domingo, 19 de maio de 2019

Crítica: John Wick 3 - Parabellum

A grande comédia da luta entre o caos e a ordem. 

Por Pedro Strazza.

Para um filme que é movido acima de tudo pela frontalidade de seus atos e a movimentação de seus personagens dentro do espaço de ação, chega a ser um pouco surpreendente de início que John Wick 3 - Parabellum recorra com tanta frequência à comédia. Não que este uso seja uma nova tendência dentro de uma franquia nascida com pé na paródia - estamos falando de uma história cuja premissa inicial era a vingança pela morte de um cachorro, é sempre bom lembrar - mas é difícil não reparar na presença mais assertiva do elemento cômico na narrativa, especialmente pela centralidade que ele ocupa nas peças maiores de uma obra ditada acima de tudo pelo combate e o movimento.

Corpos que são enchidos de facas, cavalos cujo coice é "recarregado", cachorros que miram as partes íntimas dos inimigos para abatê-los, lutas com inimigos que reconhecem e agradecem o protagonista por honrá-los com a oportunidade... não são muitos os momentos climáticos da produção que escapam desta reiteração do humor, seja na gag física ou mesmo pelo recurso da fala.

Esta inclusão também pega de surpresa o público dado o caráter decisivo que este capítulo da franquia aparentemente promete, não só em relação aos seus antecessores como também ao cenário hollywoodiano no qual se situa. Como qualquer terceiro episódio de trilogia que se preze (mesmo em um mundo onde o conceito "trilogia" em si se mostre cada vez mais ultrapassado pelo mercado), Parabellum sugere ao contrário dos outros John Wick uma sensação de fechamento, de grande clímax final criado a partir do gancho deixado por Um Novo Dia Para Matar que coloca o protagonista do título contra o mundo do qual habita, mas se em teoria todos os elementos apontam para um desfecho o filme de Chad Stahelski segue na via contrária, prolongando a existência da história quase como um acompanhamento dos esforços de seu protagonista para escapar da cilada na qual se encontra.

É uma subversão de expectativas que carrega sua cota de frustrações, é claro, até porque o longa (como em todo o resto da estrutura) não esconde o caráter episódico de sua história, que dá voltas e voltas apenas para terminar quase no exato mesmo lugar - seja na relação de desestabilização do sistema ou no drama de luto, o arco de Wick (Keanu Reeves) visivelmente é posto on hold pelo roteirista Derek Kolstad. Em um cenário tradicional, esta seria a típica decisão fatal a qualquer franquia que se preze, muito porque esta interrupção a princípio deslocaria Parabellum enquanto elo de uma corrente narrativa maior e levaria os seus próprios propósitos a um ponto perigoso. Afinal, se uma franquia subexiste na jornada de seus personagens, por que alguém se interessaria numa produção que renega esta função de forma tão clara? O truque de John Wick 3, neste momento, é de definir sua estrutura justamente como uma que ocupa este vácuo com a ação, uma decisão nem tão difícil dado o grau de intensidade sob o qual a produção afilia todas as suas dinâmicas em cima da porradaria generalizada.

Assim, o filme que começa na promessa de uma conclusão se torna o típico caso de "um contra todos" adequado aos pormenores de uma narrativa de três atos reformados como grandes set pieces. Enquanto ao roteiro cabe fazer as devidas ligações da maneira que pode (o que talvez incorra na repetição escancarada e um pouco porca da escalada atordoante de maleabilização de espaços), resta ao espectador decidir se a troca em si é compensatória, uma questão que explica parte do caráter divisivo deste terceiro episódio.

Não que Stahelski não aproveite esta mudança, é bom ressaltar. Beneficiado por um claro aumento de orçamento, o diretor aqui aperfeiçoa a dinâmica de ação da franquia ao ponto da perfeição, repetindo com Keanu Reeves e do diretor de fotografia Dan Lautsen todo o grande pastiche do antecessor com maior tendência ao caos, conferindo a cada grande set piece o seu próprio adereço de destaque. Tudo amarrado pelas vias da gag física, o que só reforça a configuração do humor ancorado nos movimentos dos conflitos (e não o contrário) e o estreitamento dos laços da franquia com os longas de Buster Keaton, eleito a partir do segundo filme como sua maior influência.

É desta forma, então, que Parebellum efetivamente se converte em uma verdadeira comédia de caos, no mesmo viés que Um Novo Dia Para Matar se erigia como grande musical pautado por tiros e socos. O filme destila referências (o teatro apropriadamente chamado Tarkovsky) na mesma intensidade com a qual seus personagens vociferam pérolas de grande sabedoria barata e o diretor reforça suas metáforas visuais (como os atiradores que substituem as bailarinas), e em meio a tudo isso o ambiente é efetivado por Stahelski à posição de ferramenta que transforma os combates e ordena o caos, do corredor munido de armas brancas que só agiliza e restringe os movimentos dos combatentes ao clímax que repete o desfecho no museu de Um Novo Dia Para Matar substituindo os espelhos por vidros na tarefa de modelar o espaço de cena da luta de Wick contra o mercenário de Mark Dacascos e seus subalternos. Há espaço até mesmo para outros personagens ocuparem o protagonismo dos "números", a exemplo da gerente vivida por Halle Berry que transforma um mero mercado de Casablanca num imenso campo de tiro onde sua movimentação junto da câmera é quase idêntica ao gameplay de um jogo de tiro em primeira pessoa. Para uma produção que cita Dante logo nos primeiros minutos, a concepção de "divina comédia" talvez seja levada ao pé da letra demais, confundindo a epopeia dramática com a imagem de um comediante que tem no físico sua maior ferramenta de humor.

Mas se o balé se deixar ser guiado pela comédia física e uma lógica de caos até onde for preciso, em meio a tantas viradas, traições e mortos Stahelski nunca deixa de estipular suas bases em uma narrativa que se revela no fim guiada pelo desmantelamento da ordem frente à figura destrutiva de Wick. E isso não fica claro apenas em falas como "Arte é dor, a vida é sofrimento" que a chefona russa de Anjelica Huston em determinado momento repete ao protagonista, mas nos próprios atos da trama, no eixo que vai da liberdade de poder ter maior poder de fogo à punição final que é ser restrito fisicamente de certos movimentos, oriundos de práticas como furar as mãos e amputar um dedo. Apesar dos mil e tantos mortos, o mundo de John Wick subexiste de verdade na liberdade dos corpos, mesmo que seja apenas a liberdade de matar quem quiser.

Nota: 7/10

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