quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Crítica: Martírio

Documentário alcança o ponto de encontro entre cinema e causa social.

Por Pedro Strazza.

Em seu grande hall de injustiças históricas feitas a minorias, o Brasil talvez tenha na figura do índio seu integrante mais antigo. Desde a descoberta do país pelos portugueses, as populações indígenas passam por uma trajetória de extermínio e deslocamento, tendo as cada vez mais reduzidas tribos expulsas de seus territórios para viver em locais nada propícios a tal fim. Tudo em nome de um suposto progresso nacional, que faz questão de deteriorar a imagem do índio e transformá-lo em um mero invasor de terras e incômodo aos grandes e nobres proprietários de terra.

É da necessidade de recontar a História e realizar o retrato contemporâneo desse povo que parte Martírio, novo filme do documentarista e antropólogo Vincent Carelli. Acompanhando o sofrimento passado por índios guarani-kaiowá para recuperar suas terras no Mato Grosso do Sul enquanto simultaneamente refaz o percurso do índio no processo histórico brasileiro, o longa tem como propósito central a ressignificação dessa população dentro do imaginário e da sociedade brasileira.

Carelli tem perfeita compreensão do tema que discute. Documentando a luta dos guarani-kaiowá desde 1988, o cineasta concebe uma narrativa fluida e bastante didática, que dê conta de traçar um panorama dessa população sem perder de vista o lado emocional. É um estudo antropológico desprovido de elitismos, que dá ao espectador o caminho para se envolver com a situação mesmo que não se tenha no filme personagens que sirvam de presença constante em suas quase três horas de duração a não ser a própria equipe de produção.

O panorama, claro, é complexo. Cinema puro de causa social, Martírio tem no quadro histórico uma potência para escancarar os diferentes níveis e processos de marginalização aos quais o índio foi submetido, desde a escravização até as formas de "acolhimento" que o Estado da ditadura e dos governos atuais deram a essas tribos. Os fatos guiam a história sem nunca exatamente assumir um papel de autoridade - como algo dogmático e informativo em seu viés mais burocrático -, mas de forma a proporcionar no público o sentimento de tragédia que domina esse trajeto.

O longa, porém, é esperto de envolver neste relato o lado pessoal, e é aí que a obra alcança seus objetivos. As memórias e experiências de Carelli - que narra o filme - na documentação da luta são um fio condutor ideal para o diretor envolver o público, e como contador de histórias ele tem perfeita noção de como surpreender seu espectador. A produção mantém um ritmo impecável nesse sentido, provocando choques e reviravoltas a todo instante.

Essa combinação de narrativas faz de Martírio um filme envolvente e decididamente de impacto, mas o que Carelli realiza nos últimos minutos potencializa a obra no campo do limite da arte e realidade que no fim é vital ao documentário. Ao conferir aos índios poder sobre a imagem, como um verdadeiro Prometeu a dar o fogo aos homens, Carelli chega enfim ao ponto de intersecção entre retrator e retratado, tornando o cinema social em algo capaz de auxiliar na luta. O controle sobre a História, agora, muda de mãos.

Nota: 9/10

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