sábado, 29 de outubro de 2016

Crítica: O Nascimento de uma Nação

Violência histórica busca contornos de épico negro em filme de pouca catarse.

Por Pedro Strazza.

Está claro desde os primeiros momentos os objetivos de Nate Parker com O Nascimento de uma Nação, filme que retrata a violenta rebelião de escravos ocorrida no estado americano da Virginia em 1831. Não somente porque o título remete ao longa homônimo de D.W. Griffith - fundamental à História do cinema dos EUA mesmo dotado de um racismo protuberante -, a produção já em suas primeiras cenas evidencia as suas aspirações aos épicos mais tradicionais, que busca incorporar à cultura negra estadunidense que ali encontra-se em plena formação.

A referência imediata de Parker aqui curiosamente é com o Êxodo, trama religiosa clássica que prevê irmãos sociais entrando em pé de guerra. Essa dinâmica se forma entre o protagonista e líder da rebelião Nat Turner (Parker) - que tem seu quê de Moisés, com a cultura africana que herda da família e sua figura de escolhido apresentado no início - e seu dono, o jovem fazendeiro Samuel Turner (Armie Hammer), cujas distintas e rápidas ascensões à liderança e suas maneiras de lidar com isso dominam os primeiros dois terços da trama. Para o último, a responsabilidade vem pela necessidade de assumir desde cedo as terras da família por causa da morte súbita do pai, tendo de lidar com todas as pressões da sociedade escravocrata ao qual adentra para manter o nome familiar intacto; para Nat, ela surge pelo papel de pregador dos negros que ganha após ter suas habilidades de leitura descobertas pela mãe de Samuel, Elizabeth (Penelope Ann Miller), e na sua posição de hipocrisia ao ter de suavizar o sofrimento dos escravos aos quais prega.

Enquanto situado nesse molde, O Nascimento de uma Nação funciona para deixar à mostra a tragédia dos tempos de escravidão, um trauma que até os dias de hoje está presente nas relações dos Estados Unidos e do mundo. Precisando se desenvolver em um mundo de injustiças, as lutas próprias de Samuel e principalmente Nat para se manterem íntegros sofre golpes constantes pelos eventos atrozes aos quais são forçados a testemunhar e até realizar, maus tratos a seres humanos cuja única culpa que carregam é a cor de sua pele. E em seu afã de fazer um filme que trate da "real" História dos Estados Unidos, Parker não hesita em retratar a violência, não desviando a câmera nas cenas viscerais do roteiro que ele mesmo escreve.

O diretor, porém, tem dois problemas bastante danosos nessa narrativa. A primeira, mais sutil, é sua dificuldade de relacionar as dores de seu protagonista com a luta social que aos poucos se manifesta: Enquanto o arco percorrido por Nat na trama sugere uma complexidade emocional e raiva interior, os escravos que o cercam parecem existir apenas para aumentar sua fúria contra os brancos escravocratas. Embora o longa trabalhe com coadjuvantes recorrentes, todos os traumas aos quais o personagem é obrigado a testemunhar enquanto padre soam como fruto de um momento imediato, de uma violência que começa e se encerra ali. Quando ele enfim se revolta e lidera a rebelião, a obra mais soa como uma história de vingança que o épico de enfrentamento racial e do "nós contra eles" propriamente dito. O "lute por nós" dito pela esposa Cherry (Aja Naomi King) não poderia representar melhor este processo.

O segundo elemento dissonante - e o mais problemático - é o instante em que o filme tem de deixar de lado o retrato para realizar o ato de violência. Quando é para colocar a mão em armas e proporcionar à obra o veio pulsante da revolta, enfim tornando claro a origem dos conflitos que ele busca tanto mostrar e assumindo o viés de Spartacus da trama (a espada na parede é a referência mais direta possível, nesse sentido), Parker recua. A rebelião de 48 horas no longa parece durar cinco minutos, e a fúria se traduz em cenas que não querem sair do protocolo.

Isso ocorre talvez porque o cineasta queira apenas evidenciar as origens ao invés de partir para a ação ou porque ele no fim se dê melhor com o drama maniqueísta (vale dizer, Jackie Earle Haley ainda sabe como trabalhar papéis detestáveis), mas a verdade é que essa hesitação no clímax priva O Nascimento de uma Nação de uma sensação de catarse primordial. Sem isso, o filme torna-se numa obra de justiça histórica um tanto quanto complacente, incapaz de assumir a raiva que carrega para conceber uma revolta de momento, sem forças para ir além da situação retratada. Uma pena, pois os EUA de hoje precisa mais do que nunca de obras de reflexão histórica sobre o racismo.

Nota: 6/10

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