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sábado, 6 de julho de 2019

Era uma vez um blog

Por Pedro Strazza.

Eu admito que gostaria que este momento tivesse chegado um pouco mais tarde. Alguns meses mais tarde, pelo menos. Mas não há mais como postergar o inevitável.

A verdade é que ando cansado. Já faz algum tempo que as palavras não parecem sair com a mesma facilidade de antes. As frases encurtaram.

Talvez seja o desgaste, uma dessas síndromes de burnout que agora estão tanto na moda no palavreado cotidiano. Ou mais um destes desencantos naturais com o meio. Uma perda de gana, de força de vontade?

O que precisa ser dito de fato, porém, é que o ciclo de vida deste blog enfim está chegando ao seu fim.

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É difícil se abrir desta forma a você, caro leitor. Quem me acompanha, por aqui ou pelo trabalho, muito provavelmente já percebeu que meu ponto de conforto na escrita mora numa visão mais distanciada; são raras as vezes em que assumo a primeira pessoa em meus textos, especialmente os críticos. E já que estamos nessa posição, acho válido fazer essa digressão e falar sobre o meu método alguns segundos.

Esse procedimento (ou se preferir, essa metodologia de escrita) não se dá por timidez, mas por opção. É verdade que a abordagem pessoal na crítica é um processo possível e que já rendeu milhões de maravilhas, como colegas já provaram de novo e de novo, mas no meu caso específico eu nunca consegui ver um retorno efetivo no ato de expor meu ponto de vista pessoal dentro do campo da análise. Talvez exista um pezinho de síndrome de impostor em meio a tudo isso (sempre há, por sinal), mas não vejo minha perspectiva em si adicionando muito ao debate que constantemente busco movimentar em minhas críticas.

Caso você esteja se perguntando, é claro que eu percebo as vantagens e desvantagens em tomar este caminho. Além de não serem poucas as vezes em que classificaram minha escrita como empolada, também sinto que a distância ajuda quem lê a criar uma imagem de mim que é diferente da verdadeira, de um "monstro" que não gosta de nada ao invés de alguém que efetivamente segue a piada do "meu pecado foi amar demais" um pouco à risca demais. Ao mesmo tempo, este método de escrita me permite criar o ambiente de respeito com todos a quem me dirijo: sempre creditei à crítica o esforço absurdo de tentar se direcionar simultaneamente ao espectador e ao realizador com honestidade, sem tentativas de acariciamento de ego ou de conforto de mundo; a análise crítica não é sobre certos e errados, mas sobre questionamentos, pontos de crise e, de vez em quando (e com um pouco de sorte), sobre traduzir a emoção, este conjunto tão complexo de reações.

Além disso, ao optar pela terceira pessoa eu pelo menos não uso tanto o possessivo "meu" e "minha" como faço agora, de forma tão desapercebida.

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Acho necessário esclarecer de novo que a decisão pelo fim se refere especificamente ao blog, não a minha escrita. Minha carreira continua, e até onde for possível continuarei a desenvolver a carreira de crítico, seja no B9 ou onde quer que a vida me leve.

Mas e o O Nerd Contra-Ataca? É engraçado, meu desejo com este site sempre foi de chegar à marca dos dez anos de vida, num esforço de provação meio banal, meio glorioso de se assistir. Aqui é o lugar onde tudo começou, afinal: foi neste blog que fiz minhas primeiras incursões pela escrita, foi ele quem me ajudou a definir a opção pela carreira do jornalismo (ao invés da medicina, um sonho que hoje é mais uma piada recorrente que um pesadelo de uma vida passada), foi nele que minha escrita se desenvolveu ao status de hoje, um tanto desengonçada mas decente o suficiente para ser acompanhada por outros.

(Deus, o exercício de ego desta última oração.)

Esta jornada, porém, tem mostrado seus sinais de esgotamento nos últimos meses. O leitor mais atento (e sedento, se é que ele existe?) deve ter percebido, mas já faz algum tempo que não retorno a estes cantos com a mesma empolgação de antes: as incursões diminuíram, os textos reduziram-se, as opiniões perderam o vigor afirmativo de outrora - e o engraçado é que apesar de estar chegando há tempos a constatação do fim só me veio ontem a noite, em mais uma destes casos de insônia que rondam meu descanso de vez em quando.

Eu poderia ter deixado este blog se esvair silenciosamente, é claro; seria a saída mais fácil e talvez respeitosa com todo o trabalho que foi feito aqui. Mas eu não tive coragem de fazer isso.

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Faço uma segunda interrupção porque acho necessário fazer o comentário sobre a entidade "nerd" que habita não apenas o nome como as fundações deste blog desde o início, até porque ele tenha algo a ver com o fim deste site. Este texto pede uma reflexão sobre o assunto, mesmo que uma muito breve.

A trajetória do nerd ao longo desta última década foi marcada por uma ascensão no cenário da cultura pop, mas ao mesmo tempo passou por uma crise evidente de valores que não passou desapercebida. Se sua figura popularizou-se e alcançou o mainstream como aspiração dominante graças à expansão da cultura de fã ao nível do culto nos circuitos de Hollywood, este deslocamento permitiu a quem antes era satirizado ocupar o centro das atenções e portanto desempenhar papel importante nos meios comerciais. É uma conquista de poder perigosa e que obviamente não foi bem lidada, a ver não apenas no boom de casos de ataques de ódio nas redes sociais dos anos 2010 mas no esvaziamento de relações que a suposta "cultura nerd" tinha com seus itens de grande admiração, um conservadorismo banal trajado de gatekeeping imbecilizado.

Este parágrafo anterior soa como (e é) uma grande bobagem analítica, mas tem um pouco a ver com a perda de significado deste blog. Não apenas porque o conceito de um "nerd contra-atacando" hoje não faz o menor sentido, mas na questão por trás deste ato: afinal, a quem este site hoje se dirige? Com certeza não à comunidade nerd, até porque este não busca nenhuma discussão além da permanência de "velhos valores" trajados de um sentimento nostálgico esvaziado.

É exatamente esta falta de direção que me afeta e me afasta não apenas do blog, mas da definição "nerd" nos dias de hoje. E é por estar despido deste manto que chegamos ao momento de agora.

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O que acontece a partir de agora é que o O Nerd Contra-Ataca como conhecemos deixa de existir definitivamente na atual configuração. O meu caminho e o caminho do blog estão se separando de vez em termos de uma rotina de escrita, de um repositório de textos onde as pessoas podem esperar que ora ou outra eu apareça para fazer novas contribuições.

Ok, minto: ainda será por este lugar que lançarei todo fim de dezembro o Melhores do Ano. Não porque a tradição precise ser respeitada ou coisa do tipo, mas porque me dá um pouco de vergonha abrir um outro sítio só pra fazer isso. Além do mais, eu sei que não vou conseguir parar tão cedo de escrever estes listões; por mais cansativo que seja, admito que me dá um prazer imenso parar no fim de ano para relembrar e refletir sobre tudo o que aconteceu ao longo dos últimos doze meses em termos de sétima arte.

Mas o resto, bem, o resto vai para outros lugares. Além do trabalho (que é onde já dedico e passo a dedicar todo meu trabalho de crítico de fato), quem ainda tiver interesse em ler minhas opiniões sobre cinema pode fazer como as crianças descoladas e acessar meu perfil no Letterboxd, local onde além dos lançamentos ora ou outra comento sobre os trabalhos de garimpo cinéfilo.

Admito que tinha pensado em palavras mais bonitas ontem a noite, quando decidi escrever este fim. Algo sobre agradecer todos que de alguma forma se envolveram com este blog ao longo da última década, desde quem contribuiu com textos e ajudou no layout do site até quem parou a vida em algum momentos dos últimos dez anos para ler qualquer publicação; algo sobre o fim dos blogs e como a permanência insistente deste veículo muito depois da queda serviu como homenagem tardia a toda uma comunidade que nunca integrei, mas sempre vi com admiração; e também algo sobre o primeiro post que escrevi aqui, há uma vida inteira atrás, e como o que começou com um local de respostas juvenis a questões impossíveis termina (como tudo na vã filosofia) sobre o embalo carinhoso da ausência de definições e amadurecido pelo alento da dúvida. Obviamente eu esqueci todos estes pormenores, mas acho que o que eu quero dizer no fim mesmo é:

Era uma vez um blog.

domingo, 19 de maio de 2019

Crítica: John Wick 3 - Parabellum

A grande comédia da luta entre o caos e a ordem. 

Por Pedro Strazza.

Para um filme que é movido acima de tudo pela frontalidade de seus atos e a movimentação de seus personagens dentro do espaço de ação, chega a ser um pouco surpreendente de início que John Wick 3 - Parabellum recorra com tanta frequência à comédia. Não que este uso seja uma nova tendência dentro de uma franquia nascida com pé na paródia - estamos falando de uma história cuja premissa inicial era a vingança pela morte de um cachorro, é sempre bom lembrar - mas é difícil não reparar na presença mais assertiva do elemento cômico na narrativa, especialmente pela centralidade que ele ocupa nas peças maiores de uma obra ditada acima de tudo pelo combate e o movimento.

Corpos que são enchidos de facas, cavalos cujo coice é "recarregado", cachorros que miram as partes íntimas dos inimigos para abatê-los, lutas com inimigos que reconhecem e agradecem o protagonista por honrá-los com a oportunidade... não são muitos os momentos climáticos da produção que escapam desta reiteração do humor, seja na gag física ou mesmo pelo recurso da fala.

Esta inclusão também pega de surpresa o público dado o caráter decisivo que este capítulo da franquia aparentemente promete, não só em relação aos seus antecessores como também ao cenário hollywoodiano no qual se situa. Como qualquer terceiro episódio de trilogia que se preze (mesmo em um mundo onde o conceito "trilogia" em si se mostre cada vez mais ultrapassado pelo mercado), Parabellum sugere ao contrário dos outros John Wick uma sensação de fechamento, de grande clímax final criado a partir do gancho deixado por Um Novo Dia Para Matar que coloca o protagonista do título contra o mundo do qual habita, mas se em teoria todos os elementos apontam para um desfecho o filme de Chad Stahelski segue na via contrária, prolongando a existência da história quase como um acompanhamento dos esforços de seu protagonista para escapar da cilada na qual se encontra.

É uma subversão de expectativas que carrega sua cota de frustrações, é claro, até porque o longa (como em todo o resto da estrutura) não esconde o caráter episódico de sua história, que dá voltas e voltas apenas para terminar quase no exato mesmo lugar - seja na relação de desestabilização do sistema ou no drama de luto, o arco de Wick (Keanu Reeves) visivelmente é posto on hold pelo roteirista Derek Kolstad. Em um cenário tradicional, esta seria a típica decisão fatal a qualquer franquia que se preze, muito porque esta interrupção a princípio deslocaria Parabellum enquanto elo de uma corrente narrativa maior e levaria os seus próprios propósitos a um ponto perigoso. Afinal, se uma franquia subexiste na jornada de seus personagens, por que alguém se interessaria numa produção que renega esta função de forma tão clara? O truque de John Wick 3, neste momento, é de definir sua estrutura justamente como uma que ocupa este vácuo com a ação, uma decisão nem tão difícil dado o grau de intensidade sob o qual a produção afilia todas as suas dinâmicas em cima da porradaria generalizada.

Assim, o filme que começa na promessa de uma conclusão se torna o típico caso de "um contra todos" adequado aos pormenores de uma narrativa de três atos reformados como grandes set pieces. Enquanto ao roteiro cabe fazer as devidas ligações da maneira que pode (o que talvez incorra na repetição escancarada e um pouco porca da escalada atordoante de maleabilização de espaços), resta ao espectador decidir se a troca em si é compensatória, uma questão que explica parte do caráter divisivo deste terceiro episódio.

Não que Stahelski não aproveite esta mudança, é bom ressaltar. Beneficiado por um claro aumento de orçamento, o diretor aqui aperfeiçoa a dinâmica de ação da franquia ao ponto da perfeição, repetindo com Keanu Reeves e do diretor de fotografia Dan Lautsen todo o grande pastiche do antecessor com maior tendência ao caos, conferindo a cada grande set piece o seu próprio adereço de destaque. Tudo amarrado pelas vias da gag física, o que só reforça a configuração do humor ancorado nos movimentos dos conflitos (e não o contrário) e o estreitamento dos laços da franquia com os longas de Buster Keaton, eleito a partir do segundo filme como sua maior influência.

É desta forma, então, que Parebellum efetivamente se converte em uma verdadeira comédia de caos, no mesmo viés que Um Novo Dia Para Matar se erigia como grande musical pautado por tiros e socos. O filme destila referências (o teatro apropriadamente chamado Tarkovsky) na mesma intensidade com a qual seus personagens vociferam pérolas de grande sabedoria barata e o diretor reforça suas metáforas visuais (como os atiradores que substituem as bailarinas), e em meio a tudo isso o ambiente é efetivado por Stahelski à posição de ferramenta que transforma os combates e ordena o caos, do corredor munido de armas brancas que só agiliza e restringe os movimentos dos combatentes ao clímax que repete o desfecho no museu de Um Novo Dia Para Matar substituindo os espelhos por vidros na tarefa de modelar o espaço de cena da luta de Wick contra o mercenário de Mark Dacascos e seus subalternos. Há espaço até mesmo para outros personagens ocuparem o protagonismo dos "números", a exemplo da gerente vivida por Halle Berry que transforma um mero mercado de Casablanca num imenso campo de tiro onde sua movimentação junto da câmera é quase idêntica ao gameplay de um jogo de tiro em primeira pessoa. Para uma produção que cita Dante logo nos primeiros minutos, a concepção de "divina comédia" talvez seja levada ao pé da letra demais, confundindo a epopeia dramática com a imagem de um comediante que tem no físico sua maior ferramenta de humor.

Mas se o balé se deixar ser guiado pela comédia física e uma lógica de caos até onde for preciso, em meio a tantas viradas, traições e mortos Stahelski nunca deixa de estipular suas bases em uma narrativa que se revela no fim guiada pelo desmantelamento da ordem frente à figura destrutiva de Wick. E isso não fica claro apenas em falas como "Arte é dor, a vida é sofrimento" que a chefona russa de Anjelica Huston em determinado momento repete ao protagonista, mas nos próprios atos da trama, no eixo que vai da liberdade de poder ter maior poder de fogo à punição final que é ser restrito fisicamente de certos movimentos, oriundos de práticas como furar as mãos e amputar um dedo. Apesar dos mil e tantos mortos, o mundo de John Wick subexiste de verdade na liberdade dos corpos, mesmo que seja apenas a liberdade de matar quem quiser.

Nota: 7/10

sábado, 13 de abril de 2019

Crítica: Em Trânsito

A Europa enquanto terra dos amaldiçoados.

Por Pedro Strazza.

Embora seja em teoria passado nos anos da Segunda Guerra (e, de forma mais específica, os meses seguintes à ocupação alemã na França), a Marselha de Em Trânsito não poderia ser mais contraditória em termos de contextualização histórica. Se o interior dos prédios é "vestido" de acordo com a época, as ruas da cidade denotam o mundo contemporâneo que cerca os personagens, das fachadas dos edifícios a - principalmente - os carros que habitam os fundos de cena, passando pelas forças policiais que se vestem como verdadeiras tropas de choque.

A sensação de estranhamento é imediata, mas não despida de propósito. Em um mundo onde movimentos de extrema-direita ensaiam (e realizam) um retorno às instituições de poder, interessa ao diretor alemão Christian Petzold deslocar o espectador dos confortos do passado oferecido pelo cinema de época, ainda mais quando este novo projeto trata de uma situação de oprimidos em fuga. Adaptação do livro de mesmo nome da escritora Anna Seghers, o longa acompanha um jovem (Franz Rogowski) que busca sair do país antes que as tropas nazistas fechem as fronteiras, o que o força a assumir a identidade de um escritor morto com o qual dividiu um trem e cujas chances de migração parecem maiores. Preso no porto de Marselha devido a questões burocráticas governamentais, o protagonista começa a entrar em contato com a vida do morto e de outras pessoas em igual situação, incluindo de uma mulher que ele descobre ser a ex-esposa (Paula Beer) do autor.

Se a premissa alinhada com as disrupções visuais sugere em teoria um drama pautado nas justaposições históricas das duas épocas e que chamem a atenção para os problemas do mundo atual, o filme aos poucos se revela direcionado à via contrária, mas não pelas vias do isolamento do cenário. Como em seu trabalho anterior, Phoenix, Petzold invoca o passado aqui para promover uma espécie de erupção de traumas enterrados fundo na identidade nacional alemã - ou, talvez agora, da própria Europa como um todo - sem exatamente buscar soluções para tal. A diferença é o timing das duas situações: o que em Phoenix se mostrava um amargor consumado e a ser carregado, em Em Trânsito o processo ainda está em movimento, dado que a meta de todos em Marselha é mesmo de escapar da morte.

É neste ponto que os anacronismos da produção se manifestam como sua narrativa central, reconfigurando todos os arcos do livro de Seghers a uma questão de maldição. Assim, o que nas vias tradicionais se adequaria às estruturas de um épico histórico localizado se torna no filme de Petzold uma coalizão de histórias condenadas a se repetir ad eternum, incapazes de serem resolvidas por conta da própria natureza do sistema - este por sua vez tragicamente confundido com a História do continente europeu. Que a jornada dos protagonistas e dos coadjuvantes more nos meandros da burocracia da imigração só torna esta proposição mais evidente em sua crueldade, além de aos poucos desesperadora dado as consequências mortais do jogo.

Mas se o labirinto percorrido é insolúvel, o que resta aos corredores? Deste questionamento nasce o objetivo maior de Petzold com a trama, o qual além de reforçar o caráter de espírito de seus personagens presos neste Casablanca dos infernos ainda se encarrega de potencializar a força dos diversos "encontros desencontrados" como única escapatória emocional a um mundo tão perdido. O que para o protagonista é um música da infância cantarolada à partir de um rádio de pilha, por exemplo se torna para uma mãe despida de fala o alento necessário para continuar tentando; o que para um casal nunca mostrado são cães a serem transportados para fora do país e dentro de seus lares é a única razão de sobrevivência de uma mulher sem qualquer chance de escapatória; e enfim aos dois amantes, o que é uma ilusão alimentada por um é a busca de uma vida do outro.

Neste sentido - um que alimenta acima de tudo o poder do encontro e da identificação entre dilemas - a resposta do protagonista ao questionamento do autor a quem assume a identidade (o tal do "Quem esquece primeiro: quem abandona ou quem é abandonado?") ilustra o que é a grande potência de Em Trânsito e, talvez, do cinema de Petzold: o de dar corpo e alma àqueles que deixaram a vida para trás, condenados para sempre à fuga sem propósito.

Nota: 8/10

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Crítica: Suspíria - A Dança do Medo

Aproximação sensorial de Luca Guadagnino sobre filme de Dario Argento se perde no próprio jogo simbólico.

Por Pedro Strazza.


Desde seu anúncio o remake de Suspiria tem gerado todo tipo de debate sobre o porquê de Luca Guadagnino querer refazer o tão cultuado terror de Dario Argento, mas talvez a melhor forma de entender o filme e (principalmente) suas intenções comece em outro questionamento: o que leva Luca Guadagnino a Suspiria?

Tal qual a resposta, esta pergunta não é exatamente simples de se fazer, ainda mais se considerar a obra que o cineasta italiano concebe à partir desta premissa. De semelhanças, afinal, Suspíria - A Dança do Medo não pode sequer afirmar que mantém a premissa do original, expandindo e alterando o filme compacto de 1977 a toda uma epopeia sinfônica de seis atos e um epílogo passados na Alemanha dos tempos da Guerra Fria - uma expansão, aliás, cuja própria existência já contradiz por completo os mecanismos do cinema de Argento, um diretor que apesar do caráter operístico ainda não deixa de ser uma cria do giallo e de todas as suas limitações orçamentárias. Preserva-se o básico: uma garota chamada Susie (Dakota Johnson) chega a uma prestigiada escola de dança alemã pouco depois do desaparecimento de outra bailarina, passando a experimentar todo tipo de fenômeno inexplicável enquanto outros ao seu redor são submetidos a mortes escabrosas.

Posto desta maneira, é inegável que apesar dos rumos estéticos e narrativos distintos as duas obras dividem um mesmo propósito de existência, e é a partir deste ponto que os motivos da atração de Guadagnino pela história começam a ficar um pouco mais claros. Isso porque tanto o Suspiria de 77 quanto o Suspíria de 2018 carregam em seu âmago uma intenção de sobrecarregar os sentidos, um exercício de transbordamento o qual aos olhos de um diretor que em tempos recentes dirigiu filmes tão centrados em narrativas sensoriais como Me Chame Pelo Seu Nome e Um Mergulho no Passado (este também um remake, do thriller francês A Piscina) se mostra dos mais intrigantes de ser feito.

Assim, o cineasta refaz os caminhos do original a seu próprio jeito, "atualizando" o frenesi de cores de Argento com as ferramentas à mão. Ao invés do excesso sonoro e visual, Guadagnino se aventura pelo campo do simbólico, multiplicando frentes pelas vias da arte (a dança, que toma de forma evidente o campo central da narrativa de horror) e do contexto histórico, da Berlim ocupada, dividida e destroçada pelo caos político de grupos radicais e o mundo pós-Segunda Guerra à representação do feminino enclausurado e oprimido dentro de relações maternas. O diretor não parece querer se restringir em nenhum ponto desta trajetória, o que se por um lado liberta o longa para abraçar o horror à potência que julgar necessário - seja no som dos objetos aterrissando subitamente em outras superfícies, seja no bem vindo clímax explosivo - também contribui para encorpar a narrativa, pesando-a até o limite do possível.

Esta metodologia sem dúvida é uma das grandes responsáveis por trás do caráter divisivo do remake - até porque há quem queira e há quem não queira se perder em mares simbólicos cada vez mais complexos, e por este ângulo específico o filme é muito bem sucedido em seus propósitos - mas é também a partir dela que o novo Suspíria começa a se perder no próprio jogo. Se o transbordamento de significações sugere que o remake mira algo mais profundo na essência, seu desenrolar não hesita muito de encarregar o espectador de preencher as lacunas de seu mistério, dotando do público a tarefa um tanto ingrata de buscar justificativas e ligações às suas várias vertentes. É uma medida feita para estimular o destrinchamento da obra, é claro, mas na prática só contribui para alimentar um paradoxo, o do filme de múltiplos sentidos que se esvazia de significado.

Não que esta vontade de traduzir dores da Alemanha da época do muro e da ocupação renda algo tão valioso, porém. No curso de suas longas duas horas e meia, o Suspíria de Guadagnino se prova muito mais sólido quando se aventura pelo horror, o qual se equilibra entre a brutalidade e a leveza para promover todo tipo de estranhamento, mas se nem esta proposta se revela estável o suficiente para conduzir o todo - o que num sacrifício por traição sai bizarro e propositalmente desconfortável soa redundante e, por que não, bobo numa configuração complexa, a exemplo da grande dança preparada pela academia - é sinal de que esta nova versão se mostra muito mais aprisionada nos próprios propósitos do que aparenta ou mesmo gostaria.

Nota: 4/10

domingo, 24 de fevereiro de 2019

Oscar 2019, em um mundo ideal

Os indicados e vencedores pessoais da edição deste ano.

Por Pedro Strazza.

Todo ano criticamos o Oscar e a Academia pela lista de filmes indicados ao grande prêmio do cinema estadunidense, mas poucas vezes temos a chance de vocalizar nossas preferências caso fôssemos votantes da entidade. Seguindo uma ideia proposta pelo Filmes do Chico do querido colega Chico Fireman, este ano decidi me submeter ao experimento de fazer uma lista de indicados de acordo com minhas preferências, escolhendo os longas, cineastas, atores, atrizes e tantos outros membros da indústria que gostaria de honrar. Adotando uma postura egocêntrica, seria um "Oscar do mundo ideal", longe de politicagens e focado em contemplar os melhores do último ano.

O critério é simples e segue o longo recordatório postado pela Academia em seu site com as produções elegíveis à edição deste ano, um recorte que embora exclua alguns ótimos trabalhos é ideal para ninguém pirar no processo. Além disso, em categorias técnicas como Documentário e Filme Estrangeiro eu procurei a lista completa de obras submetidas à avaliação dos "branches" da entidade, tentando pular na medida do possível quaisquer fases de seleção para assumir (pelo menos até onde for possível) o controle total do processo de escolha. Os únicos filmes considerados por minha pessoa, aliás, são aqueles que eu tive a oportunidade de assistir ao longo do último ano.

Como era de se esperar de ser, a lista final está longe da verdadeira e criada pelo corpo de votantes do Oscar, ainda que muitas coincidências aconteçam. Entre as semelhanças, a mais interessante é a permanência ou crescimento de Nasce Uma Estrela e Pantera Negra no número de indicações, que junto de Fé Corrompida lideram a "classe" com meras sete nomeações cada um. Embora quase todos os indicados a Melhor Filme este ano permaneçam na lista de um jeito ou de outro (Green Book e A Favorita são os dois únicos que saem fora de todos os páreos), a maioria perde espaço na minha versão pessoal do prêmio, especialmente nas categorias principais.

Só para registro, segue abaixo a lista com todos os filmes com mais de duas indicações neste "Oscar ideal":

7 indicações: Fé Corrompida, Nasce Uma Estrela, Pantera Negra
5 indicações: Sem Rastros
4 indicações: A Mula, Infiltrado na Klan, Minding the Gap, O Passageiro, Roma, Se a Rua Beale Falasse, Support the Girls
3 indicações: Em Chamas, Homem-Aranha no Aranhaverso, Zama

Enfim, segue a lista na íntegra abaixo, com os vencedores de cada categoria colados. Bom Oscar a todos.

Melhor Filme

Fé Corrompida
Infiltrado na Klan
Minding the Gap
A Mula
Nasce Uma Estrela
O Outro Lado do Vento
O Passageiro
Roma
Sem Rastros
Support the Girls

Levaria: Fé Corrompida

Melhor Diretor

Paul Schrader (Fé Corrompida)
Spike Lee (Infiltrado na Klan)
Clint Eastwood (A Mula)
Jaume Collet-Serra (O Passageiro)
Debra Granik (Sem Rastros)

Levaria: Spike Lee

Melhor Ator

John Cho (Buscando...)
Ethan Hawke (Fé Corrompida)
Clint Eastwood (A Mula)
Bradley Cooper (Nasce Uma Estrela)
Ben Foster (Sem Rastros)

Levaria: Clint Eastwood

Melhor Atriz

Rachel McAdams (A Noite do Jogo)
Elsie Fisher (Oitava Série)
Kathryn Hahn (Mais Uma Chance)
Thomasin McKenzie (Sem Rastros)
Regina Hall (Support the Girls)

Levaria: Regina Hall

Melhor Atriz Coadjuvante

Amanda Seyfried (Fé Corrompida)
Dianne Wiest (A Mula)
Sally Hawkins (Paddington 2)
Regina King (Se a Rua Beale Falasse)
Haley Lu Richardson (Support the Girls)

Levaria: Amanda Seyfried

Melhor Ator Coadjuvante

Mark Rylance (Jogador N° 1)
Sam Elliott (Nasce Uma Estrela)
Michael B. Jordan (Pantera Negra)
Rafael Casal (Ponto Cego)
Brian Tyree Henry (Se a Rua Beale Falasse)

Levaria: Michael B. Jordan

Melhor Roteiro Original

Fé Corrompida
Mais Uma Chance
Minding the Gap
Ponto Cego
Support the Girls

Levaria: Fé Corrompida

Melhor Roteiro Adaptado

Em Chamas
Homem-Aranha no Aranhaverso
Infiltrado na Klan
Nasce Uma Estrela
Sem Rastros

Levaria: Sem Rastros

Melhor Filme Estrangeiro

Assunto de Família (Japão)
Eu Não Me Importo Se Entrarmos Para a História Como Bárbaros (Romênia)
Em Chamas (Coréia do Sul)
Roma (México)
A Valsa de Waldheim (Áustria)

Levaria: Eu Não Me Importo Se Entrarmos Para a História Como Bárbaros

Melhor Documentário

A Valsa de Waldheim
Hale County This Morning, This Evening
John McEnroe: No Império da Perfeição
Minding the Gap
Serei Amado Quando Morrer

Levaria: A Valsa de Waldheim

Melhor Animação

Homem-Aranha no Aranhaverso
Incríveis 2
Mirai

Levaria: Homem-Aranha no Aranhaverso

Melhor Fotografia

Em Chamas
Fé Corrompida
Guerra Fria
Mid90s
O Passageiro

Levaria: Em Chamas

Melhor Montagem

Fé Corrompida
John McEnroe: No Império da Perfeição
Minding the Gap
O Outro Lado do Vento
O Passageiro

Levaria: O Outro Lado do Vento

Melhor Trilha Sonora

Aniquilação
Pantera Negra
Infiltrado Na Klan
Mid90s
Se a Rua Beale Falasse

Levaria: Se a Rua Beale Falasse

Melhor Canção Original

"All the Stars" (Pantera Negra)
"When a Cowboy Trades His Spurs For Wings" (A Balada de Buster Scruggs)
"Trip a Little Fantastic" (O Retorno de Mary Poppins)
"Maybe It's Time" (Nasce Uma Estrela)
"Shallow" (Nasce Uma Estrela)

Levaria: Shallow

Melhor Design de Produção

Maus Momentos no Hotel Royale
Pantera Negra
Roma
Se a Rua Beale Falasse
Zama

Levaria: Pantera Negra

Melhor Figurino

A Balada de Buster Scruggs
Pantera Negra
O Retorno de Mary Poppins
Um Pequeno Favor
Zama

Levaria: Zama

Melhor Maquiagem e Penteados

Bohemian Rhapsody
Pantera Negra
Vice

Levaria: Vice

Melhor Edição de Som

Hereditário
Homem-Aranha no Aranhaverso
Pantera Negra
Roma
Zama

Levaria: Roma

Melhor Mixagem de Som

Legítimo Rei
Missão: Impossível - Efeito Fallout
Nasce Uma Estrela
O Primeiro Homem
Você Nunca Esteve Realmente Aqui

Levaria: Missão: Impossível - Efeito Fallout

Melhores Efeitos Visuais

Aniquilação
Homem-Formiga e a Vespa
Jogador N° 1
O Primeiro Homem
Vingadores: Guerra Infinita

Levaria: Jogador N° 1

sábado, 23 de fevereiro de 2019

Crítica: A Mula

Despido de pose, Clint Eastwood revisita o arquétipo que definiu sua carreira em filme regado a frontalidades.

Por Pedro Strazza.

Em determinada altura de A Mula, pouco depois do primeiro encontro do protagonista Earl Stone (Clint Eastwood) com o agente do DEA Colin Bates (Bradley Cooper) em um restaurante de beira de estrada, o próprio Bates sai do estabelecimento buscando o senhor de idade para lhe devolver uma garrafa térmica que havia esquecido no local. Após o que é uma segunda breve conversa sobre amenidades, a câmera no minuto seguinte ao fim do encontro registra o alívio de Earl de saber que não foi pego pelo policial, mas menos por uma questão de relaxo e mais de temor; o longa enquadra pela primeira vez o nonagenário de maneira encolhida perante a picape gigantesca - agora quase uma criatura, com vida própria e ameaçadora - que se encontra no primeiro plano.

Por mais trivial que pareça e tardio que esteja dentro da narrativa, este momento é um ponto de virada importante aos rumos do filme por sacramentar uma mudança de perspectiva brutal na visão de seu protagonista, que começa a história fazendo uma opção sem volta pelo trabalho em detrimento da família. Item fundamental na realização do tal do sonho americano, o carro também é naturalmente um elemento dramático central nos caminhos do road movie no qual A Mula se estrutura: os veículos dirigidos por Earl ocupam espaço considerável em seu arco dramático, refletindo parte de suas transformações tanto no campo financeiro quanto no espiritual, o qual desemboca neste cenário onde a picape deixa de ser um membro do personagem para de algum jeito confrontá-lo e assustá-lo.

A grande questão é: por que um carro intimidaria tanto o protagonista?

A resposta é tola mas ao mesmo tempo exige uma certa complexidade contextual, uma que ilustra em parte o jogo narrativo curioso que nutre as ambições e frutos do longa que marca um novo retorno de Eastwood da aposentadoria como ator e mais uma vez o submete ao exercício da própria direção. A volta é curiosa dado o cenário da coisa: oficialmente longe da frente das câmeras desde Gran Torino, o filme não só é a primeira ocasião no qual o artista contorna a própria declaração para trabalhar de novo consigo mesmo (o ator já havia voltado atrás antes com o drama esportivo Curvas da Vida) mas também é o seu segundo projeto com o roteirista Nick Schenk, com o qual havia trabalhado justo na produção de 2008 sobre um idoso sendo forçado a reconhecer que seu tempo havia passado. E embora o Gran Torino do título não esteja presente, a premissa da última colaboração de Schenk com o cineasta aparece aqui novamente, agora baseada na história real de um senhor de oitenta anos pego traficando noventa quilos de cocaína.

O mais curioso de se observar em termos de contexto, porém, é como este novo trabalho de Eastwood se relaciona com seus antecessores no campo temático, mesmo mostrando distância clara em vários aspectos cruciais. Isso porque A Mula no fundo não deixa de servir de continuidade ao processo de desconstrução que o diretor vem exercendo aos próprios valores desde Sniper Americano, levantando contradições cada vez maiores - e desestabilizadoras - dentro do mito de formação dos supostos "heróis americanos" através de histórias reais e ocorridas no século XXI. Se Sniper, Sully e o recente 15h17: Trem Para Paris vieram para formar uma espécie de grande trilogia sobre a fragilidade e a maldição de tal arquétipo dentro deste novo século, faz sentido que agora Eastwood decida redirecionar este processo à própria imagem, ainda mais porque ele já abraça há tempos esta figura do "homem sem nome" que é síntese dos valores de um Estados Unidos passado.

Se esta ideia sugere de início uma auto-homenagem explícita e enaltecedora, o procedimento que guia as quase duas horas da produção revela o contrário. Do alto de seus quase 89 anos, o diretor-ator encarna um personagem claramente frágil, desde o físico "caído" e longe do auge da musculatura até a composição do papel, que denota a mente mais fraca e fadada à falha a qualquer instante, para dar voz a uma atuação que já nos minutos iniciais traça conexões íntimas com a figura de Eastwood; se o flashback para meados dos anos 2000 do prólogo serve para estabelecer a raiz de todos os conflitos morais de Earl no retrato simbólico do abandono de sua família em prol da carreira, ela também resgata uma imagem do passado do diretor, a de cineasta reconhecido e popularizado pela indústria.

O tempo sem dúvida passou para Earl e Eastwood, porém, e esta constatação circunda todos os movimentos da narrativa como uma maldição nunca verbalizada mas bastante presente na residência prestes a ser retomada pelo governo ou o conflito escancarado com a família - somente a neta (Taissa Farmiga), coitada, ainda nutre algum carinho pelo protagonista, talvez apenas pela imagem de avô que ele carregue de maneira inerente. O diretor, enquanto isso, nunca deixa de manter alimentado esta chama que alimenta o espelho para com seu papel, em movimentos que incluem atos drásticos como os de escalar a filha Alison Eastwood para o papel da filha do floricultor e Cooper (com o qual trabalhou em Sniper Americano e depois passou o comando do remake de Nasce Uma Estrela) na função de seu captor, o agente do DEA que depois nutre uma relação quase parental de aconselhamento.

Nestes momentos, o que impera na narrativa é acima de tudo o desmonte, em especial da relação que o protagonista nutre com o trabalho a ponto de levá-lo a traficar para a máfia, e é aí que o filme deslancha pra valer em seus propósitos. Todos os meandros da história se revelam aos poucos convertidos para uma questão de status; ela começa no desejo semi-automático de Earl por "mais" (mesmo quando em certo ponto ele já acumulou o suficiente para viver uma boa vida), mas também passa por outros como o chefe da operação (Andy Garcia), o Julio (Ignacio Serricchio) que acompanha o senhor de idade depois dele se tornar uma das principais "mulas" (e é o "segundo em comando" quem melhor representa os perigos desta ambição pela reputação tratadas pela produção, depois de Earl) ou mesmo os agentes federais cuja sede maior na trama é o "valor midiático" de uma grande apreensão. A Mula, enquanto isso, filma todos estes arcos como um grande ciclo fadado à destruição - o momento da morte do mafioso vivido por Garcia, por exemplo, não esconde a intenção na confusão visual dos tiros disparados "simultaneamente", ainda mais quando eles sucedem uma salva de palmas artificial.

É também esta sensação de frontalidade na representação, aliás, que comanda o longa de forma tão clara quanto seus movimentos. É uma artificialidade aparente que Eastwood carrega de seu Trem Para Paris e que aqui não só reforça a estruturação do projeto mas lhe amplifica sua potência pela banalidade, pois é ela quem despe o cineasta de qualquer postura maior e o mergulha sem hesitação na posição de "alvo". Isto fica claro nas interações com seus membros familiares mais próximos - em especial nos diálogos com a ex-esposa, vivida com muito cuidado por Dianne Wiest no equilíbrio dramático e cômico - mas ganha virulência quando Earl se encontra na estrada e, portanto, em contato com o mundo: suas interações com pessoas como a gangue de motoqueiras lésbicas, o casal negro e o policial de beira de estrada ajudam a acentuar o deslocamento antes não percebido pelo personagem da realidade à sua volta, além de ressaltar os limites e os absurdos de sua própria posição em relação a outros - algo evidente na cena no qual os acompanhantes da "mula" são parados com suspeita pelo oficial, que não repete o mesmo tratamento para o idoso.

O mais curioso deste processo narrativo, porém, é como A Mula admite o tom cômico em meio a tudo isso. Por mais trágicas e dolorosas que suas resoluções sejam (e o último plano não mente nesta condenação literal), a performance e a direção de Eastwood saem leves até onde é possível, num bom humor que talvez reflita a real aceitação de quem produza uma obra destas em um estágio de vida tão avançado. Se Clint entende que sua imagem já se encontra cristalizada na História a ponto de servir de tema de debate, ele aproveita sua "queda" não apenas para (de algum jeito) acertar as contas deixadas em sua trajetória como refletir se sua jornada no fim valeu a pena - uma noção que só poderia estar presente em sua última conversa com o personagem de Cooper, óbvio.

Nota: 9/10

domingo, 17 de fevereiro de 2019

Crítica: Alita - Anjo de Combate

Adaptação é apenas Robert Rodriguez com orçamento e um grande estúdio por trás.

Por Alexandre Dias.

O cenário pós-apocalíptico devastado pela guerra e a sociedade disforme. Sejam quais forem as pequenas diferenças dos filmes que possuem esse pano de fundo, dos ciborgues aos desertos, é difícil não ter um pouco de preguiça do tema. O desgaste é claro, tanto pela imensa quantidade de projetos assim nos últimos anos – muito disso se deve à invasão juvenil de adaptações literárias -, como pela falta de criatividade nas histórias; os roteiros parecem reciclados de tão similares, recorrendo a pequenas reviravoltas “diferentes” para mudar.

Não que o assunto em pauta não seja legal, basta ver quantos clássicos e sub-clássicos advindos dessa linha fílmica já foram lançados. É redundante comentar sobre Mad Max, porém O Livro de Eli é uma ótima prova de produção totalmente derivada do gênero e que sabe ser inventiva dentro dele, ainda que com os seus escorregões. Se não um novo expoente que siga esse caminho, talvez uma das únicas opções para uma reinvenção seria a desconstrução, a exemplo de Os Imperdoáveis e Logan, no faroeste e com os super-heróis, respectivamente. Alita: Anjo de Combate não flerta com nenhum desses rumos.

Depois de ser adiado algumas vezes, o longa dirigido pelo veterano Robert Rodriguez e que tem a mão de James Cameron na produção e no roteiro, traz o contexto mais clichê possível do pós-apocalipse. Humanos cada vez mais com partes mecânicas, uma terra dividida entre ricos no céu e pobres no solo e um passado de guerras. Elysium, Blade Runner e Ghost in the Shell são apenas algumas das reproduções temáticas que podem ser identificadas na obra. E não há problema nisso, sendo o verdadeiro demérito a maneira como esse mundo e os seus integrantes são desenvolvidos.

Comecemos pelos personagens. O único deles que é realmente digno de nota é a protagonista, encarnada por Rosa Salazar. Na verdade, o papel em si é muito fraco e todos os mistérios que cercam a jovem guerreira são óbvios, contudo a inocência de Alita mesclada a sua perseverança geram um carisma que a atriz segura bem ao longo da produção. Os outros ao seu redor são absolutamente mal construídos. Hugo (Keean Johnson), por exemplo, começa como o clássico interesse amoroso juvenil, mas a importância desenfreada que ele ganha na trama torna-se bizarra, a ponto do espectador se perguntar se aquilo é burrice ou só piegas mesmo.

A impressão destas consequências é de que o roteiro foi remendado devido à produção atribulada, especialmente na virada do segundo para o terceiro ato. A trama começa a perder sentido, como no momento em que do absoluto nada Alita participa de uma competição logo após uma série de acontecimentos estranhos. Isso sem falar nas atitudes de personagens similares a de Hugo; Chiren (Jennifer Connely) e Zapan (Ed Skrein) são os que mais sofrem com ações esquisitas ou incoerentes nos seus pontos decisivos.

Entretanto, é engraçado como essa confusão narrativa acaba beneficiando os clichês da história por um lado, mesmo que não chegue nem perto de salvá-la. Com certeza o responsável é Robert Rodriguez, que faz o seu Pequenos Espiões com orçamento. O jogo citado acima é divertido, ainda que surja abruptamente e é algo que pode ser esperado do cineasta. Inclusive, o visual como um todo transmite essa sensação, pois é extremamente digitalizado e difícil de engolir em determinadas horas – leva tempo para se acostumar com o rosto de Alita -, porém o excesso do caricato em cima disso promove uma imersão curiosa no universo, que entre uma cena e outra é bonito de se ver.

A maioria delas acontece na ação. Rodriguez ativa totalmente a sua caracterização de videogame, o que deixa a habilidade de Alita, por exemplo, um tanto inverossímil, mas agradável. O confronto dela com Grewishka (Jackie Earle Haley) é literalmente a incorporação desse exagero benéfico. Não se pode dizer que estamos diante de um filme empolgante e que a pancadaria enche os olhos, mas há uma escolha oferecida ao público de ter um pequeno deleite naquele estilo.

Para um projeto clichê e destrambelhado é uma vitória ter esses momentos. É o melhor que Alita tem a disponibilizar, mais nada. Muito menos uma franquia, a qual foi pensada antes mesmo do nascimento deste longa por si só. Há um gancho enorme no final, que só realça a falta de potencial para uma nova marca hollywoodiana. Pelo menos a figura que dá as caras nos últimos minutos é interessante. Um pouco...

Nota: 3/10

domingo, 10 de fevereiro de 2019

Crítica: Vice

Adam McKay confunde sátira com escárnio em cinebiografia tomada pela ira.

Por Pedro Strazza.


A política dos Estados Unidos nunca deixou de pautar as comédias de Adam McKay, mesmo quando seus projetos descambavam para o completo besteirol. Por mais "inocentes" que fossem na superfície de sua escatologia e ridículo, longas como Quase Irmãos, Ricky Bobby e os dois O Âncora carregavam nas entrelinhas críticas ácidas a modelos de conduta dos norte-americanos, num jogo que servia ao diretor para ressaltar a hipocrisia por trás do conservadorismo de uma sociedade disposta a colocar no poder pessoas que pregavam a família e o divino acima de tudo. É um procedimento, vale acrescentar, que o cineasta nunca executou com sutileza, a exemplo de Quase Irmãos cuja abertura é literalmente uma fala do então presidente George W. Bush sobre núcleos familiares.

Mas depois de passar quase duas décadas dedicando este esforço de sátira por segundas vias, McKay enfim tem em Vice a chance de direcionar seu cinema aos republicanos do governo Bush e, claro, o vice-presidente Dick Cheney, em sua visão responsáveis pela preservação de tal lógica no início do século XXI e por isso mesmo (e pelo menos até a administração Trump) seus maiores vilões. E é uma frontalidade que o diretor abraça sem o maior medo, graças a toda uma "reputação" de autor que conquistou com o sucesso de A Grande Aposta: o filme logo nos primeiros momentos faz questão de retratar Cheney (Christian Bale) em uma posição humilhante, sendo parado pela polícia por dirigir tão bêbado a ponto de ser incapaz de se levantar da cadeira de motorista.

É exatamente este viés de humilhação, de oferecer poucos espaços para qualquer tipo de humanização que toca a narrativa do longa. Enquanto o roteiro de McKay busca organizar a história de vida de Cheney intercalando o processo político que o levou ao poder com relances do monstro que ele se tornaria enquanto vice-presidente do país, sua direção não hesita em ressaltar o quão patético era a pessoa por trás da figura do monstro. É uma condição a se tornar mais clara nos golpes fáceis a exemplo de todo o retrato da juventude delinquente do político - e cujo clímax óbvio é a cena da bronca da esposa Lynne (Amy Adams) -, mas até em cenários onde Cheney poderia ganhar pontos com o público o filme parece se divertir em ressaltar as hipocrisias do personagem pelo humor: no momento em que a filha Mary (Alison Pill) revela aos pais ser lésbica, por exemplo, a câmera de McKay parece se concentrar na dinâmica entre Dick e a esposa, enfocando a maneira como a última julga o marido por trair ideais ao aceitar a sexualidade da cria.

O principal objetivo de Vice, porém, é o ato de jogar os holofotes sobre o político e os republicanos que comandou para expor na telona todos os seus atos vis enquanto vice-presidente, especialmente seu assalto ao poder em meio ao caos do 11 de setembro e tendo em vista a posição de banana do então presidente Bush (retratado como verdadeira caricatura nas mãos de Sam Rockwell). Para tanto, McKay não economiza na metáfora e exposição para dispor ao espectador todos os motivos e elementos que levam Cheney a conseguir colocar em prática na política americana a tal da teoria do poder executivo unitário, que o permitiria ter controle total sobre o sistema do país e executar a máquina direcionada a seus interesses - e é esta ira do diretor perante o mal uso das instituições pelo oficial quem no fundo move a produção a todo instante, até porque são estes atos vis retratados que viriam a pautar todos os rumos da próxima década de uma sociedade da qual ele e o público se inserem.

Esta postura raivosa do filme sobre os fatos relatados em teoria seria suficiente dado o nível das consequências dos atos de Cheney em sua manipulação dos mecanismos políticos do país, mas no fim é também ela quem leva o longa à lona mesmo antes da luta começar. Se McKay tem toda uma irritação para converter na produção, esta por sua vez parece ser acometida por uma condição de momento no qual a cada passo dado se faz necessário criar um tom jocoso próprio para expor a farsa em andamento, uma metodologia que na montagem estilizada de Hank Corwin só contribui para tornar o projeto desencontrado. Não ajuda também, claro, o fato de que ao contrário de A Grande Aposta o diretor aqui assina o roteiro sem tomar qualquer material (um livro, uma pesquisa) como base, um fator que talvez explique o porquê de Vice soar tanto como um exercício reacionário - algo em si contraditório, dado a clara postura liberal de McKay - quanto cafona e bobo nas metáforas e alegorias propostas.

Assim, o que começa como vingança aos poucos descamba para uma explosão emocional sem direcionamento, um stand-up de ira que não sabe diferir a sátira do escárnio. Vestidos de versões mais fidedignas de celebridades parodiadas pelo SNL, Bale e Adams só tem como dar voz a este jogo perverso  pela consciente aceitação do desastre em andamento, equilibrando-se a passos trôpegos entre o humor sádico e o que quer que reste de sobriedade ao projeto para viver cenas patéticas como o solilóquio shakespeareano (é difícil não revirar os olhos ao paralelo com Macbeth) e manter a produção longe da ofensa pura e simples. Não há espaço para personagens ou uma trama no filme, mas sim uma sequência de comentários irônicos mal costurados.

O que mais entristece em meio a tudo isso, porém, não é apenas a oportunidade perdida de se fazer uma investigação a uma das figuras políticas mais nefastas e importantes do cenário político estadunidense moderno, mas também a aparente ingratidão de McKay com as origens de seu próprio cinema e mesmo seu público. Além do aceno à desatenção do público com a realidade à sua volta feito por A Grande Aposta se converter aqui em moral condenatória - o discurso de Cheney ao espectador, com seu "Eu apenas os servi", é o momento em que Vice efetivamente assume e escancara a chacota para o próprio público -, a cena pós-créditos ainda vem para confirmar esta tendência e ampliá-la ao escopo do "sistema", apontando o dedo a tudo e todos como um velho louco e paranoico que só brada aos quatro ventos que é tudo uma grande piada de mal gosto - algo que não deixa de ser uma grande ironia se considerar o locutor da vez, veja bem.

Nota: 3/10

sábado, 26 de janeiro de 2019

Crítica: Creed II

Adonis mais uma vez relembra o legado de Rocky e constrói o seu próprio.

Por Alexandre Dias.

Da leva de franquias gigantes restauradas nos últimos anos, Creed é a que mais sabe se aproveitar dos elementos clássicos dos seus antecedentes. A nostalgia, os personagens originais e novos e a modernização dos pontos técnicos são fatores que, apesar de bem sucedidos no geral em marcas como Star Wars e Jurassic Park, não foram tão bem esquematizados como nos derivados de Rocky Balboa.

Em 2015, Ryan Coogler conseguiu imprimir uma identidade urbana e visual muito contundente na primeira jornada do filho de Apollo Creed. A junção com o carisma habitual de Sylvester Stallone na pele do Garanhão Italiano terminou por garantir o retorno desse universo cinematográfico ao mercado, com uma sequência já esperada sendo confirmada pouco tempo depois.

Não era muito difícil de imaginar a volta de Dolph Lundgreen como Ivan Drago. A questão era fazer um confronto plausível entre o seu pupilo, o próprio filho, contra Adonis (Michael B. Jordan) sem parecer piegas. De fato, é isso que Creed II faz. Uma grande costura. Porém, a ligação entre os eventos premeditados não é fútil e o diretor Steven Caple Jr. promove, por meio do roteiro de Stallone e Juel Taylor, um filme saudosista e que olha para frente.

O longa é previsível, mas tira proveito disso. Há situações que replicam sem rodeios os acontecimentos passados, principalmente de Rocky 3 e Rocky 4. E o mais impressionante é que o efeito impactante delas ainda está lá, justamente pelo timing preciso de Caple. Ele sabe, por exemplo, em que momento utilizar o tema clássico e um rap motivacional. São pequenos ajustes de tom como esse que “modernizaram” a breguice da franquia, aceitável para a época, ao mesmo tempo em que há a manutenção de sua essência.

A trajetória de Balboa tornou-se cada vez mais pipoca ao longo de sua vida. Desafios maiores e até habilidades quase que especiais – o treinamento dele na Rússia e o resultado físico em comparação ao primeiro filme já falam por si só – atribuíram uma faceta divertida ao lutador e não eliminaram o grande trunfo dele, que é a superação e força de vontade. Na jornada de Adonis isso permanece. Ele está mais musculoso nesta sequência e enfrenta um adversário mais poderoso, que, inclusive, tem um treinamento cômico e empolgante simultaneamente. 

As próprias lutas merecem ser evidenciadas. Coogler já havia caracterizado as batalhas com maestria, por meio da movimentação de câmera ímpar. Caple consegue replicar a atualização que o diretor de Pantera Negra fez nos combates, contudo dá a sua cara, deixando-as mais cruas. A pancadaria é surreal de certa forma, porque todos apanham muito mais do que poderiam, mas não há a impressão que estamos vendo algo programado e distante. Todas as vezes que os oponentes sobem no ringue há tensão e euforia.

Os personagens também são muito bem trabalhados e se desenvolvem na medida certa. Michael B. Jordan firma o seu guerreiro impulsivo e em constante amadurecimento, muito por causa de Bianca. O roteiro é sagaz em colocar o alter ego de Tessa Thompson (ótima, por sinal) como parte essencial do crescimento de Adonis, porém com pontos pessoais igualmente importantes e que sustentam o papel – um dos números musicais da atriz é simplesmente espetacular. 

O maior ídolo da Filadélfia é outro que é bem utilizado. Seu desafio principal nesse longa é a relação com o filho, algo bem puxado dos anos 80. O que realmente o coloca em uma posição confortável é a interação com o filho do Doutrinador e Bianca, que o permitem deslanchar frases de efeito e emocionantes. A grande surpresa é a dupla Drago, que ressurge em um contexto bem clichê e segue assim durante toda a produção, até comprovar a sua verdadeira profundidade no terceiro ato. Viktor (Florian Munteanu) mal fala e é um dos melhores personagens do projeto.

Por que Adonis Creed está lutando? É a pergunta que ele se faz o filme inteiro e que é respondida sem ser respondida. Isso é Creed II. Uma obra que existe para deleitar completamente os fãs de Rocky Balboa, mas que entende esse fato, não se deixando, portanto, a cair em armadilhas batidas. E é por não subestimar o espectador que alcança um patamar significativo na história do Garanhão Italiano e também cria a sua própria.

Nota: 8/10

sábado, 19 de janeiro de 2019

Livrai-nos do mal

Ou como Colette e A Esposa são em essência o mesmo filme.

Por Pedro Strazza.

Só pode ser uma coincidência irônica do destino que A Esposa e Colette tenham sido produzidos e lançados para a mesma temporada de premiações. Para quem assistiu os dois filmes - o que é uma probabilidade, dado que o primeiro foi lançado nos cinemas praticamente um mês depois do segundo - a sensação de déjà vu é clara mesmo que envolta em uma neblina de sentimentos conflitantes, já que ambas as obras em teoria compartilham apenas uma ou duas características imediatas.

Dado, é válido notar a princípio que ambas surgem de premissas diferentes em contextos diferentes. Enquanto A Esposa é baseado em um livro de ficção ambientado nos tempos atuais, Colette é uma cinebiografia da escritora francesa homônima que viveu entre o fim do século XIX e o começo do XX. Mesmo em suas formatações as duas obras não se assemelham: o primeiro, dirigido pelo sueco Björn Runge e estrelado pelos veteranos Glenn Close e Jonathan Pryce, conduz sua narrativa aproveitando o máximo das predisposições teatrais de seu elenco; o segundo, de autoria de Wash Westmoreland e encabeçado por Keira Knightley, segue o padrão convencional do gênero com alguns poucos twists para manter a história em rotação diferente de outras tantas biografias da telona, sem tirar o espectador do terreno conhecido no meio do caminho.

Ao mesmo tempo, porém, os dois filmes não deixam de possuir os pontos de contato superficiais citados acima, especialmente na questão da relação dos casais principais. Isso porque a grande reviravolta de A Esposa é o ponto de partida de Colette: o marido que toma a autoria (e por consequência, a fama) da esposa. No primeiro, isso é um segredo a ser desvendado pelo espectador, conforme vai ficando clara na condução da história que a relação entre os personagens de Close e Pryce são assombradas de alguma forma por erros do passado - que serão devidamente ilustrados em flashbacks nada discretos. Já o segundo usa isso como base para explorar o relacionamento "atípico" de Colette com o primeiro marido Henry Gauthier-Villars (Dominic West), cujo casamento emulou de certa forma os livros picantes escritos por ela e publicados no nome dele.

Mas se esta coincidência de roteiros de início é, bem, uma mera coincidência, a maneira como tanto Runge quanto Westmoreland lidam com o desenrolar deste fato acaba por converter ambos os projetos a um assustador mesmo ponto de encontro.

O mais bizarro, porém, é como os dois longas cometem os mesmos erros na hora de lidar com uma relação mais ou menos similar. Tanto A Esposa quanto (e em especial) Colette faltam em maleabilidade e, talvez, maldade na hora de lidar com relacionamentos que aos olhos de hoje são vistos - de forma correta, vale acrescentar - como tóxicos. Tanto Runge quanto Westmoreland adotam posturas conservadoras e de julgamento perante a relação de seus respectivos casais, jogando o marido na posição de grande vilão a ser derrubado e privilegiando o drama da esposa que se vê intimada a se submeter a tamanho vil esquema.

É uma narrativa correta e que certamente há de agradar o olhar do público de hoje - que, pelo menos espero, já aprendeu a identificar estas dinâmicas e adotar a devida postura crítica a elas. Ao mesmo tempo, esta decisão pelo julgamento contemporâneo do passado não deixa de carregar um olhar anacrônico de relações: aos olhos do público e do cineasta, é fácil olhar para eventos do passado dos personagens e julgá-los como certos ou errados de sua posição no presente, diagnosticando os momentos - seja em flashback, seja no presente narrativo mesmo - que levaram estes relacionamentos a uma posição tão maléfica.

O mais difícil (e, portanto, mais interessante) nestas horas seria abraçar esta aparente toxicidade declarada pelos olhos de hoje para entender seus mecanismos, algo que nem é tão inédito assim. Só no ano passado, por exemplo, tivemos na mesma época de Oscar o Trama Fantasma de Paul Thomas Anderson que tinha numa toxicidade de relações o seu mote de existência, mas que ao invés de dar o passo para trás e criar uma esfera de julgamento sobre cada um dos personagens fazia este mergulho; havia a constatação de que tanto o marido quanto a esposa tinham suas próprias motivações perturbadoras para viver aquele amor vil, o que só potencializava o drama em torno dos personagens.

É inevitável, então, que ambos os filmes terminem num mesmo poço, mergulhados em problemas parecidos. Enquanto o esposo há de pagar por seus pecados, de um jeito ou de outro sendo despido do amor de sua vida sem perceber a própria tragédia, a mulher liberta-se na confissão ao público - ou, pelo menos, na promessa de que a verdade há de ser revelada, como é o caso de A Esposa.

Não deixa de ser um bom espaço às atrizes envolvidas, que cada uma a seu jeito são obrigadas a carregar estas sinas das produções nas costas. No caso de Close, talvez tenha chamado a atenção dos votantes do Oscar o fato da atriz praticamente ter que fabricar o próprio drama no longa, já que toda a dramaturgia que move sua personagem mora na sua versão mais jovem - que claramente não consegue dar voz à tragédia, vide o caráter funcional que os relances do passado assumem na narrativa.

Em outros tempos (e caso Colette não fosse baseado em fatos, é bom lembrar), seria bem capaz de haver um mote religioso embutido nesta confissão, com direito a "livrai-nos do mal", bíblia e até padre no meio. Uma pena, dada a dedicação dos respectivos elencos protagonistas e dado que o pérfido sempre rende filmes no mínimo curiosos de serem vistos.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Vecchiali, cinema e divagações

Ou também "acertando as contas com o passado".

Por Pedro Strazza.

2019 é um ano relativamente importante para O Nerd Contra-Ataca: no próximo dia 14 de dezembro, este blog completa nada menos que dez anos de vida.

Dez anos.

É uma data que certamente exige algum tipo de comemoração, embora por aqui o que aconteça no fundo vá passar mais por fins de demarcação. Os trabalhos devem continuar ativos por aqui no atual esquema das coisas - difuso, irregular, porém presente - mas até chegarmos ao fatídico aniversário devo (e quero) fazer maiores experimentações com este blog, algo que talvez tenha começado agora com esta escrita em primeira pessoa tão atípica e improvisada.

Antes de tratarmos do futuro, entretanto, é preciso acertar contas com o passado - ou, no caso, o meu passado. Faz pouco mais de um ano que, durante a 41° Mostra de Cinema de São Paulo, eu tive a oportunidade de entrevistar o Paul Vecchiali, grande diretor francês que na época estava sendo homenageado pelo evento com uma retrospectiva de sua carreira e o prêmio Leon Cakoff. Admito que para mim foi um momento de grande felicidade profissional, pois na época já era fã de seu cinema e estar frente a frente com um cineasta do qual se admira é sem dúvida daqueles momentos inenarráveis da vida.

O problema é que, bem, o material nunca foi publicado por erros meus. A matéria deveria ter saído no B9 durante a época do festival, mas como estava em meio às turbulências do fim de ano e do fim de ciclo universitário eu só consegui ter tempo de aprontar a transcrição da entrevista quase uma semana depois do fim da Mostra - e como não havia sinal (ou houve também, dado que ele permanece inédito) de que o filme que Vecchiali lançava no evento ia chegar ao circuito, acabei me vendo obrigado a arquivar a conversa.

Desde então este material me atormenta, pedindo para sair em algum lugar, em algum momento. Por isso, resolvi aproveitar o novo começo de ciclo do calendário para libertá-lo de minhas correntes de insegurança - até porque o material é bom demais para permanecer escondido.

Antes de ler a entrevista, querido leitor, acho válido atentar e reforçar algumas questões de contexto: esta entrevista foi feita poucos dias depois (senão no dia seguinte, com o perdão da ausência de memória) de Vecchiali ter feito a estreia global de seu então novo trabalho, Os Sete Desertores, durante a 41° Mostra de São Paulo em 2017 - muito antes de seu Trem das Vidas e a Viagem de Anjélique ter sido lançado na 42° edição do mesmo evento. Como o começo da conversa deixa claro, por conta da correria do festival acabei não conseguindo ver o filme na época (e nem até agora, diga-se de passagem), o que abriu margem para que eu pudesse focar em algumas questões específicas da carreira e do cinema do diretor.

Vale também avisar que, por conta de uma barreira de língua (Vecchiali só fala francês), toda a discussão foi intermediada com uma ajuda divina de uma tradutora, que fez o melhor para transmitir da forma mais fidedigna possível o raciocínio do entrevistado.

Posto tudo isso, gostaria de comentar que Vecchiali é uma pessoa extremamente fascinante de se conversar. Do alto de seus então 87 anos, ele mantém um apuro estético sobre sua pessoa que era muito evidente em seu echarpe de seda que usava ao mesmo tempo que preserva uma postura muito simpática com todos - algo que imagino, se deva em parte à maior atenção que recebe dos entusiastas cinéfilos de São Paulo, que na época compareceram em massa à sua retrospectiva.

O resto, bom, está na entrevista abaixo, que passa por todo tipo de tema e reflete muito da figura do entrevistado - além das aparentes inabilidades do entrevistador, se vale o exercício de auto-julgamento.

Feliz ano-novo a todos.

Queria começar dizendo que não consegui ver seu novo filme ['Os Sete Desertores'], infelizmente.

Ele é muito bom [risos], mas a cópia não é boa. É um arquivo comprimido que mandaram, é um som estéreo e não 5.1 e a imagem está mexida. Mas a cópia que chegou é em DCP, então as próximas projeções são boas.

Aproveitando o gancho, o filme está tendo sua première internacional na Mostra. Você decidiu lança-lo aqui por algum motivo especial ou foi por janela de oportunidade?

Não, na verdade ocorreu porque o filme tinha acabado de ser finalizado e o Rafael do Audiovisual do Consulado disse que ele tinha que ser colocado na Mostra. Esse filme também está em competição no festival de Gijón, na Espanha. Eles protestaram um pouco, eles queriam ter a estreia internacional lá, mas eles acabaram aceitando e disseram que ia ser uma ‘estreia europeia’. Mas a estreia internacional será aqui [risos]. O primeiro público que verá o meu filme são os brasileiros.

É uma honra, devo dizer.

Para mim também. [risos]

Você já sabia desde a infância que queria trabalhar com cinema, mas você chegou a atuar como crítico pela Cahiers du Cinema. O que levou você a trilhar este caminho?

Eu fiz tudo ao contrário. Minha mãe queria que eu estudasse, fizesse faculdade, e eu fiz a Escola de Engenheiros de Paris, também conhecida como a Politécnica de Paris, que é muito famosa. Depois eu fui para a Argélia pra fazer a guerra – o que explica o filme Os Sete Desertores, em que um dos personagens me representa. Fazendo um parênteses rápido, eu tenho uma relação de amizade com o Godard e sou anarquista, e o Godard me perguntou na época "Você é anarquista, porque você foi pra guerra na Argélia?". Eu respondi que eu não queria ser responsável pelos atos daquele que ia me substituir, e você vai escutar isso no filme se você for assistir.

Voltando da Argélia, eu vi o ‘Acossado’, de Godard, e o ‘Lola, A Flor Proibida’, de Jacques Demy, e eu pensei na época "Se eles podem fazer isso, eu também posso". Eu fiz um longa-metragem e um curta, depois eu me tornei primeiro-assistente dos diretores e aí sim eu entrei na crítica.

Mas o que te levou à entrar na crítica?

Eu assinava a Cahiers du Cinema e não estava de acordo com tudo que a revista dizia. Um dia eu enviei uma carta muito agressiva, e me responderam dizendo que ela não poderia ser publicada. Mas eles acharam que eu tinha razão, então me colocaram para escrever na Cahiers. Eles substituíram Eric Rohmer por Jacques Rivette como editor-chefe da revista, o Rivette leu minha carta e me pediu pra escrever sobre um filme de Sam Peckinpah, ‘Pistoleiros do Entardecer’. Depois disso eu escrevi algumas críticas pra eles, incluindo uma sobre Robert Bresson que ele me agradeceu muito. 

Um dia o Jacques Rivette não quis um artigo que escrevi e o texto apareceu na íntegra na revista assinado por outra pessoa, e foi aí que eu me despedi de lá. Daí eu fui escrever para outra revista chamada Imagem e Som, e lá eu tenho cerca de 200 críticas escritas. Isso tudo acontecia quando eu já era diretor.

Você se manteve bastante ocupado, devo dizer.

Eu posso trabalhar a vida inteira. O cinema é minha vida.

Um de seus trabalhos mais conhecidos é o 'Once More', que foi um dos primeiros filmes a lidar com o tema da AIDS, um assunto que não era muito fácil de se abordar naquele momento. Como você chegou ao tema?

Sim, sim, não era fácil. Eu não tenho medo da dificuldade, quando eu tenho vontade de fazer algo eu faço. Eu fazia uma série policial blockbuster muito violenta de sete episódios de uma hora, e na época eu escutei Charles Pasqua [Ministro do Interior entre 1986 e 1988, durante o governo de Jacques Chirac] dizer publicamente que a AIDS era um castigo divino para os homossexuais. Eu fiquei furioso. Teria agido da mesma forma se essa frase tivesse sido dita sobre os judeus ou os negros. Fiquei com tanta raiva que acabei escrevendo o roteiro do filme em dois dias, no fim de semana porque estava trabalhando, filmando a série. Depois disso não mudei uma palavra do roteiro.

Devo admitir, pra mim isso é algum tipo de recorde de velocidade de escrita [risos].

[risos] Houve vezes em que escrevi mais rápido. ‘Rose la Rose, fille publique’ foi escrito em uma manhã, eu sonhei com o filme durante a noite e quando acordei resolvi colocar no papel. Já ‘En Haut des Marches’ eu demorei cerca de quatro anos para terminar. Não é algo sistemático, tem coisas que vem mais rápido e outras não.

Desviando da minha pergunta por um momento, quando você está concebendo seus filmes você pensa primeiro numa narrativa, em um tema ou em uma história? Seus filmes são tão diferentes entre si, isso me deixa curioso.

Depende do filme. Eu não posso fazer duas vezes o mesmo filme. Uma vez uma distribuidora, depois de eu ter feito ‘Rose la Rose’, me propôs um contrato com muito dinheiro pra fazer mais um filme sobre uma prostituta, e eu neguei dizendo que já tinha feito um. Os meus dois últimos filmes, ‘Os Sete Desertores’ e um que ainda não foi lançado e que se chama ‘Trem das Vidas’, eu fiz ao mesmo tempo e são completamente diferentes, não tem nada a ver um com o outro.

Funciona para você fazer dois filmes diferentes ao mesmo tempo, sob esta perspectiva?

Essa foi uma decisão do produtor e não do realizador, mas eu que sou o produtor, então... [risos]. Ele me disse ‘Faça um filme todo passado em cenários exteriores, no caso Os Sete Desertores, e outro todo passado no interior, que é o Trem de Vida’. Eu sou louco de fazer tudo ao mesmo tempo, mas funciona: se chove enquanto filmo no exterior, vou pra dentro e filmo o interior. São os mesmos atores e os mesmos técnicos, mas acho que isso é óbvio [risos].

Voltando ao Once More, como foi a recepção do público na época?

O filme na época saiu primeiro na competição do Festival de Veneza e ele recebeu o prêmio da crítica e do público. Eu tenho uma história interessante sobre esse momento: Eu estava em um restaurante e acabei ficando posicionado de costas para Sergio Leone, que era o presidente do júri daquele ano e não me conhecia na época. Sem saber que eu estava atrás dele, ele disse [sobre o ‘Once More’] "Este filme é uma obra-prima, mas eu não posso permitir que ele ganhe o prêmio".

Ele disse mais alguma coisa depois disso?

Não. Eu desprezo ele, e felizmente não gosto dos filmes dele. Essa postura dele estava ligada ao tema da homossexualidade. O meu filme foi o primeiro da competição a passar no festival. No dia seguinte, os jornais italianos registravam catorze críticas, todas registrando cinco estrelas a ele, era o máximo, e depois eu fui obrigado a escutar isso.

Depois disso o filme estreou na França e foi mal recebido. Ele foi mal recebido pela população feminina e pelos homossexuais.

Você saberia o porquê disso?

Não, mas há dois anos o filme passou de novo no Festival de Cannes, numa sala cheia com mulheres, homossexuais e todo tipo de pessoa, e teve ao final da sessão vinte minutos de ovação. Eu acho que precisava de tempo para que as pessoas entendessem.

Entendo. Consigo imaginar a dificuldade que tenha sido tratar desse tema na época.

É, ainda mais porque foi o primeiro filme a tratar desse assunto. O que as pessoas mais criticavam na época era que eu estava querendo desdramatizar a situação. Tem uma frase da época que diz que havia milhões de vírus na sombra esperando que o da AIDS passasse de moda, e isso aconteceu. Eles achavam que isso era uma ofensa, mas na verdade foi exatamente o que aconteceu.

O filme foi aplaudido em Veneza, teve críticas excelentes, a Cahiers du Cinema elogiou bastante, mas o público teve uma reação bastante reticente, quase agressiva a ele. Agora, quando ele é exibido novamente, as sessões ficam cheias e as pessoas gostam do filme.

Sinal dos tempos. [risos]

[risos] Sim, sim. Mas agora eu não posso esperar 35 anos pelos filmes que eu faço agora [risos].

Aproveitando que você tocou no tema da sua produção recente, ela se diferencia bastante dos filmes anteriores. O que levou a isso?

O que mudou é que, à medida que fui ficando velho, eu quis prestar homenagem aos filmes e cineastas que me fizeram sonhar e que admirava. Há mais citações e referências em meus trabalhos agora, além das técnicas terem se ampliado, mas pra mim a minha narrativa fílmica é a mesma.

Hoje em dia há algum diretor contemporâneo cujo cinema te atraia?

O único cineasta que me interessa hoje é Laurent Achard. O que me desagrada no cinema desses últimos anos é que o texto, os diálogos desapareceram; eles são muito comuns. No cinema americano e no cinema francês há uma maneira de interpretar que se diz natural mas é totalmente artificial. Todos os atores e atrizes hoje atuam quase que mecanicamente, é horrível. Falta conteúdo, eles parecem marionetes.