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segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Vecchiali, cinema e divagações

Ou também "acertando as contas com o passado".

Por Pedro Strazza.

2019 é um ano relativamente importante para O Nerd Contra-Ataca: no próximo dia 14 de dezembro, este blog completa nada menos que dez anos de vida.

Dez anos.

É uma data que certamente exige algum tipo de comemoração, embora por aqui o que aconteça no fundo vá passar mais por fins de demarcação. Os trabalhos devem continuar ativos por aqui no atual esquema das coisas - difuso, irregular, porém presente - mas até chegarmos ao fatídico aniversário devo (e quero) fazer maiores experimentações com este blog, algo que talvez tenha começado agora com esta escrita em primeira pessoa tão atípica e improvisada.

Antes de tratarmos do futuro, entretanto, é preciso acertar contas com o passado - ou, no caso, o meu passado. Faz pouco mais de um ano que, durante a 41° Mostra de Cinema de São Paulo, eu tive a oportunidade de entrevistar o Paul Vecchiali, grande diretor francês que na época estava sendo homenageado pelo evento com uma retrospectiva de sua carreira e o prêmio Leon Cakoff. Admito que para mim foi um momento de grande felicidade profissional, pois na época já era fã de seu cinema e estar frente a frente com um cineasta do qual se admira é sem dúvida daqueles momentos inenarráveis da vida.

O problema é que, bem, o material nunca foi publicado por erros meus. A matéria deveria ter saído no B9 durante a época do festival, mas como estava em meio às turbulências do fim de ano e do fim de ciclo universitário eu só consegui ter tempo de aprontar a transcrição da entrevista quase uma semana depois do fim da Mostra - e como não havia sinal (ou houve também, dado que ele permanece inédito) de que o filme que Vecchiali lançava no evento ia chegar ao circuito, acabei me vendo obrigado a arquivar a conversa.

Desde então este material me atormenta, pedindo para sair em algum lugar, em algum momento. Por isso, resolvi aproveitar o novo começo de ciclo do calendário para libertá-lo de minhas correntes de insegurança - até porque o material é bom demais para permanecer escondido.

Antes de ler a entrevista, querido leitor, acho válido atentar e reforçar algumas questões de contexto: esta entrevista foi feita poucos dias depois (senão no dia seguinte, com o perdão da ausência de memória) de Vecchiali ter feito a estreia global de seu então novo trabalho, Os Sete Desertores, durante a 41° Mostra de São Paulo em 2017 - muito antes de seu Trem das Vidas e a Viagem de Anjélique ter sido lançado na 42° edição do mesmo evento. Como o começo da conversa deixa claro, por conta da correria do festival acabei não conseguindo ver o filme na época (e nem até agora, diga-se de passagem), o que abriu margem para que eu pudesse focar em algumas questões específicas da carreira e do cinema do diretor.

Vale também avisar que, por conta de uma barreira de língua (Vecchiali só fala francês), toda a discussão foi intermediada com uma ajuda divina de uma tradutora, que fez o melhor para transmitir da forma mais fidedigna possível o raciocínio do entrevistado.

Posto tudo isso, gostaria de comentar que Vecchiali é uma pessoa extremamente fascinante de se conversar. Do alto de seus então 87 anos, ele mantém um apuro estético sobre sua pessoa que era muito evidente em seu echarpe de seda que usava ao mesmo tempo que preserva uma postura muito simpática com todos - algo que imagino, se deva em parte à maior atenção que recebe dos entusiastas cinéfilos de São Paulo, que na época compareceram em massa à sua retrospectiva.

O resto, bom, está na entrevista abaixo, que passa por todo tipo de tema e reflete muito da figura do entrevistado - além das aparentes inabilidades do entrevistador, se vale o exercício de auto-julgamento.

Feliz ano-novo a todos.

Queria começar dizendo que não consegui ver seu novo filme ['Os Sete Desertores'], infelizmente.

Ele é muito bom [risos], mas a cópia não é boa. É um arquivo comprimido que mandaram, é um som estéreo e não 5.1 e a imagem está mexida. Mas a cópia que chegou é em DCP, então as próximas projeções são boas.

Aproveitando o gancho, o filme está tendo sua première internacional na Mostra. Você decidiu lança-lo aqui por algum motivo especial ou foi por janela de oportunidade?

Não, na verdade ocorreu porque o filme tinha acabado de ser finalizado e o Rafael do Audiovisual do Consulado disse que ele tinha que ser colocado na Mostra. Esse filme também está em competição no festival de Gijón, na Espanha. Eles protestaram um pouco, eles queriam ter a estreia internacional lá, mas eles acabaram aceitando e disseram que ia ser uma ‘estreia europeia’. Mas a estreia internacional será aqui [risos]. O primeiro público que verá o meu filme são os brasileiros.

É uma honra, devo dizer.

Para mim também. [risos]

Você já sabia desde a infância que queria trabalhar com cinema, mas você chegou a atuar como crítico pela Cahiers du Cinema. O que levou você a trilhar este caminho?

Eu fiz tudo ao contrário. Minha mãe queria que eu estudasse, fizesse faculdade, e eu fiz a Escola de Engenheiros de Paris, também conhecida como a Politécnica de Paris, que é muito famosa. Depois eu fui para a Argélia pra fazer a guerra – o que explica o filme Os Sete Desertores, em que um dos personagens me representa. Fazendo um parênteses rápido, eu tenho uma relação de amizade com o Godard e sou anarquista, e o Godard me perguntou na época "Você é anarquista, porque você foi pra guerra na Argélia?". Eu respondi que eu não queria ser responsável pelos atos daquele que ia me substituir, e você vai escutar isso no filme se você for assistir.

Voltando da Argélia, eu vi o ‘Acossado’, de Godard, e o ‘Lola, A Flor Proibida’, de Jacques Demy, e eu pensei na época "Se eles podem fazer isso, eu também posso". Eu fiz um longa-metragem e um curta, depois eu me tornei primeiro-assistente dos diretores e aí sim eu entrei na crítica.

Mas o que te levou à entrar na crítica?

Eu assinava a Cahiers du Cinema e não estava de acordo com tudo que a revista dizia. Um dia eu enviei uma carta muito agressiva, e me responderam dizendo que ela não poderia ser publicada. Mas eles acharam que eu tinha razão, então me colocaram para escrever na Cahiers. Eles substituíram Eric Rohmer por Jacques Rivette como editor-chefe da revista, o Rivette leu minha carta e me pediu pra escrever sobre um filme de Sam Peckinpah, ‘Pistoleiros do Entardecer’. Depois disso eu escrevi algumas críticas pra eles, incluindo uma sobre Robert Bresson que ele me agradeceu muito. 

Um dia o Jacques Rivette não quis um artigo que escrevi e o texto apareceu na íntegra na revista assinado por outra pessoa, e foi aí que eu me despedi de lá. Daí eu fui escrever para outra revista chamada Imagem e Som, e lá eu tenho cerca de 200 críticas escritas. Isso tudo acontecia quando eu já era diretor.

Você se manteve bastante ocupado, devo dizer.

Eu posso trabalhar a vida inteira. O cinema é minha vida.

Um de seus trabalhos mais conhecidos é o 'Once More', que foi um dos primeiros filmes a lidar com o tema da AIDS, um assunto que não era muito fácil de se abordar naquele momento. Como você chegou ao tema?

Sim, sim, não era fácil. Eu não tenho medo da dificuldade, quando eu tenho vontade de fazer algo eu faço. Eu fazia uma série policial blockbuster muito violenta de sete episódios de uma hora, e na época eu escutei Charles Pasqua [Ministro do Interior entre 1986 e 1988, durante o governo de Jacques Chirac] dizer publicamente que a AIDS era um castigo divino para os homossexuais. Eu fiquei furioso. Teria agido da mesma forma se essa frase tivesse sido dita sobre os judeus ou os negros. Fiquei com tanta raiva que acabei escrevendo o roteiro do filme em dois dias, no fim de semana porque estava trabalhando, filmando a série. Depois disso não mudei uma palavra do roteiro.

Devo admitir, pra mim isso é algum tipo de recorde de velocidade de escrita [risos].

[risos] Houve vezes em que escrevi mais rápido. ‘Rose la Rose, fille publique’ foi escrito em uma manhã, eu sonhei com o filme durante a noite e quando acordei resolvi colocar no papel. Já ‘En Haut des Marches’ eu demorei cerca de quatro anos para terminar. Não é algo sistemático, tem coisas que vem mais rápido e outras não.

Desviando da minha pergunta por um momento, quando você está concebendo seus filmes você pensa primeiro numa narrativa, em um tema ou em uma história? Seus filmes são tão diferentes entre si, isso me deixa curioso.

Depende do filme. Eu não posso fazer duas vezes o mesmo filme. Uma vez uma distribuidora, depois de eu ter feito ‘Rose la Rose’, me propôs um contrato com muito dinheiro pra fazer mais um filme sobre uma prostituta, e eu neguei dizendo que já tinha feito um. Os meus dois últimos filmes, ‘Os Sete Desertores’ e um que ainda não foi lançado e que se chama ‘Trem das Vidas’, eu fiz ao mesmo tempo e são completamente diferentes, não tem nada a ver um com o outro.

Funciona para você fazer dois filmes diferentes ao mesmo tempo, sob esta perspectiva?

Essa foi uma decisão do produtor e não do realizador, mas eu que sou o produtor, então... [risos]. Ele me disse ‘Faça um filme todo passado em cenários exteriores, no caso Os Sete Desertores, e outro todo passado no interior, que é o Trem de Vida’. Eu sou louco de fazer tudo ao mesmo tempo, mas funciona: se chove enquanto filmo no exterior, vou pra dentro e filmo o interior. São os mesmos atores e os mesmos técnicos, mas acho que isso é óbvio [risos].

Voltando ao Once More, como foi a recepção do público na época?

O filme na época saiu primeiro na competição do Festival de Veneza e ele recebeu o prêmio da crítica e do público. Eu tenho uma história interessante sobre esse momento: Eu estava em um restaurante e acabei ficando posicionado de costas para Sergio Leone, que era o presidente do júri daquele ano e não me conhecia na época. Sem saber que eu estava atrás dele, ele disse [sobre o ‘Once More’] "Este filme é uma obra-prima, mas eu não posso permitir que ele ganhe o prêmio".

Ele disse mais alguma coisa depois disso?

Não. Eu desprezo ele, e felizmente não gosto dos filmes dele. Essa postura dele estava ligada ao tema da homossexualidade. O meu filme foi o primeiro da competição a passar no festival. No dia seguinte, os jornais italianos registravam catorze críticas, todas registrando cinco estrelas a ele, era o máximo, e depois eu fui obrigado a escutar isso.

Depois disso o filme estreou na França e foi mal recebido. Ele foi mal recebido pela população feminina e pelos homossexuais.

Você saberia o porquê disso?

Não, mas há dois anos o filme passou de novo no Festival de Cannes, numa sala cheia com mulheres, homossexuais e todo tipo de pessoa, e teve ao final da sessão vinte minutos de ovação. Eu acho que precisava de tempo para que as pessoas entendessem.

Entendo. Consigo imaginar a dificuldade que tenha sido tratar desse tema na época.

É, ainda mais porque foi o primeiro filme a tratar desse assunto. O que as pessoas mais criticavam na época era que eu estava querendo desdramatizar a situação. Tem uma frase da época que diz que havia milhões de vírus na sombra esperando que o da AIDS passasse de moda, e isso aconteceu. Eles achavam que isso era uma ofensa, mas na verdade foi exatamente o que aconteceu.

O filme foi aplaudido em Veneza, teve críticas excelentes, a Cahiers du Cinema elogiou bastante, mas o público teve uma reação bastante reticente, quase agressiva a ele. Agora, quando ele é exibido novamente, as sessões ficam cheias e as pessoas gostam do filme.

Sinal dos tempos. [risos]

[risos] Sim, sim. Mas agora eu não posso esperar 35 anos pelos filmes que eu faço agora [risos].

Aproveitando que você tocou no tema da sua produção recente, ela se diferencia bastante dos filmes anteriores. O que levou a isso?

O que mudou é que, à medida que fui ficando velho, eu quis prestar homenagem aos filmes e cineastas que me fizeram sonhar e que admirava. Há mais citações e referências em meus trabalhos agora, além das técnicas terem se ampliado, mas pra mim a minha narrativa fílmica é a mesma.

Hoje em dia há algum diretor contemporâneo cujo cinema te atraia?

O único cineasta que me interessa hoje é Laurent Achard. O que me desagrada no cinema desses últimos anos é que o texto, os diálogos desapareceram; eles são muito comuns. No cinema americano e no cinema francês há uma maneira de interpretar que se diz natural mas é totalmente artificial. Todos os atores e atrizes hoje atuam quase que mecanicamente, é horrível. Falta conteúdo, eles parecem marionetes.

segunda-feira, 11 de junho de 2018

"O cinema pode achar lugares mais incorretos" afirma diretor de Los Territorios

Conversamos com Iván Granovsky sobre a exploração dos limites entre ficção e realidade de seu primeiro longa-metragem.

Por Pedro Strazza.

Selecionado para o Festival de Roterdã deste ano, o argentino Los Territorios parte de uma premissa que é um tanto inusitada mesmo para o campo que adentra, no caso os limites entre os macrogêneros da ficção e do documentário. Situado em um momento posterior ao ataque terrorista à sede do periódico Charlie Hebdo, o longa de estreia do argentino Iván Granovsky percorre uma jornada um tanto fútil com base nas desventuras de seu protagonista, um jovem que ao mesmo tempo é e não é o seu diretor. Entrevistas não faltam ao filme, mas enquanto personalidades como o ex-presidente Lula, o presidente boliviano Evo Morales e até mesmo o jogador de futebol argentino Lavezzi acumulam uma boa carga de realidade ao projeto, outras tantas cenas da vida pessoal do autor mergulham a produção constantemente na fantasia por não encenarem nem por um segundo a verdadeira versão dos fatos ocorridos.

"Eu acredito que este filme não seja um documentário, ele é uma ficção que ocupa elementos da realidade" diz Granovsky em entrevista ao O Nerd Contra-Ataca, feita numa tarde fria e com alguma garoa durante a divulgação do lançamento do projeto no Brasil. "Eu queria fazer um filme que não tivesse tanto respeito por temas tão delicados" ele continua, se referindo ao próprio caráter efêmero do longa que depois ele define como um tipo de cinema mais "incorreto" que outros cineastas poderiam estar seguindo ao abarcar os conflitos da realidade. Esta irreverência ao trabalhar conflitos sociais ao redor do mundo, afinal, é o que essencialmente define a produção, ainda mais porque todos estes assuntos "delicados" acabam sendo um pouco esvaziados de sentido conforme o diretor estrutura uma narrativa que, em suas palavras, se iguala à prática de ler um jornal: "A gente como consumidor de notícias acaba não recebendo todas as notícias: Às vezes elas chegam até você, outras não, às vezes você consome mais uma coisa que a outra. É esta aleatoriedade que eu queria abordar." confirma o cineasta à nossa reportagem.

Confira nosso papo com o diretor a seguir. Los Territorios atualmente se encontra em cartaz nos cinemas de Brasília, Curitiba, Fortaleza, Goiânia, Palmas, Porto Alegre, Rio Branco, São Paulo e Vitória.


No filme há bandeiras de vários países que são colocadas na tela, mas só a da Argentina, seu país de nascimento, aparece invertida. Por que isso?

Eu acho que as bandeiras são só desenhos, eu não acho que elas sejam representações dos países. Para mim o que representa um país é muito mais do que uma bandeira, mas eu adoro bandeiras como desenhos, então achei que poderia fazer uma piada com o desenho da Argentina porque eu não tenho respeito por símbolos que são para a guerra. É uma coisa que só os argentinos sabem, mas a bandeira com o Sol era o jeito que a Argentina tinha de bradar sua conquista sobre os índios e sua vitória contra o Paraguai, enquanto que a bandeira sem o Sol era aquela que não ia para a guerra. Eu achei que tinha que fazer uma piada com isso, uma espécie de provocação.

A narrativa de seu filme é muito particular, ela parte dos vários percalços de sua história pessoal ao longo dos anos e vai intercalando as diversas entrevistas obtidas por você em inúmeros bicos. O que levou você a estruturar o projeto em cima de sua pessoa ao invés destas entrevistas?

Eu tinha mais interesse em fazer da narrativa do filme mais próxima da atividade de se ler um jornal. Quando você lê um jornal, você meio que faz a sua própria ordem de leitura: começa-se do início, do fim, pela seção de esportes ou de política. É também como assistir TV, em que você vai zapeando os canais até encontrar um conteúdo que lhe agrade. Eu gostava desta ideia de que nós estamos sempre mudando nosso foco para diferentes assuntos, e eu queria que este filme proporcionasse esta mesma sensação. Então por conta disto eu não achava que os conteúdos destas entrevistas não eram tão importantes, o importante era a forma.

E depois há também um viés que é mais político em mim sobre cinema e documentário, porque eu acredito que este filme não seja um documentário, ele é uma ficção que ocupa elementos da realidade. Para mim, o diretor de documentário é muita soberbia, ele acredita que pode falar de qualquer coisa como se fosse Deus e sempre tem muito respeito pelo conteúdo, e eu queria fazer um filme que não tivesse tanto respeito por temas tão delicados como a questão palestina. Não que eu não tenha respeito pela causa palestina, eu só pró-Palestina, mas eu acho que o cinema pode achar outros lugares mais incorretos.

Você quer dizer então que você quis imbuir um caráter efêmero às narrativas tradicionais, é isso que você está dizendo?

Isso e que a gente como consumidor de notícias acaba não recebendo todas as notícias: Às vezes elas chegam até você, outras não, às vezes você consome mais uma coisa que a outra. É esta aleatoriedade que eu queria abordar.

Aproveitando que você tocou neste assunto dos limites entre ficção e documentário, o filme mostra vários das relações pessoais que você nutriu ao longo destes últimos anos, seja com a família, as equipes que te acompanharam ou mesmo casos românticos que você teve, e muitas vezes estas cenas partem de uma dinâmica de encenação muito clara aos olhos do espectador, especialmente na cena que mostra você e seu pai discutindo e o microfone aparece. Por que inserir estes momentos?

A gente [a equipe] sempre esteve em um número reduzido, óbvio, e a ideia do cinema metalinguístico nunca foi pensada. Ela acontecia naturalmente, quando eu falo com meu pai na Argentina o microfone aparece porque eu acho que o cinema tinha que aparecer naquele momento, tinha que ficar um pouco mais claro que era encenação porque a cena seguinte mostrava como minha mãe estava custeando a minha próxima viagem. E era isso, às vezes era mentira, às vezes era verdade, e eu acho que quando eu mostro a equipe é pra ajudar a esclarecer como o filme no fim é uma grande construção. Por isso o filme não é político, mas sim interiorizado.

Então todas aquelas cenas com as namoradas não eram reais?

Isso, nenhuma delas foi minha namorada. Além desta discussão entre ficção e realidade, eu sempre penso no relato. Então se a imagem real é melhor para o relato, ótimo, vamos colocar a imagem real, mas se for melhor a imagem de ficção, então vamos colocar a ficção. Um bom exemplo é a personagem da tradutora basca: ela era uma atriz, mas a gente na hora de gravar falou para ela “Olha, nós não temos um roteiro desta cena, mas precisamos que você responda nossas perguntas nas duas línguas e estas perguntas são como se você estivesse dando uma entrevista. Então você responde como se fosse real.”. Mas como ela é atriz, ela trazia algo a mais para o filme neste momento, então a gente fazia muito este jogo durante as filmagens. Mas claro, há momentos que são reais, como as entrevistas com os políticos ou a cena na zona de guerra palestina.

Nestas cenas reais, houve uma que mais te marcou neste processo?

Talvez seja meio clichê dizer isso, mas as cenas que mais me marcaram foram na Palestina em que a gente viu este deslocamento das pessoas em meio à guerra. Esta foi a parte mais forte da produção, mas o momento mais intenso do filme foi a entrevista com Miki Kratsman, que dirige a Breaking the Silence, pois eu lembro que quando a gente foi fazer a fala ele estava resignado, e eu já não sei se isso foi parar no filme ou não mas ele disse naquele momento que o conflito não tinha nenhum fim. O Miki é alguém que está bastante imerso naquela situação, então tinha pra mim uma coisa de olhar a resignação de uma pessoa que é muito forte; eu lembro que eu olhei para trás e vi meu produtor e o meu fotógrafo quase chorando.

Outro momento que eu acho muito forte mas que é muito pequeno no filme é a cena do engarrafamento na Palestina, em que a câmera tá se mexendo muito e ouve-se o chofer gritando muito. Aquele momento foi muito intenso para a gente porque a gente entendeu que, além da violência militar e do sofrimento bélico sentido pelos palestinos, tem uma coisa muito mais normal que é como o caos é local. Foi um engarrafamento gerado no meio do nada só porque uma parte do exército israelense bloqueou a entrada do povo palestino dizendo que tinha uma célula do Hamas ou algo do tipo, e por conta do bloqueio de uma rua por esta justificativa sete quilômetros de trânsito foram criados, porque os palestinos só tem uma estrada para entrar na Palestina. Então quando você vê isso, que é a coisa doméstica, você não está vendo os mortos ou balas, mas você está vendo os efeitos da guerra no cotidiano das pessoas e aí que você se toca que elas estão sofrendo com isso todos os dias. O problema não é que elas sabem que vão morrer, o problema é que elas sabem que vão morrer e que a vida delas é muito ruim. E acho que o filme no fim mexe um pouco com isso, porque estes conflitos estão muito mais ocultos do que se imagina.

quinta-feira, 5 de abril de 2018

A Arábia do desencanto

Conversamos com os diretores de Arábia sobre o filme que estreia nesta quinta nos cinemas brasileiros.

Por Pedro Strazza.

Affonso Uchoa e João Dumans nunca estudaram em uma faculdade de Letras, mas o conhecimento de ambos sobre literatura pode levar qualquer um a concluir o contrário. Embora sejam de pontos diferentes do interior de Minas Gerais - o primeiro é de Contagem, o segundo de Ouro Preto - os dois cineastas viram o interesse fervoroso por obras literárias nacionais e internacionais unir suas carreiras profissionais quando ambos trabalhavam em A Vizinhança do Tigre, o trabalho de estreia de Uchoa na direção.

Foi da vontade de ambos de incorporar traços de um movimento literário particular da produção nacional ao cinema, inclusive, que nasceu Arábia, projeto escrito, filmado e montado pela dupla ao longo de quatro anos. "Nossas referências mesmo tem mais a ver com a literatura moderna brasileira de Graciliano Ramos, de João Antônio, de Oswaldo França Júnior e etc, que eram coisas que a gente lia e que tinham uma tradição artística brasileira que para nós estava um pouco esquecida" afirma Dumans em entrevista ao O Nerd Contra-Ataca, feita durante a divulgação do filme que estreia nesta quinta-feira (4) nos cinemas brasileiros; "Existe uma tradição literária forte no Brasil, especialmente na primeira metade do século 20, que tem a ver com tentar construir um retrato do país e da realidade brasileira através da perspectiva dos trabalhadores e de pessoas comuns. E isso pra gente era uma coisa muito marcante, tanto como gesto artístico quanto como gesto criativo" ele continua.

Dumans se refere, claro, a Cristiano, personagem interpretado por Aristides de Sousa que faz na história uma pequena odisseia trabalhista pelo Estado em busca de bicos para sobreviver. Esta jornada interiorana também parte de outra origem do filme, que a princípio tinha seu trajeto determinado de forma a conectar as duas cidades natais de seus diretores, determinando uma conexão íntima entre a História e o cenário de Minas. Foi uma noção que depois acabou sendo alterada - Dumans conta que a descoberta de uma indústria de bauxita há cinco minutos do centro histórico de Ouro Preto transformou a visão dos dois sobre o projeto - mas que ajuda o espectador a entender parte dos motivos pelo qual o filme pode lhe ser tão magnético em seus ciclos trabalhistas tão bem encadeados na narrativa poética amarrada pelos cineastas.

Outro destes motivos reside na própria performance de Sousa, cuja atuação e narração em off são capazes de impulsionar o misto de simplicidade pessoal e complexidade mística que paira sobre seu papel. Mas o trajeto de "Juninho" (como os diretores o apelidam carinhosamente), tal qual o seu personagem, foi bastante tortuoso: embora fosse um dos principais motivos para o projeto existir, ele foi parar na prisão por um ano e meio por conta de um crime pequeno que cometeu em meio a um momento difícil de sua vida. A depressão e a possibilidade de perder o trabalho no filme, porém, não o abateram, e três dias depois de ter terminado de pagar a sentença ele já estava no set trabalhando - um esforço que só acrescenta à admiração que Dumans e Uchoa nutrem pelo ator.

A grande gema preciosa de Arábia, porém, está no clímax final do filme, um grande monólogo dito por Cristiano na fábrica onde trabalha sobre o cenário que se situa. A cena, cuja sensação palpável de desencanto reflete no fundo um sentimento nacional nestes anos pós-lulismo e ajuda a canalizar todos os temas propostos pela produção, foi curiosamente pensada muito tempo depois, durante a montagem. "A gente filmou essas imagens depois de ter o filme pronto, e só fomos escrever o texto mesmo depois de já ter tudo praticamente montado, de já conseguir entender um ritmo" afirma Uchoa, enquanto Dumans diz que ambos gostam da ideia de trabalhar o filme na sala de edição sem saber qual será o final da história que contam.

Se a surpresa por esta imprevisibilidade da dupla é grande, não fique: o próprio método dos dois diretores para criar Arábia vive destas experimentações. Tanto que o projeto partiu como um média-metragem co-protagonizado por um jovem adolescente, que descobria a carta de Cristiano depois dele sofrer um acidente na fábrica. Ainda que tenha sido preservado como espécie de prólogo ao longa, a premissa inicial deste trecho reflete o que os dois classificam como "um processo de criação conturbado" no bom sentido. "O nosso método é meio bagunçado mesmo, a gente faz testes, experimenta ver se acontece e aí vai construindo as coisas a partir do que a gente tá vendo." comenta Dumans sobre este lado do cinema dos dois;  "A gente não consegue sentar em um escritório em Belo Horizonte e escrever uma história, fazer um casting de atores e colocar tudo na tela imediatamente. Essa não é a nossa onda, a nossa onda passa um pouco por experimentar nesses diferentes processos".

Confira o nosso bate-papo com Affonso Uchoa e João Dumans na íntegra a seguir.


Eu queria começar perguntando como é que vocês conceberam este projeto. Da onde ele vem? Ele é tão anômalo dentro da produção nacional e ao mesmo tempo não é, há algo de muito único dentro de toda a sua proposta.

JOÃO DUMANS: Bom, o filme começa um pouco antes e dentro do contexto onde estava fazendo outro filme chamado A Vizinhança do Tigre, que foi o primeiro longa que o Affonso dirigiu e eu também trabalhei. O A Vizinhança teve um processo muito longo, foi um filme que durou quatro ou cinco anos para ser finalizado e foi feito de uma maneira muito independente, com equipe pequena de duas ou três pessoas às vezes. E aí quando a gente estava fazendo A Vizinhança a gente resolveu pensar num outro filme que envolvia questões que para a gente eram importantes em relação às nossas origens - o Affonso é de Contagem e eu sou de Ouro Preto. E a gente queria trabalhar um filme que colocasse estes dois universos que são tão distantes, de uma cidade industrial como Contagem e de uma cidade histórica como Ouro Preto, e entendesse que ressonâncias e conexões essas cidades tinham. A gente tinha essa convicção de que tinha alguma coisa a ser explorada. 

Então o filme começou como uma espécie de cartografia de Minas Gerais?

JD: É, começou com uma cartografia que passava por esses dois lugares, que saía de um lugar contemporâneo para chegar num lugar histórico. Só que de repente a gente resolveu transformar esse lugar histórico também num lugar contemporâneo, vamos dizer assim, onde se pode pensar a situação real de uma cidade que está ali presa a uma certa imagem colonial, uma certa imagem arquitetônica e certos clichês visuais inclusive, mas que a cinco minutos deste centro histórico tá uma fábrica de bauxita que está instalada ali há 50 anos e que de certa forma reproduz uma estrutura de poder e de exploração que é muito parecida com que Ouro Preto tinha durante o século 18. Isso chamou muito a nossa atenção e a gente resolveu transformar esta vila operária de novo no centro do nosso filme. Ao mesmo tempo, existia vindo do Vizinhança esse personagem (essa personalidade na verdade) que é [interpretado pelo] o Aristides, que é o protagonista. E aí a gente resolveu começar a construir uma história em torno desse personagem histórico que nós mesmos escrevemos, mas inspirados um pouco pelo ator, que nós chamamos de Juninho. E aí construímos.

Na verdade, o filme tem muitas origens diferentes porque o processo foi muito longo, e aí várias coisas foram se depositando ao longo desse processo. Então primeiro tinha ideia desse encontro de cidades, aí tinha essa coisa do Juninho e da gente construir um personagem ficcional para ele. Tinha outros elementos que foram aparecendo, tinha nossa vontade de trabalhar com certas referências literárias que a gente tinha em comum...

E uma delas é o Arábia do James Joyce, presumo.

JD: Não só. Na verdade o Joyce era um disparador, mas nossas referências mesmo tem mais a ver com a literatura moderna brasileira de Graciliano Ramos, de João Antônio, de Oswaldo França Júnior e etc, que eram coisas que a gente lia e que tinham uma tradição artística brasileira que para nós estava um pouco esquecida. 

Vocês podem comentar um pouquinho mais sobre isso? Admito que fiquei curioso com este lado da produção.

JD: Existe uma tradição literária forte no Brasil, especialmente na primeira metade do século 20, que tem a ver com tentar construir um retrato do país e da realidade brasileira através da perspectiva dos trabalhadores e de pessoas comuns. Então de Grande Sertão Veredas a Vidas Secas e outros romances brasileiros, além do João Antônio Machado que traz um pouco da coisa regionalista para a cidade, tinha essa ideia de criar narrativas que seriam não só protagonizados como narradas por pessoas comuns, fossem eles criminosos, bandidos, loucos ou trabalhadores, e muitos destes romances exercitaram um pouco essa forma de narrar das pessoas comuns. E isso pra gente era uma coisa muito marcante, tanto como gesto artístico quanto como gesto criativo, de tentar criar espaço para que estas pessoas contassem sua própria história. Então de São Bernardo do Graciliano Ramos a Jorge, Um Brasileiro do Oswaldo França Jr., esses romances marcaram a gente pelo esforço de construir histórias que passavam pelo eu lírico e pela subjetividade de pessoas comuns da nossa sociedade de trabalhadores, e não só pela voz do intelectual do escritor.

Vocês queriam levar isso para a realidade de vocês, então?

JD: Na realidade a gente queria trazer um pouco disso para o cinema também.

AFFONSO UCHOA: A gente está falando deste trabalho da literatura como uma influência, como uma fonte de reflexão que fizesse com que a gente olhasse esta realidade de uma maneira diferente. É a partir daí que vem a parte dois do trabalho, que é como fazer essa percepção se transformar em cinema, e o jogo do cinema também envolve outras questões e outras referências. Mas certamente o que une tudo isso é fazer com que esses essas figuras mais marginalizadas da sociedade sejam os protagonistas das histórias. Isto não significa que elas tenham que ser heróis. Acho que isso também é importante dizer porque pode gerar uma confusão esquisita.

E isso no filme se reflete no fato do personagem do Aristides não ser uma figura heroica e sim uma pessoa comum.

AU: Justamente. O que une também o nosso cinema com isso tudo que a gente está falando da literatura é de ver uma grandeza nesse universo, nessas histórias e nessas pessoas. Por que contar a história dessas pessoas? Porque elas são grandes o suficiente para a gente conseguir não só entender melhor o mundo, mas principalmente um Brasil, o que sozinho era uma espécie de ambição da escrita brasileira, mesmo se você pega um Oswald de Andrade da vida com um poema da linguagem e o “mim dá um cigarro”. Sempre lembro muito da frase dita pelo John Dos Passos, um escritor que não é brasileiro e que foi muito influente para o nosso trabalho, que diz que um país é acima de tudo a língua de seu povo. Então a língua que tem que ser escrita e as palavras que tem que ser usadas tem que bater com essa língua e não com a linguagem do bacharel. E como as histórias são protagonizadas por gente que fala desse jeito a gente tem essa perspectiva. É a ralé que a gente quer botar no primeiro plano. 

E isso não é todo processo, ele só vai até a página 2. A gente pensa “beleza, então a partir do momento que a gente coloca esta camada das pessoas das cidades como protagonista e dá poder à fala deles, a parada acabou aí?” e conclui que não, porque muitos filmes já fizeram isso como por exemplo Cidade de Deus e o Tropa de Elite da vida, que são filmes focados em pessoas e situações marginalizadas que vão ali para a periferia tirar todas as suas histórias. Então é isso que a gente tem que fazer? Tem que se contentar com essa fórmula? Não, porque na verdade a gente queria fazer uma coisa diferente. E aí a gente tinha um problema cinematográfico, que era como retratar estas pessoas e este universo. 

A nossa solução foi trafegar por uma espécie de meio de caminho. Ao mesmo tempo em que a gente era muito tocado pela realidade e pela força daquela gente, a gente pensava que o cinema tinha um potencial de invenção na relação com essa realidade. A gente queria fazer um filme muito franco e muito direto na relação com a realidade, mas quis deixar clara a construção dos planos, do roteiro, da encenação e a sensação de que a gente está construindo este filme junto deste universo. A gente não está colocando o cinema em um lugar discreto e do mero registro, de um lugar de apequenamento perante a força da realidade. 

Este filme começou como um média-metragem e só depois se transformou em um longa. Eu queria saber se o que aumentou esta duração da produção foi o prólogo protagonizado pelo garoto e o irmão pequeno.

JD: O que acontece aqui é que nosso processo de criação do filme é um pouco conturbado - e para nós isso faz parte, não falo como demérito e sim como método, cada diretor vai trabalhar com um método específico que ele acredita que é mais viável para chegar onde ele quer. E no nosso caso o nosso método é meio bagunçado mesmo, a gente faz testes, experimenta ver se acontece e aí vai construindo as coisas a partir do que a gente tá vendo. A gente não consegue sentar em um escritório em Belo Horizonte e escrever uma história, fazer um casting de atores e colocar tudo na tela imediatamente. Essa não é a nossa onda, a nossa onda passa um pouco por experimentar nesses diferentes processos. 

Em 2014 a gente filmou a primeira parte da história que era de fato o primeiro momento da história, mas já existia ali a figura do protagonista. Na verdade o Juninho estava preso na época em que a gente realizou essa primeira parte, então um outro ator teve que fazer o papel. Mas existia sim aquela cena do menino encontrando o caderno, só que isso não tinha nesse média-metragem a dimensão que a história do Cristiano tem, ele encontrava uma carta muito longa que tomava quase metade do filme. Só que a gente descobriu ao longo do processo que a força maior do filme na verdade estava ali naquela carta, e aí a gente resolveu abrir essa carta e transformá-la numa coisa gigantesca e com teor de uma novela literária.

Então o filme começou na perspectiva do garoto e só depois se expandiu para o Cristiano? Que curioso.

AU: Sim. Na verdade a gente tinha esse personagem do Cristiano pouco desenvolvido e o nosso principal problema em parte era porque o Juninho estava preso porque a gente queria escrever para ele, só que a gente não tinha como. E aí a gente arriscou fazer um teste com outro ator porque a gente não sabia quando que ele ia ser solto.

Ele foi preso por que?

AU: Ele foi preso por um furto, era um momento muito difícil da vida dele, que foi no final do A Vizinhança do Tigre. Era um momento em que ele estava muito deprimido, muito mal mesmo. E a força com a qual ele superou esta fase, da maneira como ele aguentou ficar preso um ano e meio, ficar esse período todo afastado e achando que perdeu as oportunidades oferecidas é um sinal do quanto a gente se inspira nele. Esse cara sai disso, se recupera e se reinventa completamente.

JD: Ele saiu três dias antes das filmagens começarem. A gente decidiu adiar o filme em quatro dias e ele virou pra nós dois e disse “Não, eu tô pronto. Pode ir, podemos começar a filmar.”. Isso depois de um ano na prisão!

Falando no Aristides, eu preciso perguntar sobre aquele monólogo que ele entrega no final do filme. Da onde veio a ideia daquela cena e como ela foi gerada na produção?

AU: É muito engraçado, a gente filmou o filme em um espaço de tempo de três anos. Filmamos uma etapa em 2014, que foi centrada nesta primeira porção do filme, depois filmamos uma grande parte do caderno em 2015 e a gente só filmou o final em 2016, quando já tínhamos começado a montagem do longa.

JD: A gente já tinha um primeiro corte, aí fomos filmar na fábrica.

AU: Exato. Foi durante a montagem que a gente conseguiu a ideia desse final e a gente foi filmar ele, filmar aquela fábrica em busca daquela cena. Mas quando a gente começa a montar um filme a gente não tem final. 

JD: É, nós só escrevemos o off depois que a fábrica estava filmada. 

AU: Esta ideia deste final só surgiu durante a montagem, a gente filmou essas imagens depois de ter o filme pronto. E só fomos escrever o texto mesmo depois de já ter tudo praticamente montado, de já conseguir entender um ritmo e já ter gravado um monte de off antes.

Eu acho fascinante o desencanto que vocês refletem, ele traz embutido uma forte posição política. E isso é algo que venho percebendo em outros em discussões sobre o filme.

AU: A gente tem uma certa inspiração que acho muito bonita e que vale a pena contar. Tem um poema do italiano Cesare Pavese chamado Disciplina cujos últimos versos dizem exatamente o que dizemos no fim. É algo como “a fábrica nos deixa levantar a cabeça e olhar a cidade, mas sabendo que logo após abaixaremos”. Então o que queríamos com este final é se interrogar se este sujeito não volta a cabeça pra baixo, se ele não levanta a cabeça e ele olha o outro, olha a variedade do mundo na frente dele. E se ele não voltar para o trabalho, se convencer de que precisa voltar? Era um pouco desta pergunta que a gente queria refletir ali. E na verdade esse cenário é uma utopia, porque todo mundo volta a cabeça para baixo de novo, porque a urgência e a necessidade do trabalho se impõe. Mas vamos tentar pensar esse momento quase utópico e ver o trabalhador refletindo sobre o próprio trabalho e sobre si mesmo naquele momento. Acho que esta é a nossa inspiração final, no fim de tudo.

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Entrevista: Joel Saracho (Canção para um Doloroso Mistério)

Ator discute os desafios e a complexidade de se fazer um filme de oito horas.

Por Pedro Strazza.

Novo filme do filipino Lav Diaz, Canção para um Doloroso Mistério vem chamando a atenção do público desde que estreou e ganhou o prêmio Alfred Bauer no festival de Berlim desse ano, mas muito por causa de sua duração. São pouco mais de oito horas de duração, que acompanham primordialmente a jornada de personagens em busca do corpo de Andrés Bonifácio, um dos principais líderes da Revolução Filipina e cujo túmulo permanece perdido até hoje.

Em São Paulo para divulgar o filme, que teve duas sessões na 40° Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o ator Joel Saracho - que faz Karyo, no longa o único homem do grupo de busca comandado pela esposa de Bonifácio, Gregoria de Jesus (Hazel Orencio) - concedeu uma entrevista ao O Nerd Contra-Ataca, dando detalhes sobre como é trabalhar nas filmagens de um projeto tão grande e discutindo o conteúdo do filme, que combina elementos históricos, mitológicos e mesmo da literatura filipina. Confira a transcrição do bate-papo abaixo:
Joel Saracho
Como é trabalhar num projeto com uma duração tão grande? Qual é a diferença em relação à experiência de trabalhar com um filme de noventa minutos?

Deixe me contar primeiro o processo do nosso diretor. Quando ele [Lav Diaz] me convidou para trabalhar no filme, nós apenas conversamos sobre o perfil do personagem que eu interpretaria: um senhor de idade que se junta a esse grupo de mulheres na busca por um corpo. “Você irá procurar e morrer em determinado momento do filme”, era isso que eu sabia. Nós nunca tivemos a chance de ler o roteiro inteiro e final, eu só li o primeiro rascunho há cerca de 17 anos, que era bastante diferente do que foi filmado. Então todo dia você recebia no set uma folha de papel com as cenas que iam ser filmadas e os diálogos que tinha que dizer. Então eu pensava: “como vou fazer isso?”. Há um monte de cenas que são só sobre os personagens andando na floresta, então eu tinha que perguntar pro diretor coisas como há quanto tempo estávamos andando para mudar meus trejeitos, a forma de andar e mesmo a tosse, que eu tinha de intensificar aos poucos. Diferente de outros diretores, que diriam como mexer sua cabeça, quando olhar e mover suas mãos, Lav te mostra o plano e te diz “Este é seu espaço, você pode atuar aqui, daqui pra ali. Considere esse seu quadro e ‘pinte’ sua própria cena”. É realmente um grande desafio para atores. Você tem que focar no que você fez, no que você fará, daonde a cena vem e para onde ela irá. É divertido, mas também difícil.

Quanto tempo durou as filmagens? Qual foi seu maior desafio durante essas filmagens?

Você talvez não acredite nisso, mas as filmagens duraram apenas 24 dias. Nós concentramos as filmagens primeiro na parte sul das Filipinas. Ficamos lá por 21 dias e depois fomos para outra parte do país para filmar por outros três dias as cenas que ficamos sentados nas casas. A parte mais difícil foi de achar os fundos para custear o filme, mas depois disso tudo fluiu muito bem. Não sei quanto isso dá em dólares, mas o filme custa algo em torno de 12 milhões de pesos, o que é muito pouco.

Esse não é seu primeiro filme que você trabalha com Lav Diaz, você fez anteriormente um filme de cinco horas e meia chamado Do Que Vem Antes. Como ele trabalhou com você o personagem? Houve uma grande diferença na relação que você teve com o diretor de um filme para outro?

Não foi muito diferente. Deixe-me contar primeiro como é a rotina do Lav no set: Ele acorda às 3 da manhã, toca seu violão e mais tarde escreve seus roteiros para o dia, baseado no que ele escreveu inicialmente. Todo a produção acorda, toma o café-da-manhã, o assistente do diretor passa aos atores o roteiro do dia. Aí você está no set, ele fala pra você “você vem dali e vai pra lá, esse é seu enquadramento, você se pinta nele”. O problema é que ele gosta de fazer planos longos, então você tem que memorizar bem suas falas. Se você comete um erro você tem que refazer tudo desde o início. Você discute seu personagem com ele, mas ele não deixa muito implícito como você deve “atacar” o personagem, ele assume que você saiba. Em Canção você tem esses dois atores que fazem Isagani e Simoun, os dois revolucionários filipinos, que são atores muito populares no país. No primeiro dia de filmagens com os dois, eu nunca me senti tão estúpido na minha vida. Sabe, eles não estão acostumados ao modo de trabalho de Lav. Em filmes comerciais, o diretor te fala exatamente como fazer a cena; no cinema de Lav ele te dá o quadro e você se insere nele, e isso é uma experiência muito diferente pro ator. Como é um plano longo, chega um ponto em que você não sabe mais o que fazer, então algo orgânico só surge se você internalizar e entender a cena e seu personagem.

O seu personagem passa grande parte do filme com um grupo de quatro mulheres. Considerando o processo que vivemos hoje no cinema mais mainstream, em que a figura e o papel da mulher nesses filmes está mudando drasticamente, você chegou a considerar essa relação com essas mulheres na hora de trabalhar seu papel?

Não exatamente. Acredito que o cerne do personagem era de servir a Revolução. Ele queria se juntar à revolução, mas teve sua participação negada porque estava doente, tinha tuberculose. Mas ele queria participar da luta, então quando ele descobre que Gregoria de Jesus está atrás do corpo de Bonifácio, seu marido, acredito que ele toma como missão ajudá-la nessa tarefa para auxiliar a revolução, pelo menos até seu encontro com o tikbalang, um ser mitológico das Filipinas que diz ter a poção que pode curá-lo de seu mal. Então em termos de objetivo do personagem foi bastante claro o que ele queria, ele queria ajudar Gregória de Jesus em sua procura, e isso é a parte mais importante até o momento que ele quer ir embora.

Canção Para um Doloroso Mistério trabalha com elementos de religião cristã, como padres, cruzes e até uma Virgem Maria, mas também com um lado mais místico, a exemplo das criaturas mágicas e as brumas da floresta. Qual sua opinião sobre essa relação no filme?

Eu fiz exatamente esta pergunta para Lav no set. Nós temos três camadas no filme: Temos o lado histórico, que trata da procura pelo corpo de Andrés Bonifácio e é baseada em fatos; os dois revolucionários, que são personagens literários do livro de Doutor José Rizal; e o mito, que são as criaturas mitológicas que acompanham o tikbalang, uma criatura mitológica da cultura filipina que te desvia do caminho. Eu perguntei pro Lav como essas camadas iam se encontrar, e ele respondeu que elas iriam se encontrar na floresta. Na época eu não entendi. Depois tivemos aquela cena do grande jantar celebrada pelo culto, que mostra eles festejando, e essa é a única parte do filme que todos os personagens se encontram. Foi depois dela, quando fui descansar, que me dei conta que “Ah sim, é uma floresta da mente, tudo pode acontecer!”.

Então basicamente são os pensamentos, a consciência de Lav, sua mente pensante que possibilita que esses elementos possam se encontrar, porque a totalidade disso é o que faz o filipino. Literatura, História e mitologia estão incutidos no povo. É a grande consciência, os personagens mitológicos são simbólicos da religião, do mito, e eles podem te levar para a redenção ou te desviar do caminho. Me fascina como ele conseguiu pensar tudo isso para fazer o filme. Tem uma cena que o grupo que está à procura do corpo e as criaturas andam em volta de uma árvore. É muito teatral e representa como eles se perdem na floresta. Essa cena depois é incrível, mas na hora de filmar me soou muito estúpida. Eu me perguntava “O que nós estamos fazendo? O que é isso?” e tudo que podia fazer nessa hora era confiar no diretor.

De fato essa combinação de elementos faz muito sentido dentro do filme.

É, ela é incrível. Inclusive antes do filme ser terminado nós tínhamos medo de que o público não fosse entender como esse três elementos funcionam juntos. Foi somente quando o filme ficou pronto que a equipe falou “É, isso realmente funciona!”.

O mais interessante disso é que, quando o filme foi lançado nas Filipinas, depois da passagem do filme por Berlim, a produção ficou preocupada que o público não iria curtir essa complexidade e aguentar o tamanho do filme, abandonando-o na terceira hora. Surpreendentemente, o público no fim de semana da estreia ficou até o fim da projeção e aplaudiu! Então o filme funciona, e isso que é o mais importante.

O filme é muito sobre arrependimento e perdão. Há o homem que acompanha Isagani (Simoun) e uma mulher no grupo que de formas distintas traem a revolução e acabam com ela... mas tudo isso ocorre em um espectro regional, da realidade histórica filipina. Como então passar o filme desse caráter local para um mais universal, como fazer o público estrangeiro sentir o impacto do longa?

Eu acredito que a beleza do filme é que o diretor não tenta impor uma lógica de que “é assim que o mundo funciona, é assim que as coisas são”. Ele só fala que isso que é o que está acontecendo com o povo filipino, isso é o que temos, isso é o que fazemos e é assim que nós atuamos nessa situação particular. Essa particularidade ressoa para outras realidades porque é muito específica e real, então você enxerga a realidade de seu país de origem ali, a própria luta de seu povo. Não sei se isso faz sentido, mas é assim que eu encaro o filme. É sua particularidade temporal e espacial que o torna tão universal. Quando o filme estreou em Manilla as reações não foram unânimes: Teve quem gostou e quem não gostou. Mas o fato delas terem permanecido por oito horas no cinema e na maneira como o filme virou alvo de discussão em outros ambientes... nesse sentido Lav e o filme foram muito bem sucedidos.