Kaiowá para sobreviver é daquelas produções cinematográficas feitas para traumatizar, algo alcançado na grande investigação histórica que seu diretor realiza sobre a opressão do índio no país e também no relato do próprio cineasta sobre os eventos que testemunhou e gravou com essas organizações. Não existe espaço para reconciliações aqui, apenas a luta pela salvação de uma população que já sofreu demais nas mãos da sociedade, do governo e das organizações privadas. Do cinema político, Martírio é a contribuição maior do ano que passou.

2) Z - A Cidade Perdida

James Gray retornou às telonas em 2017 com mais um gigantesco conto cinematográfico de alicerces clássicos. Depois de reencenar a grande saga americana em Era Uma Vez em Nova York, o diretor faz de Z - A Cidade Perdida a sua épica narrativa do descobridor, um retrato sublime da busca eterna do ser humano pelo desconhecido à partir da história real de Percy Fawcett. Gray transforma o explorador aqui na metáfora essencial de sua narrativa, que dá conta de escancarar ao espectador o incômodo inscrito no acomodamento e a paixão subentendida pela descoberta de novos caminhos. Se Z é um filme que ignora por completo a questão da colonização, é porque lhe interessa mais a compreeensão final do que basta à figura protagonista destas histórias, um sentimento sacramentado no final apoteótico em sua serenidade, deslumbramento e - acima de tudo - paz interior.

Mas um filme conseguiu ir além disso.

1) Toni Erdmann

Não são muitos os motivos que levam Toni Erdmann a ser o grande filme de 2017, mas esses poucos alicerces são poderosos demais para se deixar passar desapercebido a produção. Porque mesmo que o novo trabalho de Maren Ade seja pautado em cima de questões muito particulares da realidade europeia (ao qual ele se encontra muito disposto a desestabilizar pelo humor), esse confronto filmado pela diretora está muito inscrito na realidade do mundo de hoje: o descompasso europeu entre a herança ideológica do continente e a frieza calculista de sua postura com os assuntos mais delicados não deixa de emular o que é visto todos os dias nos outros cantos do planeta, uma decrepitude de relações que inevitavelmente atinge os espaços habitados. 

Resta então ao filme e seu protagonista de mesmo nome cumprir esta difícil missão de reconciliação, uma que se assume na produção como o reencontro emocional de pai e filha mas que em outros cenários poderia ser qualquer outra relação de amizade ou familiar (e fica aí a dica para o remake americano). Este processo de cura, de purgação dos pecados responsáveis pelas fraturas emocionais no fundo traz à tona este eterno combate do humano imperfeito contra a máquina que não erra, algo que talvez só o vexame gerado pelo humor pode servir de solução final para nossa vitória enquanto comunidade. E Ade segue essa narrativa à risca em Toni Erdmann, encontrando em cada gesto de humanidade (incluindo o da foto acima) um grande triunfo do emocional.

É um filme gigante, de fato.

Ranking final


A seguir, o ranking de cinema de 2017 do O Nerd Contra-Ataca:
  1. Toni Erdmann (10/10)
  2. Z - A Cidade Perdida (9/10)
  3. Martírio
  4. A Qualquer Custo
  5. Corra! (8/10)
  6. John Wick - Um Novo Dia Para Matar 
  7. Aliados
  8. Manchester à Beira-Mar
  9. Bom Comportamento
  10. Na Praia à Noite Sozinha
  11. Star Wars - Os Últimos Jedi
  12. Okja
  13. Detroit em Rebelião
  14. Melhores Amigos
  15. Uma Mulher Fantástica
  16. Mulheres do Século 20
  17. La La Land - Cantando Estações
  18. Silêncio
  19. Divinas Divas
  20. Personal Shopper (7/10)
  21. Logan Lucky - Roubo em Família
  22. Paterson
  23. A Trama
  24. Resident Evil 6 - O Capítulo Final
  25. Em Ritmo de Fuga
  26. O Castelo de Vidro
  27. Fragmentado
  28. Moonlight - Sob a Luz do Luar
  29. Até o Último Homem
  30. Roda Gigante
  31. Na Vertical
  32. Beduíno
  33. Minha Vida de Abobrinha
  34. Planeta dos Macacos - A Guerra
  35. Moana - Um Mar de Aventuras
  36. Eu Não Sou Seu Negro
  37. Guardiões da Galáxia Vol. 2
  38. Professor Marston e as Mulheres-Maravilha
  39. Perdidos em Paris
  40. Corpo Elétrico
  41. O Estranho que Nós Amamos
  42. A Criada
  43. Eles Só Usam Black Tie
  44. Logan
  45. A Garota Desconhecida
  46. Valerian e a Cidade dos Mil Planetas
  47. Columbus (6/10)
  48. Além das Palavras
  49. Mulher-Maravilha
  50. Creep 2
  51. Paris Pode Esperar
  52. Doentes de Amor
  53. Lion - Uma Jornada Para Casa
  54. Lumière! A Aventura Começa
  55. David Lynch - A Vida de um Artista
  56. Era o Hotel Cambridge
  57. Lucky
  58. Five Came Back
  59. Jogo Perigoso
  60. Una
  61. Rodin
  62. Pendular
  63. Nossas Noites
  64. Blade Runner 2049
  65. Eu, Daniel Blake
  66. Estrelas Além do Tempo
  67. Kong - Ilha da Caveira
  68. Jackie
  69. Homem-Aranha - De Volta ao Lar
  70. A Tartaruga Vermelha
  71. O Filme da Minha Vida
  72. Velozes e Furiosos 8
  73. Lego Batman - O Filme
  74. Cartas da Guerra
  75. Vermelho Russo
  76. De Canção em Canção (5/10)
  77. Antes que Eu Vá
  78. O Dia do Atentado
  79. It - A Coisa
  80. O Sequestro
  81. Os Meyerowitz - Família Não se Escolhe
  82. Terra Selvagem
  83. A Babá
  84. Vida
  85. Dunkirk
  86. T2 - Trainspotting
  87. Bingo - O Rei das Manhãs
  88. Jogos Mortais - Jigsaw
  89. A Morte te dá Parabéns
  90. Borg vs McEnroe
  91. Jim and Andy: The Great Beyond - Featuring a Very Special , Contractually Obligated Mention of Tony Clifton
  92. A Batalha dos Sexos
  93. Na Mira do Atirador
  94. Joaquim
  95. Piratas do Caribe - A Vingança de Salazar
  96. A Bela e a Fera
  97. A Grande Muralha
  98. Fome de Poder
  99. Manifesto
  100. Elon Não Acredita na Morte
  101. Com Amor, Van Gogh
  102. A Cura (4/10)
  103. Atômica
  104. Um Limite Entre Nós
  105. O Círculo
  106. Feito na América
  107. Vazante
  108. Assassinato no Expresso do Oriente
  109. Como Nossos Pais
  110. O Apartamento
  111. Carros 3
  112. Annabelle 2 - A Criação do Mal
  113. O Rei do Show
  114. Kingsman - O Círculo Dourado
  115. Pitanga
  116. War Machine
  117. Amor, Paris e Cinema
  118. Liga da Justiça
  119. Alien: Covenant
  120. Assassin's Creed
  121. O Rastro
  122. Transformers - O Último Cavaleiro
  123. Colossal
  124. Uma Razão Para Viver
  125. Cinquenta Tons Mais Escuros
  126. A Lei da Noite
  127. Baywatch - S.O.S. Malibu
  128. A Vigilante do Amanhã - Ghost in the Shell
  129. Sete Minutos Depois da Meia-Noite
  130. Um Instante de Amor
  131. Um Homem Chamado Ove
  132. Death Note (3/10)
  133. Power Rangers
  134. Bright
  135. Boneco de Neve
  136. Cães Selvagens
  137. Ao Cair da Noite
  138. Mãe!
  139. Suburbicon - Bem Vindos ao Paraíso
  140. Rei Arthur - A Lenda da Espada
  141. O Chamado 3
  142. Passageiros
  143. A Múmia
  144. Beleza Oculta

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sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

O Cinema em 2017: Piores do Ano

Os dez grandes erros do ano que passou.

Por Pedro Strazza.

Existem muitos fatores responsáveis por levar um filme a ser considerado ruim. Para alguns, os erros técnicos sucessivos são suficientes para tornar uma obra desprezível; para outros, o mal posicionamento da produção sobre as temáticas em que se insere são o que definem um trabalho moralmente desprezível ou valioso. Muitas pessoas acreditam que essa definição é feita sob a pesagem destas duas categorias; algumas perseguem a afirmação de que a maneira certa de fazer este julgamento está em outros campos, outras metodologias.

O debate sobre o que torna uma produção péssima, porém, está sempre presente nas discussões sobre cinema, e não é com surpresa que no fim do ano ela ganhe maior destaque graças às listas de piores e melhores do ano. Tomar uma posição sobre uma obra sempre foi e sempre será um ato de confrontação, porque é neste momento que também se toma um lado numa variedade de discussões despertadas por aquele trabalho. Você invariavelmente irá debater os valores de um filme depois de assisti-lo e determinar se gostou ou não dele; quase todas as funções do cinema (e das artes), afinal, estão inseridas nessa discussão.

E quando chega o fim do ano, esses posicionamentos retornam para nos fazer refletir os nossos próprios valores nesses atos, realizados religiosamente à cada sessão.

Esse é só um dos motivos que levam O Nerd Contra-Ataca a realizar todo ano a lista de Piores do Ano, um compilado com as dez piores produções lançadas no circuito comercial de exibição brasileiro entre os dias 1° de janeiro e 31 de dezembro de 2017. Entre os "felizardos" da edição 2017, temos quase como uma constante uma maior preponderância do ego dos envolvidos em suas produções, desde produtores que foram levados a acreditar que aquela decisão seria a melhor para suas franquias a diretores e roteiristas que se deixaram levar pelo "culto do eu" para realizar seus novos trabalhos. Seja a culpa de quem for, a verdade é que estes filmes fizeram o público agonizar nas cadeiras por nada nestes últimos 365 dias, e agora eles precisam ser devidamente exorcizados.

Sem maiores delongas, vamos a eles:

10) Boneco de Neve

É sempre uma surpresa quando um filme capitaneado por cineastas tão consagrados naufraga de maneira vexaminosa, mas em 2017 Boneco de Neve levou esta afirmação a alguns limites consideráveis. A adaptação do livro homônimo de Jo Nesbø teve todo tipo de "star power" atuando na frente e atrás das câmeras, mas o filme que saiu no fim soa como uma abordagem amadora do que se configura hoje como uma superprodução hollywoodiana. E isso não ocorre apenas pelo fato do diretor Tomas Alfredson (que há seis anos brilhava com O Espião que Sabia Demais) claramente não ter filmado todas as cenas do roteiro: junto da montadora Thelma Schoonmaker (colaboradora eterna de Martin Scorsese, que produz o longa), a direção parece se interessar única e exclusivamente no desenrolar do mistério, limando da história qualquer traço de dramaturgia que poderia salvar a produção dos próprios buracos da trama e tornando ainda mais desnecessária a presença de diversos personagens. Pode-se até encarar o todo como um desastre criativo que impulsiona as discussões sobre montagem, mas o longa não deixa de ser um erro.

9) Cães Selvagens

Paul Schrader é para sempre uma das ovelhas negras de Hollywood e isso sem dúvida ajuda o famoso cineasta a fazer seus filmes da maneira que melhor lhe convém, mas existe uma linha muito clara entre estar na sua posição e cometer uma bobagem como Cães Selvagens. Do começo ao fim um aborrecimento constante, o filme se basta de maneira infantil a suas relações de violência e temáticas de envelhecimento, incapaz de prosseguir para qualquer rumo diferente dentro dessas esferas. Nicolas Cage e Willem Dafoe fazem o máximo possível para fazer o material render, mas são esforços inúteis quando seu diretor parece ter desistido de tudo no próprio filme. 

8) Ao Cair da Noite

Embora a A24 tenha se consagrado este ano com Moonlight - Sob a Luz do Luar, os detratores dos filmes do estúdio também saíram por cima graças ao que quer que tenha sido Ao Cair da Noite. Em tempos de pós-horror e da discussão sobre a validade desta abordagem, o diretor Trey Edward Shults fez o típico terror pós-apocalíptico de moral condenatória (é mais um daqueles filmes sobre "o horror que está dentro da humanidade") com literalmente TODOS os cacoetes da produção indie americana sobre o gênero, incluindo uma atmosfera "super climática" que nunca dá em algo de valor - já ouço daqui as respostas enraivecidas exclamando "Mas esse é o ponto do filme!" e não percebendo que este é o problema -, uma narrativa subjetiva cheia de símbolos vazios e temáticas de crise familiar e coming of age que são desenvolvidas da maneira mais rasteira possível. Em suma, é mais um daqueles filmes vazios que são consagrados como maravilhosos por sua dita estética arthouse.

Falando em terror arthouse vazio...

7) Mãe!

Darren Aronofsky deve ter ficado bem chateado com a torrente de críticas negativas pra cima de seu Noé, porque o seu Mãe! é quase uma resposta direta elevada à décima potência a seu trabalho anterior. Largando mão de qualquer sutileza possível, o diretor faz o que é na prática um filme sobre criação totalmente deturpado por um senso de egolatria insuportável, com direito ao cineasta traçando paralelo entre ele e Deus, trezentas mil reencenações "simbólicas" da Bíblia feitas à base de cocaína vencida e câmera na cara de Jennifer Lawrence enquanto é destratada de todas as maneiras possíveis pelos outros personagens. Aronofksy sem dúvidas mira o Polanski, mas só atinge o ridículo enquanto se satisfaz com a glorificação subjetiva da própria imagem. Alguns pontos extras por todo o caos gerado pelo filme nas redes sociais e nas rodas de discussão enquanto esteve em cartaz salvam Mãe! de estar mais pra baixo nesta lista, mas há de se convir que tem algo muito errado na forma como se faz cinema quando a única coisa que interessa ao diretor num filme é este senso de provocação imediata.

6) Suburbicon - Bem Vindos ao Paraíso

George Clooney nunca foi um grande cineasta, mas seus primeiros filmes mostravam uma aspiração promissora a alguém disposto a subir essa ladeira. Suburbicon, porém, foi um belo passo na exata direção contrária, com o famoso galã demonstrando ser incapaz de entender e lidar com a acidez do texto de um roteiro abandonando dos Coen e tomando todas as decisões erradas à partir disso. E quando eu digo erradas, é porque elas vão contra tudo o que faz os irmãos cineastas serem o que são hoje: Clooney toma qualquer humor subjetivo como escracho, pesa a mão no posicionamento político em alegorias baratas e faz de uma comédia screwball convencional um retrato de hipocrisias sociais que tem cheiro de naftalina. É tudo tão grotesco quanto a violência da história, feita sob a chave de um humor de péssimo gosto.

5) Rei Arthur - A Lenda da Espada

A que ponto chegamos com Guy Ritchie? O inglês conhecido anteriormente como "ex-marido da Madonna" até teve uns trabalhos bacanas no passado (mesmo O Agente da U.N.C.L.E. é divertido em todos os seus equívocos), mas quem quer que tenha pensado que era uma ótima ideia colocar o diretor pra reimaginar a lenda do Rei Arthur precisa com urgência repensar os seus valores. Sem surpresa alguma, A Lenda da Espada é um desfile de todos os cacos do cinema de Ritchie empregados da pior maneira possível, tornando o célebre protagonista num ladrão boxeador(?) que precisa enfrentar vilões dignos de um game medieval de porrada de quinta categoria em um filme pautado por um frenesi nunca justificado. É um exercício de deturpação feito sem qualquer justificativa maior e que com certeza beira ao horror.

4) O Chamado 3

Ainda em reimaginações pra lá de equivocadas, temos o impressionante monte de fezes que é a terceira (e, se depender da bilheteria, última) incursão da versão estadunidense de O Chamado. Nas mãos do espanhol F. Javier Gutiérrez, O Chamado 3 é uma coleção de escolhas equivocadas e correções de mitologia que não fazem o menor sentido, além de um desfile de momentos de vergonha alheia que parecem saídos do inferno. Se nem na hora de fazer o exploitation da franquia e transportar a cena assinatura da série - isto é, Samara saindo da televisão - para dentro de um avião o terceiro capítulo consegue acertar, imagina no resto.

3) Passageiros

Abrindo os trabalhos do pódio do desastre temos o inacreditável Passageiros, uma das grandes produções tóxicas que circularam pelos cinemas brasileiros em 2017. Uma renegação completa da ficção-científica, o filme escrito por Jon Spaihts e dirigido por Morten Tyldum é daquelas histórias de amor absurdas de tão mal colocadas, colocando uma relação problemática e abusiva como algo normal. Tudo isso dentro de um futuro lindo e confortável, cujas perfeições estéticas e que beiram ao sonho molhado de designers soam como a cortina de fumaça ideal para suavizar o verdadeiro pesadelo em execução aqui. Sem dúvida a grana mais fácil da carreira de Andy Garcia.

2) A Múmia

O Rei Arthur de Guy Ritchie e O Chamado 3 de F. Javier Gutiérrez foram esforços de reimaginação terríveis, mas ficaram comendo poeira quando comparados ao desastre que foi a nova versão de A Múmia, também conhecida como (se tudo der certo) o responsável pelo assassinato precoce do Dark Universe planejado pela Universal. Filme de produtor sem qualquer resquício de imaginação, a segunda reinvenção de um dos grandes monstros do estúdio não consegue funcionar como filme de ação, horror ou comédia, mas mesmo assim tenta ser os três enquanto busca emplacar Tom Cruise como uma super criatura e Russell Crowe como um Nick Fury doidinho dos monstros. O longa de Alex Kurtzman é capaz até de desperdiçar as oportunidades oferecidas na mudança de gênero da múmia, aprisionando Sofia Boutella dentro de um personagem condenado a ser coadjuvante da própria história. Ninguém mereceu isso.

Mas um filme conseguiu ser pior.

1) Beleza Oculta

Porque não é todo dia que a gente vê a estrutura dos dramas edificantes de Frank Capra ser corrompida por completo. É uma façanha e tanto a que o diretor David Frankel e o roteirista Allan Loeb alcançam sem perceber: não só Beleza Oculta é um filme cruel em todos os aspectos possíveis, mas ele também consegue se passar como um filme de moral revigorante. Se o protagonista vivido por Will Smith passa por um drama de luto evidente, isso não impede que seus colegas de trabalho o derrubem da própria empresa num "ato de bondade" e aprendam uma lição valiosa às suas vidas no processo - uma, claro, que não seja "o dinheiro é maior que a amizade". É uma auto-ajuda provinda do pior dos infernos, feita para aterrorizar os espectadores sem que eles percebam - um efeito que, sob certo ângulo, prova mais uma vez o quão certeiro eram as afirmações de John Carpenter em Eles Vivem.

E se o filme consegue herdar este nível de comparação ao terror de uma distopia de um filme de Carpenter, é sinal de que muitas poucas coisas podem ser piores que ele.

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quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

O Cinema em 2017: Destaques do Ano

Os dez filmes do ano que deixaram boas lembranças, apesar de tudo.

Por Pedro Strazza.

Vai chegando ao fim o ano de 2017 e, com ele, vão surgindo as listas e retrospectivas que dão conta de resumir tudo o que aconteceu no ano, dominando as atenções da galera enquanto os fogos não são lançados e 2018 não se inaugura. No noticiário de cinema, isso significa infindáveis publicações com os melhores e piores filmes que passaram pelas telonas (e telinhas) nos últimos 365 dias, um desfile de produções ordenadas que vão gerar todo tipo de debate acalorado entre os cinéfilos. É um momento de reflexão e passagem importante, uma reafirmação e problematização de valores que sem dúvida impacta na forma como pensamos a "sétima arte" e como vamos encará-la no ano que está por vir. 

É por isso que no O Nerd Contra-Ataca segue-se o procedimento padrão com as já tradicionais listas de Melhores e Piores do Ano, mas aqui nós também gostamos de abrir espaço a uma terceira categoria que chamamos de Destaques. Porque apesar de ser válido o esforço de agremiar as produções mais primorosas e desprezíveis do último ciclo em conjuntos próprios, nós também acreditamos que existam filmes no meio desses dois caminhos que também mereçam a atenção do espectador, seja porque eles trazem novos nomes ao cenário, tiveram participação vital nos rumos tomados no último ano ou porque apenas tragam aquele "algo a mais" preso a pequenos defeitos que os tornem incapazes de alcançar o topo da lista. 

Os próximos dez filmes listados podem não ser perfeitos, geniais ou espetaculares, mas trouxeram esses valores citados acima à mesa dentro das salas de cinema. E em tempos de extremos, de "ame ou odeie" amplificado ao último nível possível de volume no coração das pessoas, essas produções ajudam a gente a colocar as coisas em perspectiva e compreender melhor os últimos meses vividos (e assistidos).

Sem maiores contribuições ou enrolações, vamos a eles:

Passou praticamente batido no circuito daqui e de lá fora, mas a adaptação do livro de memórias da jornalista Jeannette Walls foi uma dessas pequenas surpresas que o ano de 2017 reservou ao público. O eficiente melodrama é trabalhado por Destin Daniel Cretton com todas as trucagens e batidas convencionais do gênero nos dias de hoje, mas nas entrelinhas o diretor desenvolve uma narrativa de formação pautada pelo trauma que pega o seu espectador desprevenido. Ajuda também o fato de Woody Harrelson estar entregando uma grande performance (sem dúvida a melhor em um ano em que o ator ganhou os holofotes por outros trabalhos), num desses trabalhos de atuação que sustenta o filme mesmo quando este arrisca colocar tudo a perder em um final de reconciliações um tanto quanto armadas demais.

Outra produção que pegou muita gente de surpresa foi o Columbus de Kogonada, vídeo-ensaísta famoso que debutou como diretor num longa que bebe bastante do cinema de Yasujirô Ozu. Mas ainda que tenha a rigidez formal do mestre japonês como norte, o cineasta arrisca uma inversão de valores inesperada neste campo que potencializa e sustenta as estruturas mais frágeis de seu filme, especialmente a trama que sai da banalidade para atingir uma narrativa de confluência de gerações muito tocante. Vale ficar de olho no diretor nos próximos anos, muito porque nesta estreia ele estabeleceu temas e formatações muito intrigantes para seu cinema.

  • Corpo Elétrico

Em um ano em que a população LGBT reivindicou o cinema para si tematicamente, o brasileiro Corpo Elétrico proporcionou um retrato emocional dos mais curiosos sobre o grupo nas camadas mais pobres do país. Muitas vezes à deriva, o filme de Marcelo Caetano busca mostrar manifestações muito fortes de individualidade desses coletivos, disfarçados à vista de todos durante o dia e que ocupam a noite como ambiente de direito. O trabalho de certa forma se relaciona bastante com o Boi Neon de Gabriel Mascaro - ainda que o eixo esteja invertido, pois se lá era o individual que se manifestava dentro do coletivo, aqui é o coletivo que se compõe como individual -, mas ele desperta simpatia própria pois seu tom vago ajuda a gerar questões difíceis sobre estas duas esferas que habita e (muitas vezes) sobrepõe.

Depois de estourar a boca do balão em 2015 com A Visita, M. Night Shyamalan voltou de vez aos holofotes com esta continuação surpresa de um seus grandes sucessos do passado. Mas até isso se revelar na história, Fragmentado já entregou uma mudança de perspectiva no cinema do diretor, que adquire aqui um olhar desencantado sobre suas eternas narrativas de fábula para afirmar o grande mal que as assola. Shyamalan também repete no longa seu fascínio pelas combinações de diferentes gêneros, pautado agora por uma narrativa de horror claustrofóbico que tira o melhor da fotografia de Mike Gioulakis e das fortes atuações de James McAvoy e Anya Taylor-Joy. 

O grande (e surpreendente, se for considerar a situação) vencedor do Oscar de Melhor Filme deste ano mudou bastante coisa nos rumos da premiação mais badalada de Hollywood, mas foi por um motivo muito bonito. Com forte inspiração na narrativa do Amor à Flor da Pele de Wong Kar-Wai, o diretor Barry Jenkins fez da adaptação da peça teatral inédita de Tarell Alvin McCraney uma investigação sensorial dolorosa sobre o espectro da masculinidade na população masculina, um tríptico disposto a mostrar a influência deste suposto ideal de virilidade na formação do homem contemporâneo. Além disso, Moonlight se faz como um conto de amor e de uma descoberta de sexualidade corrompida, um tom de maldição que ajuda a tornar a produção em um belo tormento introspectivo.

Sem dúvida um dos eventos cinematográficos incontornáveis do ano, Mulher-Maravilha chega a essa lista graças ao efeito gigantesco que desencadeou no público. Mesmo que no fim Patty Jenkins perca o controle da estilização que faz do cinema de Zack Snyder e se renda sem qualquer inspiração ao banho de grandes duelos em CGI do diretor, sua introdução segura de um dos maiores super-heróis do imaginário de quadrinhos despertou um sentimento de representação muito forte no pop mainstream e principalmente no público feminino, que pode enfim se ver na telona com a Diana de Gal Gadot. Foi uma contribuição poderosa a todo o processo recente de reformulação da figura da mulher no cinema hollywoodiano de ação, além de uma medida que ajudou a configurar o ano como agora conhecemos.

  • Paris Pode Esperar

Embora dentro da família Coppola quem tenha se destacado mais na mídia e no circuito de festivais em 2017 tenha sido a filha Sophia, o retorno discreto da mãe Eleanor à direção gerou um dos trabalhos mais graciosos e sensíveis deste ano. Na superfície um filme de pretensões banais, Paris Pode Esperar na verdade trabalha uma história de pequenas revoluções pessoais dentro de uma rotina já muito sedimentada e impossível de ser revirada ou alterada, inserido ainda em um ambiente de prazeres refinados porém comuns. Por meio de um trabalho sólido de Diane Lane, Coppola entrega um pequeno trabalho sublime, que se banha em texturas e cores para captar uma beleza que se manifesta perante os olhos do espectador mas também parece não ser notada o suficiente por ele.

  • Perdidos em Paris

Ainda em Paris, há de se destacar também a comédia com pinceladas de musical dirigida e protagonizada por Fiona Gordon e Dominique Abel. Com um quê de Jacques Tati em sua composição, Paris Pode Esperar é um belo esforço de retomar uma certa leveza à capital francesa, ocupando espaços da cidade das luzes com humor e música para purificar os tempos duros e sombrios que assustam o país e seus residentes - incluindo aí as populações mais aterrorizadas, como os imigrantes e os idosos que servem de tema central à obra. De quebra há ainda a bela visão de Emmanuelle Riva em pleno ar de graça, claramente se divertindo em uma de suas últimas atuações.

  • Roda Gigante

É pelo menos desde O Homem Irracional que Woody Allen anda dirigindo sob um olhar mais sóbrio, mas é com Roda Gigante que o famoso, produtivo e problemático cineasta faz o seu filme mais atormentado. Um tormento regido pela culpa, que sem surpresa se manifesta com força no roteiro simples de seu mais recente trabalho, contaminando todos os personagens e situações apresentadas e se direcionando invariavelmente à sua pessoa. Do menino piromaníaco ao cenário da casa que antigamente servia de casa de horrores, Allen produz um de seus trabalhos mais sombrios na projeção à própria figura, palpável na ótima direção de fotografia de Vittorio Storaro e na atuação sólida de Kate Winslet. É o seu Pele de Vênus, seu esforço de auto-condenação que não resta margem para dúvidas sobre a culpabilidade de seus atos passados (seja estes quais forem, no fim das contas); e considerando o cenário atual de constantes revelações de assediadores e estupradores em Hollywood, haja timing.
Se Roda Gigante tratou da figura do culpado, Una faz o inverso. Lidando com um drama de enfrentamento entre um pedófilo e uma de suas antigas vítimas, o longa de Benedict Andrews funciona como adaptação literal da peça "Blackbird", mas ganha fôlego real nas maneiras que encontra para refletir o conflito entre seus dois protagonistas nos espaços ocupados por eles. Embora isso se perca no clímax que escapa desta lógica interiorizada para habitar espaços mais conhecidos, esse dimensionamento dos vazios habitados pelo drama ajuda a sedimentar no filme a noção de um trauma que nunca se findará, um assombro que perseguirá sua principal personagem que agora também será sentido pelo público.  

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sábado, 23 de setembro de 2017

Crítica: Mãe!

Em terror intimista, Darren Aronofsky se rende ao lado mais imediatista do cinema de provocação.

Por Pedro Strazza.

[Esta crítica aborda reviravoltas da trama. Se você ainda não assistiu o filme, leia por sua própria conta e risco]

Para bem ou para mal, Mãe! é o filme que debulha o cinema de Darren Aronofsky a seu essencial ao mesmo tempo que busca o impulsionar a novas alturas. Se por um lado o terror intimista protagonizado por Jennifer Lawrence funciona tematicamente no mesmo eixo dos últimos trabalhos do cineasta, ele também serve ao diretor como forma de testar os limites de seu próprio jogo, criando assimilações e paralelos que sem dúvida são os principais fatores para tornar a produção uma obra de provocações, como bem atesta as reações bastante divisivas do público neste primeiro momento do lançamento.

Se os atos de resumir ao que importa e explorar novos caminhos soam como definições opostas no papel, na tela este leve paradoxo está sem dúvida destinado a explodir em sentimentos contraditórios, o que já é um indício do tipo de experiência buscada pelo longa aqui. O roteiro escrito por Aronofsky a princípio flerta com o terror da vida privada, situando temas conhecidos de sua carreira em posição mais ou menos periféricas conforme ele centraliza tudo na perspectiva da personagem de Lawrence. Enquanto a câmera se basta em filmar o rosto da atriz e o seu literal ponto de vista (uma medida traduzida em planos longos e dispostos a criar tensão pelos cantos), constantes da carreira do cineasta como os dilemas do autor e a atração pelas imagens bíblicas permanecem restritas aos outros personagens, e o que persevera a princípio é esse horror quase cômico de intrusão da intimidade - e sob esta perspectiva quem mais se diverte é Michelle Pfeiffer, que se diverte enquanto trabalha este dueto emocional no papel de inquisidora de rotinas femininas.

Esta proposta, no entanto, não passa de um grande jogo de dispositivos de trama farsesco, pois aos poucos a produção devolve os grandes temas de Aronofsky ao seu lugar de direito com intensidade multiplicada. O que era trama se converte subitamente em quadro de simbolismos em constante ressignificação, e conforme Mãe! acelera a cadeia de eventos em "pulos temporais" e mergulha na total insanidade o filme se revela uma grande alegoria imagética dos tormentos de criação, obstinado como O Lutador, Cisne Negro e Noé em transbordar ao espectador as emoções conflitantes do autor.

Não deixa de ser um movimento oportuno que o filme mantenha-se colado à perspectiva da protagonista nesta transição, porém. Crente maior da própria metodologia de seu cinema, Aronofsky parece se entregar por completo aos delírios de grandeza neste novo trabalho, assumindo os paralelos de arte e cristianismo como motores maiores não só de seu modo de operação mas do próprio ato de existir. Se no longa há a noção constante de uma grande interpretação única e que diz respeito somente ao diretor - a metáfora da relação entre os personagens de Lawrence e Javier Bardem, bem como o aceno explicativo nos últimos minutos da projeção, são grandes indicativos desta tendência - persiste também a anulação desta, desde a negação da presença da voz ativa da protagonista ao clímax apoteótico que culmina na autodestruição, uma medida que mesmo atendendo ao direcionamento da alegoria serve para provar e encerrar sua existência única e exclusiva como montagem.

É este caos estrutural que no fundo teima em sabotar e tornar a experiência de Mãe! um tanto sofrível (apesar da missão aparente do filme ser a de instigar), mas há outros elementos em jogo que agravam o cenário da obra, e entre eles o principal é sem dúvida a disposição de Aronofsky em se postar como figura divina em meio a todas as alusões bíblicas que faz - algumas inclusive feitas à toa, um exercício banal de poder, a exemplo da passagem à la Caim e Abel protagonizada por Brian e Domhnall Gleeson. A proposta não só soa como o ápice de todas as provocações realizadas pelo diretor ao longo da produção, mas também termina por tornar ainda mais evidente as limitações do longa enquanto construto, restringindo a alegoria para si da mesma forma que a clareira é o único espaço possível para a protagonista existir.

A disposição de levar o longa ao caos completo não deixa de ser um esforço interessante (ainda mais porque ele de fato parece tirar prazer deste colapso), mas ela sozinha não é capaz de preencher este vazio de significados que a produção parece abraçar com gosto. Não deixa de ser uma pena: enquanto Aronofsky se satisfaz nos delírios com o conteúdo e as reações extremas e distintas da própria obra, seu cinema se entrega na mesma medida a provocações de cunho imediatista ao invés de seguir por novos caminhos, erguendo um culto de imagem que se prende à telona como único resquício de existência. E para um exercício de metalinguagem, Mãe! se mostra contente demais em permanecer interiorizado, dono das técnicas e metáforas que o ajudem a mantê-lo exclusivamente como mestre de seus domínios.

Nota: 3/10

sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Crítica: Rodin

Cinebiografia do famoso escultor cai em formatos tradicionais, mas encontra na arte um conduíte digno.

Por Pedro Strazza.

Auguste Rodin foi um artista que à sua maneira desafiou os valores de sua época. Ainda que nunca tenha sido classificado como transgressor, suas produções realísticas e dotadas de superfícies irregulares iam na contramão das buscas idílicas do ideal de seus contemporâneos, uma atitude que se por um lado o diferenciou a ponto de se tornar um dos escultores mais conhecidos da História também o tornou numa figura periférica do cenário artístico de seu tempo.

Esta contrapartida é um dos principais temas de Rodin, cinebiografia do autor escrita e dirigida por Jacques Doillon que fez passagem discreta na competição da Palma de Ouro no Festival de Cannes deste ano. É a distância do escultor da comunidade parisiense que surge a princípio como elemento central do drama do longa, que opta por seguir um caminho seguro e trabalha o artista (vivido por Vincent Lindon) pelo viés universal do tormento de criação, um dilema recorrente em obras dedicadas a criadores e seus trabalhos.

A presença desta temática no centro de todas as coisas já é um indício de que a produção será convencional em muitos sentidos dentro daquilo entendido como filme de arte (ou, no mínimo, as obras que frequentam os festivais de cinema de prestígio). Situada no período no qual Rodin foi comissionado a produzir a Porta do Inferno e o monumento em homenagem ao escritor até então recém-falecido Honoré de Balzac, o longa faz o caminho tradicional no que consta a protagonistas dotados de imensa fúria interna, filmando em planos longos o artista enquanto produz no interior de seu ateliê para expor sua intensidade criativa. Rodin é, ao olhar de Doillon, tão atormentado quanto suas esculturas buscam se portar, e nesse sentido Lindon vive o escultor de maneira consideravelmente previsível, com o semblante quase sempre franzido e uma movimentação mais bruta.

Seguir lógicas conhecidas não é um problema no cinema, mas para o filme ela funciona quase como se acuasse a produção em alguns momentos, como se Doillon se forçasse a seguir um livro de regras imaginário ao invés de trilhar caminho próprio atrás do retrato de seu objeto de estudo. Quem acaba por sofrer mais neste processo é o próprio drama, que muitas vezes se encontra perdido e ineficiente quando para trabalhar o relacionamento extra-conjugal de Rodin com a também escultora Camille Claudel (Izïa Higelin). A situação logo se transforma em um triângulo amoroso de viradas e conflitos previsíveis, com direito a ultimato e amante e esposa se confrontando no ateliê, além de ter pouco a oferecer sobre o impacto emocional que o caso teve à carreira dos dois artistas - especialmente Claudel, que tem seu trágico fim suprimido da trama.

Ao diretor e roteirista, porém, interessa mesmo apenas o espírito em conflito de seu protagonista, e se no drama a obra emperra na arte ela encontra o espaço ideal para desovar tais angústias. Entre os corpos despidos, os diferentes materiais esculpidos e a pose atarracada do escultor, Rodin se faz num interessante filme de texturas, filmando essas diferentes superfícies de forma quase pornográfica afim de encontrar o ponto de fascínio da produção do autor e a evolução de seu processo criativo, movido pela aceitação inevitável de uma maior liberdade estilística. É uma maneira inesperada de enquadrar o personagem, de fato, mas a narrativa ganha força conforme o artista começa a improvisar e o longa (na medida do possível) se liberta de seu rigor formal pré-estabelecido - quando Rodin vai transar com duas modelos, por exemplo, a câmera se basta em filmar as preliminares sobre o filtro do vidro da porta, que forma um inesperado quadro abstrato à partir da situação.

Quando inscrito nesta abordagem, Doillon chega a se esquecer do cinema prestigiado que busca alçar seu trabalho e passa a atuar sob efeito das sensações que capta com a câmera, guiando-se por aquilo que seu personagem absorve do mundo - o choro na exposição de Claudel, o olhar obsessivo quando faz seus desenhos de observação, a mão na superfície irregular das estátuas - e põe em seus trabalhos. O filme nunca se desvencilha de seu formato tradicional, é verdade, mas esses pequenos momentos de fuga soam como suficientes à produção para dar ao seu retrato de Rodin um olhar menos contemplativo e mais tátil de sua persona, bem ao gosto do artista.

Nota: 6/10

domingo, 17 de setembro de 2017

Crítica: Columbus

Estreia de ensaísta na direção encontra na arquitetura o fio de condução para o drama.

Por Pedro Strazza.

É uma comparação inevitável o paralelo entre Columbus, o elogiado debute na direção de Kogonada, com os filmes de Yasujirô Ozu. Além do próprio fato do nome usado pelo diretor ser uma homenagem do conhecido vídeo ensaísta a Kogo Noda, colaborador de roteiro habitual do grande cineasta japonês, o longa é também um que busca seguir a cartilha do cinema de Era Uma Vez em Tóquio e Pai e Filha, empregando planos abertos que pautam a narrativa pelos ambientes ocupados pelos personagens e seus dramas.

As semelhanças e a influência de Ozu, porém, começam e se encerram na parte estética da produção, pois fora da dimensão visual perfeccionista (e, naturalmente, bela) o estreante diretor sul-coreano demonstra ter interesses muito diferentes de seu ídolo japonês. A começar pela própria relação dos ambientes com a história a ser contada no filme que, mesmo que pautada por relações familiares, está longe desta desconstrução de valores proposta pelo falecido mestre cineasta em sua extensa obra.

A trama, escrita pelo próprio Kogonada, acompanha Jin (John Cho) e Casey (Haley Lu Richardson), dois indivíduos que estão na Columbus do título e passam por momentos muito distintos de suas vidas. Ele, coreano de educação estadunidense que trabalha na tradução de livros, vem aos Estados Unidos para acompanhar o pai enquanto este - um famoso arquiteto - encontra-se em um coma crítico no hospital da cidade; ela, nascida na região, está em conflito entre sair para o mundo e fazer a faculdade e ficar em casa e cuidar da mãe. Conhecendo-se por acaso um dia, os dois passam a sair juntos para discutir arquitetura, um assunto que é paixão dela e tema recorrente na rotina dele graças ao pai.

São dessas conversas que o longa então passa a trabalhar a sua narrativa, e é daí que já se percebe as diferenças de direcionamento entre aprendiz e mestre. Tal distinção se faz por meio de uma inversão de raciocínio bastante pontual: se em Ozu os ambientes serviam para dimensionar a rotina e compreender as mudanças em curso sentidas pelos personagens, Columbus funciona em cima da maneira pela qual seus personagens afetam o cenário, transformando-os em seus universos particulares à partir de suas próprias experiências. É um exercício de intimidade a ser sentido pela arquitetura dos espaços, tema que Kogonada põe de central na obra sem muita sutileza em momentos como a resposta suprimida de Casey sobre o porquê de certo prédio ser seu favorito (na hora, observa-se apenas o brilho de seu olhar na hora de sua explicação) ou a passagem que mostra uma faxineira limpando o apartamento de Jin, uma cena capaz de sozinha evidenciar a fragilidade da noção do espaço como memória - afinal, aquele microverso criado pelos personagens não deixa de ser só um espaço ocupado por cadeiras e espelhos.

Mas se o diretor segue no caminho inverso de outros cineastas admiradores de Ozu (como Ira Sachs e seu recente Melhores Amigos) no que diz respeito a ambições temáticas, seu filme não deixa de ser um emulador das mesmas emoções tocantes deste cinema. O que o atrapalha a princípio neste debute, entretanto, está nas próprias características da trama e no jeito como ele a aborda, pois a história no fundo não consegue ser o veículo ideal para suas ambições temáticas. Além do paralelo traçado entre os dramas dos dois protagonistas ser frágil demais para entregar a profundidade emocional requerida (o longa se basta em unir seus traumas de separação pelo viés das diferentes idades), a produção também termina por privilegiar sua visão arquitetônica dos espaços em detrimento dos personagens, o que contribui para tornar o todo um tanto artificial - talvez o que mais deixa claro esta tendência são os coadjuvantes, restritos a executar suas funções na história e privados de qualquer arco emocional.

Isso não significa, porém, que Columbus passe sem conseguir transmitir qualquer sinal de emoção, muito pelo contrário. Se Kogonada sofre com os típicos dilemas de quem está começando a formular uma visão própria de cinema, indeciso entre emular suas inspirações e seguir caminho próprio, suas decisões estéticas e narrativas estão suficientemente bem costuradas para dar ao filme momentos de intimidade muito tocantes, refletidas em espaços vazios que são capazes de conduzir a dramaturgia da cena como o encontro privado de Jin com a assistente do pai (Parker Posey) enquadrado pelos espelhos do apartamento. Este é sem dúvida o tipo de benção esperado dos aprendizes de Ozu, e ver isso materializado na tela é sinal de que a carreira do diretor está no rumo certo.

Nota: 6/10

domingo, 27 de agosto de 2017

Crítica: O Castelo de Vidro

Apoiado em Woody Harrelson, adaptação torna trauma em experiência de formação.

Por Pedro Strazza.

Em determinada altura de O Castelo de Vidro, quando as dinâmicas familiares desfuncionais do filme já estão bem estabelecidas e a trama passa a acontecer primordialmente no passado, a jovem protagonista Jeannette (Ella Anderson) sai de um quarto com os seus três irmãos para brincar no quintal da casa e se depara com os seus pais, Rex (Woody Harrelson) e Rose Mary (Naomi Watts), gritando a plenos pulmões um ao outro na sala. Habituados à cena, as quatro crianças seguem o seu caminho e passam a tentar distrair a mais nova do momento difícil fazendo-a brincar de pular corda, mas esse esforço de ilusão logo é descartado quando o pai delas, bêbado, quase joga a esposa pela janela do primeiro andar e elas tem de socorrer a mãe antes que ela morra. Filmada inteira em plano-sequência, a cena só é interferida no intuito de mudar o ponto de vista: se tudo era acompanhado até então pelo olhar de Jeannette, na hora em que os filhos chegam à janela para impedir a morte da matriarca a montagem corta para a visão da caçula do acontecimento, sem dúvida assustada com o que se sucede à sua frente e traumatizada com o evento.

Este corte passa quase despercebido em meio ao caos da situação, mas é importante para deixar claro ao espectador qual é o objetivo do diretor Destin Daniel Cretton com a história, a adaptação do livro de memórias homônimo da jornalista Jeannette Walls sobre a infância incomum e sua relação difícil com os pais no período. Embora o filme encene o drama central nos anos 90, com a protagonista agora adulta (Brie Larson) mostrando dificuldade em incluir Rex e Rose em sua vida, grande parte da estrutura deste drama está no passado e na formação familiar de Jeannette, que viveu quase como um nômade enquanto sua família viajava pelos Estados Unidos à procura de um lugar barato para ficar. O sonho de vida do pai, inclusive, é o de dar aos pequenos e à mulher um lar digno de castelo, construindo uma casa feita inteira de vidro que nutra as crianças de raios solares, permita à esposa pintar quando ela bem quiser e os deixe observar as estrelas ao anoitecer.

São planos, porém, que sem surpresa irão se desfalecer frente à dura realidade enfrentada pelo chefe de família, que não só mostra dificuldades para manter a mulher e os filhos em um mesmo lugar como também tem um problema sério com a bebida. Trocando o sustento familiar pela garrafa, imerso em sonhos que nunca serão realizados e brigando constantemente com Mary Rose (a exemplo da cena descrita acima), Rex não deixa de ocupar no longa a figura clássica do pai movido pelo trauma sobre si mesmo - em todos os abusos cometidos por sua mãe Erma (Robin Bartlett) e revelados ao longo da narrativa - ou para os filhos, e é justo aí que a temática de O Castelo de Vidro aparece.

Apesar de ensaiar a princípio um flerte com o conflito geracional, com pais e filhos em choque pelos diferentes cenários que viveram e foram criados, a produção está melhor alinhada com esta tragédia emocional a acometer a protagonista, não importando se ela se manifesta ou não fisicamente em sua vida. Anunciada com certa discrição no início, com o flashback que mostra Jeannette indo parar no hospital graças à omissão da mãe, o trauma reverbera no crescimento da jovem da mesma forma que a marca da queimadura oriunda deste acidente permanece em seu corpo, uma ferida profunda capaz de torná-la mais e mais distante dos pais a ponto de fazê-la renegar o passado enquanto tenta rumar para o futuro ao casar com o bancário David (Max Greenfield).

Deste conflito interno, movido pela incapacidade da personagem em lidar com essas antigas reminiscências familiares, O Castelo de Vidro com surpresa rege o drama em um caráter quase conciliador. Cretton evita guiar o roteiro escrito por ele e Andrew Lanham pelo caminho esperado da negação e superação, optando por abordar a história de vida de Walls sobre um ângulo de formação; mesmo que recuse com naturalidade a lógica do trauma ser benéfico àquelas crianças (poucas coisas são tão pejorativas ao olhar quanto a visão de um menor sendo abusado, e o cineasta inclui este momento afim de reivindicar esta posição), o diretor entende as marcas profundas deixadas pelos pais como parte da construção da identidade dos filhos e a serem assumidas por estes muito depois. Isso nos leva de volta ao corte do plano-sequência, talvez a síntese deste processo não reconhecido a ser descoberto e que conduz o longa independente da forma pela qual esta cicatriz se manifesta.

Estruturado a narrativa sob esta temática maior, Cretton não interfere muito na história e permite que o peso dos acontecimentos e atos pautem o filme, deixando aos atores conduzir os momentos mais difíceis. Esta preferência ao convencional tende a prejudicar a produção conforme ela depois torna o seu motor conciliador numa ferramenta para a redenção típica de cinebiografias - as bolas fora se acumulam quando Rex termina seu arco sendo perdoado de seus erros -, mas ela também se torna um veículo ideal para Harrelson entregar uma atuação poderosa como o patriarca responsável por grande parte dos danos. Se Larson, Watts e o restante do elenco carregam muito bem a dinâmica proposta pelo diretor, cabe ao ator e seu trabalho expansivo preencher as lacunas da aparente contradição desta análise, criando uma aura que ao mesmo tempo atrai e repele aqueles que ama e também o espectador.

Não deixa de ser um movimento curioso mas também esperado que a performance de Harrelson, então, se torne o fio condutor ideal para a materialização deste verdadeiro suplício que O Castelo de Vidro trabalha nas entrelinhas. Se o filme flerta demais com o melodrama mal intencionado, o ator é capaz de reorganizar o longa sob este olhar trágico sem tirar a centralidade das duas atrizes protagonistas, reforçando na tela a importância do ato de reconhecimento deste processo de formação doloroso, carregado na queimadura permanente, no duro aprendizado para nadar ou no trauma a nunca ser superado.

Nota: 7/10

sábado, 5 de agosto de 2017

Crítica: Planeta dos Macacos - A Guerra

Fim da jornada de César se consuma em épico bíblico masculinizante de macacos.

Por Pedro Strazza.

[Esta crítica aborda reviravoltas da trama. Se você ainda não assistiu o filme, leia por sua própria conta e risco]

Desfecho de uma trilogia iniciada sob olhar de desconfiança e que provou seu valor em meio a uma miríade de tentativas dos estúdios de reinserir sucessos do passado sob uma nova roupagem contemporânea, Planeta dos Macacos - A Guerra é um filme que desde os seus primeiros momentos sabe muito bem da existência da carga dramática ao seu redor. Seja a gravidade adquirida no conflito entre humanos e macacos, o futuro previamente determinado que cada vez mais está próximo de sua realidade ou o próprio teor de capítulo final que no geral domina os terceiros episódios das séries cinematográficas, o longa de Matt Reeves parece enfim reconhecer o peso das múltiplas tragédias dos outros capítulos e usa disso como uma força motora primária, abandonando o teor de experimento controlado para abarcar o tom do épico antes apenas insinuado.

É uma mudança radical para a franquia se considerar que os antecessores adotavam certa desambição em suas histórias, preferindo tramas intimistas para depois refleti-las em uma escala maior. O truque está no roteiro: se os dois primeiros filmes tinham autoria de Rick Jaffa e Amanda Silver, A Guerra é escrito (além de Mark Bomback) pelo próprio diretor, que já havia exibido em O Confronto uma vontade muito explícita de levar o status da jornada do macaco César (Andy Serkis) a maiores alturas e aqui tem maior liberdade de materializar isso na tela. No longa, essa ambição se inaugura com velocidade na abertura, que acompanha uma operação de ataque de tropas militares humanas contra os símios sob referências da Guerra do Vietnã e de conflitos da exploração da América, colocando sob contraste o armamento e figurino de guerra dos soldados do Coronel de Woody Harrelson com a fortaleza de troncos e os arco-e-flecha dos macacos.

O Vietnã em si permanece uma diretriz constante na produção, mas o que a narrativa desenvolvida por Reeves persegue mesmo é o tom grandioso dos épicos bíblicos, uma opção possível graças à semelhança do arco de liderança do protagonista com o da figura de Moisés. Neste terceiro capítulo, essas similaridades são tratadas como núcleo central da obra - ele não hesita em tratar os macacos sob a ótica dos judeus e seu sofrimento para chegar à Canaã - na mesma intensidade com que o longa se comporta como o típico filme masculino, algo bastante evidente na trama de vingança percorrida por César e o uso das poucas personagens femininas de alívio e esperança às tormentas da realidade. É uma combinação forte e bem trabalhada pelo diretor, que faz a história atravessar por diferentes subgêneros (o faroeste, o pós-apocalíptico e mesmo o de guerra, todos acenados na trilha sonora de Michael Giacchino) sem nunca perder de vista esta estrutura maior.

O que o novo Planeta dos Macacos não percebe neste processo - e que mina a intensidade de suas maiores qualidades - é o quão segmentado o seu roteiro fica nesta abordagem, ainda mais porque o longa insiste em manter certa individualidade no arco de seu protagonista no épico que lidera. Além da obra dar a sensação constante de ser pautada por cenários independentes (a floresta, o esconderijo, a vila abandonada, a fortaleza) ao invés de acontecer o contrário, a cruzada de César para encontrar e matar o Coronel separa o seu sofrimento do vivido por seu povo, cujas mortes são retratadas na tela com toda a violência possível para uma classificação indicativa baixa. A produção faz isso com um objetivo preciso - sumarizado na tocante cena das jaulas e do reencontro de César com sua missão graças à jovem humana Nova (Amiah Miller) -, mas a ação termina por redirecionar grande parte da escala buscada por A Guerra a fins intimistas sem possuir qualquer intenção nesta troca.

A medida provoca um efeito curioso na franquia, pois se nos outros dois o problema era o filme ter ambições maiores que a história permitia aqui ocorre justo o reverso, com o diretor optando por decisões acanhadas dentro de uma trama extremamente ambiciosa. Em outras situações isso seria um erro fatal - César ao longo dos outros dois capítulos foi construído sob a figura de líder e neste desfecho ele trai esta lógica por completo -, mas Reeves é capaz de fabricar desta aparente inoperância uma variedade de passagens recompensadoras, beneficiado ainda pelos efeitos visuais responsáveis pela animação dos macacos estarem afiadíssimos. Embora se comporte no fundo como uma grande amálgama de sets pieces distintas e perca o ritmo à partir da situação no quartel dos militares, o terceiro episódio consegue se passar como uma obra mais uniforme pelo sentimentalismo que reproduz nos pequenos momentos de alívio dentro de todo o sofrimento imposto, seja nos macacos prisioneiros conseguindo alimentação ou em cenas inocentes como a de uma criança interagindo com um gorila - até mesmo o Bad Ape, claro alívio cômico vivido por Steve Zahn, ocupa certa responsabilidade aí.

Isso porque A Guerra, assim como A Origem e O Confronto, perpetua em seus melhores momentos a noção da dor causada pela perda da inocência, um elemento que se nos outros dois capítulos era capaz de redimir o protagonista frente ao ódio dos homens neste terceiro se torna enfim em sua condenação. Se na Bíblia Moisés não podia entrar na terra prometida por ter sido infiel a Deus, à César a entrada no Planeta dos Macacos não é permitida por todo o seu ódio criado e usado para salvar e dar segurança ao seu povo, uma atitude que como seu semelhante religioso o restringe a apenas contemplar os feitos e entrar para a História antes do último suspiro.

Nota: 7/10