segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Vecchiali, cinema e divagações

Ou também "acertando as contas com o passado".

Por Pedro Strazza.

2019 é um ano relativamente importante para O Nerd Contra-Ataca: no próximo dia 14 de dezembro, este blog completa nada menos que dez anos de vida.

Dez anos.

É uma data que certamente exige algum tipo de comemoração, embora por aqui o que aconteça no fundo vá passar mais por fins de demarcação. Os trabalhos devem continuar ativos por aqui no atual esquema das coisas - difuso, irregular, porém presente - mas até chegarmos ao fatídico aniversário devo (e quero) fazer maiores experimentações com este blog, algo que talvez tenha começado agora com esta escrita em primeira pessoa tão atípica e improvisada.

Antes de tratarmos do futuro, entretanto, é preciso acertar contas com o passado - ou, no caso, o meu passado. Faz pouco mais de um ano que, durante a 41° Mostra de Cinema de São Paulo, eu tive a oportunidade de entrevistar o Paul Vecchiali, grande diretor francês que na época estava sendo homenageado pelo evento com uma retrospectiva de sua carreira e o prêmio Leon Cakoff. Admito que para mim foi um momento de grande felicidade profissional, pois na época já era fã de seu cinema e estar frente a frente com um cineasta do qual se admira é sem dúvida daqueles momentos inenarráveis da vida.

O problema é que, bem, o material nunca foi publicado por erros meus. A matéria deveria ter saído no B9 durante a época do festival, mas como estava em meio às turbulências do fim de ano e do fim de ciclo universitário eu só consegui ter tempo de aprontar a transcrição da entrevista quase uma semana depois do fim da Mostra - e como não havia sinal (ou houve também, dado que ele permanece inédito) de que o filme que Vecchiali lançava no evento ia chegar ao circuito, acabei me vendo obrigado a arquivar a conversa.

Desde então este material me atormenta, pedindo para sair em algum lugar, em algum momento. Por isso, resolvi aproveitar o novo começo de ciclo do calendário para libertá-lo de minhas correntes de insegurança - até porque o material é bom demais para permanecer escondido.

Antes de ler a entrevista, querido leitor, acho válido atentar e reforçar algumas questões de contexto: esta entrevista foi feita poucos dias depois (senão no dia seguinte, com o perdão da ausência de memória) de Vecchiali ter feito a estreia global de seu então novo trabalho, Os Sete Desertores, durante a 41° Mostra de São Paulo em 2017 - muito antes de seu Trem das Vidas e a Viagem de Anjélique ter sido lançado na 42° edição do mesmo evento. Como o começo da conversa deixa claro, por conta da correria do festival acabei não conseguindo ver o filme na época (e nem até agora, diga-se de passagem), o que abriu margem para que eu pudesse focar em algumas questões específicas da carreira e do cinema do diretor.

Vale também avisar que, por conta de uma barreira de língua (Vecchiali só fala francês), toda a discussão foi intermediada com uma ajuda divina de uma tradutora, que fez o melhor para transmitir da forma mais fidedigna possível o raciocínio do entrevistado.

Posto tudo isso, gostaria de comentar que Vecchiali é uma pessoa extremamente fascinante de se conversar. Do alto de seus então 87 anos, ele mantém um apuro estético sobre sua pessoa que era muito evidente em seu echarpe de seda que usava ao mesmo tempo que preserva uma postura muito simpática com todos - algo que imagino, se deva em parte à maior atenção que recebe dos entusiastas cinéfilos de São Paulo, que na época compareceram em massa à sua retrospectiva.

O resto, bom, está na entrevista abaixo, que passa por todo tipo de tema e reflete muito da figura do entrevistado - além das aparentes inabilidades do entrevistador, se vale o exercício de auto-julgamento.

Feliz ano-novo a todos.

Queria começar dizendo que não consegui ver seu novo filme ['Os Sete Desertores'], infelizmente.

Ele é muito bom [risos], mas a cópia não é boa. É um arquivo comprimido que mandaram, é um som estéreo e não 5.1 e a imagem está mexida. Mas a cópia que chegou é em DCP, então as próximas projeções são boas.

Aproveitando o gancho, o filme está tendo sua première internacional na Mostra. Você decidiu lança-lo aqui por algum motivo especial ou foi por janela de oportunidade?

Não, na verdade ocorreu porque o filme tinha acabado de ser finalizado e o Rafael do Audiovisual do Consulado disse que ele tinha que ser colocado na Mostra. Esse filme também está em competição no festival de Gijón, na Espanha. Eles protestaram um pouco, eles queriam ter a estreia internacional lá, mas eles acabaram aceitando e disseram que ia ser uma ‘estreia europeia’. Mas a estreia internacional será aqui [risos]. O primeiro público que verá o meu filme são os brasileiros.

É uma honra, devo dizer.

Para mim também. [risos]

Você já sabia desde a infância que queria trabalhar com cinema, mas você chegou a atuar como crítico pela Cahiers du Cinema. O que levou você a trilhar este caminho?

Eu fiz tudo ao contrário. Minha mãe queria que eu estudasse, fizesse faculdade, e eu fiz a Escola de Engenheiros de Paris, também conhecida como a Politécnica de Paris, que é muito famosa. Depois eu fui para a Argélia pra fazer a guerra – o que explica o filme Os Sete Desertores, em que um dos personagens me representa. Fazendo um parênteses rápido, eu tenho uma relação de amizade com o Godard e sou anarquista, e o Godard me perguntou na época "Você é anarquista, porque você foi pra guerra na Argélia?". Eu respondi que eu não queria ser responsável pelos atos daquele que ia me substituir, e você vai escutar isso no filme se você for assistir.

Voltando da Argélia, eu vi o ‘Acossado’, de Godard, e o ‘Lola, A Flor Proibida’, de Jacques Demy, e eu pensei na época "Se eles podem fazer isso, eu também posso". Eu fiz um longa-metragem e um curta, depois eu me tornei primeiro-assistente dos diretores e aí sim eu entrei na crítica.

Mas o que te levou à entrar na crítica?

Eu assinava a Cahiers du Cinema e não estava de acordo com tudo que a revista dizia. Um dia eu enviei uma carta muito agressiva, e me responderam dizendo que ela não poderia ser publicada. Mas eles acharam que eu tinha razão, então me colocaram para escrever na Cahiers. Eles substituíram Eric Rohmer por Jacques Rivette como editor-chefe da revista, o Rivette leu minha carta e me pediu pra escrever sobre um filme de Sam Peckinpah, ‘Pistoleiros do Entardecer’. Depois disso eu escrevi algumas críticas pra eles, incluindo uma sobre Robert Bresson que ele me agradeceu muito. 

Um dia o Jacques Rivette não quis um artigo que escrevi e o texto apareceu na íntegra na revista assinado por outra pessoa, e foi aí que eu me despedi de lá. Daí eu fui escrever para outra revista chamada Imagem e Som, e lá eu tenho cerca de 200 críticas escritas. Isso tudo acontecia quando eu já era diretor.

Você se manteve bastante ocupado, devo dizer.

Eu posso trabalhar a vida inteira. O cinema é minha vida.

Um de seus trabalhos mais conhecidos é o 'Once More', que foi um dos primeiros filmes a lidar com o tema da AIDS, um assunto que não era muito fácil de se abordar naquele momento. Como você chegou ao tema?

Sim, sim, não era fácil. Eu não tenho medo da dificuldade, quando eu tenho vontade de fazer algo eu faço. Eu fazia uma série policial blockbuster muito violenta de sete episódios de uma hora, e na época eu escutei Charles Pasqua [Ministro do Interior entre 1986 e 1988, durante o governo de Jacques Chirac] dizer publicamente que a AIDS era um castigo divino para os homossexuais. Eu fiquei furioso. Teria agido da mesma forma se essa frase tivesse sido dita sobre os judeus ou os negros. Fiquei com tanta raiva que acabei escrevendo o roteiro do filme em dois dias, no fim de semana porque estava trabalhando, filmando a série. Depois disso não mudei uma palavra do roteiro.

Devo admitir, pra mim isso é algum tipo de recorde de velocidade de escrita [risos].

[risos] Houve vezes em que escrevi mais rápido. ‘Rose la Rose, fille publique’ foi escrito em uma manhã, eu sonhei com o filme durante a noite e quando acordei resolvi colocar no papel. Já ‘En Haut des Marches’ eu demorei cerca de quatro anos para terminar. Não é algo sistemático, tem coisas que vem mais rápido e outras não.

Desviando da minha pergunta por um momento, quando você está concebendo seus filmes você pensa primeiro numa narrativa, em um tema ou em uma história? Seus filmes são tão diferentes entre si, isso me deixa curioso.

Depende do filme. Eu não posso fazer duas vezes o mesmo filme. Uma vez uma distribuidora, depois de eu ter feito ‘Rose la Rose’, me propôs um contrato com muito dinheiro pra fazer mais um filme sobre uma prostituta, e eu neguei dizendo que já tinha feito um. Os meus dois últimos filmes, ‘Os Sete Desertores’ e um que ainda não foi lançado e que se chama ‘Trem das Vidas’, eu fiz ao mesmo tempo e são completamente diferentes, não tem nada a ver um com o outro.

Funciona para você fazer dois filmes diferentes ao mesmo tempo, sob esta perspectiva?

Essa foi uma decisão do produtor e não do realizador, mas eu que sou o produtor, então... [risos]. Ele me disse ‘Faça um filme todo passado em cenários exteriores, no caso Os Sete Desertores, e outro todo passado no interior, que é o Trem de Vida’. Eu sou louco de fazer tudo ao mesmo tempo, mas funciona: se chove enquanto filmo no exterior, vou pra dentro e filmo o interior. São os mesmos atores e os mesmos técnicos, mas acho que isso é óbvio [risos].

Voltando ao Once More, como foi a recepção do público na época?

O filme na época saiu primeiro na competição do Festival de Veneza e ele recebeu o prêmio da crítica e do público. Eu tenho uma história interessante sobre esse momento: Eu estava em um restaurante e acabei ficando posicionado de costas para Sergio Leone, que era o presidente do júri daquele ano e não me conhecia na época. Sem saber que eu estava atrás dele, ele disse [sobre o ‘Once More’] "Este filme é uma obra-prima, mas eu não posso permitir que ele ganhe o prêmio".

Ele disse mais alguma coisa depois disso?

Não. Eu desprezo ele, e felizmente não gosto dos filmes dele. Essa postura dele estava ligada ao tema da homossexualidade. O meu filme foi o primeiro da competição a passar no festival. No dia seguinte, os jornais italianos registravam catorze críticas, todas registrando cinco estrelas a ele, era o máximo, e depois eu fui obrigado a escutar isso.

Depois disso o filme estreou na França e foi mal recebido. Ele foi mal recebido pela população feminina e pelos homossexuais.

Você saberia o porquê disso?

Não, mas há dois anos o filme passou de novo no Festival de Cannes, numa sala cheia com mulheres, homossexuais e todo tipo de pessoa, e teve ao final da sessão vinte minutos de ovação. Eu acho que precisava de tempo para que as pessoas entendessem.

Entendo. Consigo imaginar a dificuldade que tenha sido tratar desse tema na época.

É, ainda mais porque foi o primeiro filme a tratar desse assunto. O que as pessoas mais criticavam na época era que eu estava querendo desdramatizar a situação. Tem uma frase da época que diz que havia milhões de vírus na sombra esperando que o da AIDS passasse de moda, e isso aconteceu. Eles achavam que isso era uma ofensa, mas na verdade foi exatamente o que aconteceu.

O filme foi aplaudido em Veneza, teve críticas excelentes, a Cahiers du Cinema elogiou bastante, mas o público teve uma reação bastante reticente, quase agressiva a ele. Agora, quando ele é exibido novamente, as sessões ficam cheias e as pessoas gostam do filme.

Sinal dos tempos. [risos]

[risos] Sim, sim. Mas agora eu não posso esperar 35 anos pelos filmes que eu faço agora [risos].

Aproveitando que você tocou no tema da sua produção recente, ela se diferencia bastante dos filmes anteriores. O que levou a isso?

O que mudou é que, à medida que fui ficando velho, eu quis prestar homenagem aos filmes e cineastas que me fizeram sonhar e que admirava. Há mais citações e referências em meus trabalhos agora, além das técnicas terem se ampliado, mas pra mim a minha narrativa fílmica é a mesma.

Hoje em dia há algum diretor contemporâneo cujo cinema te atraia?

O único cineasta que me interessa hoje é Laurent Achard. O que me desagrada no cinema desses últimos anos é que o texto, os diálogos desapareceram; eles são muito comuns. No cinema americano e no cinema francês há uma maneira de interpretar que se diz natural mas é totalmente artificial. Todos os atores e atrizes hoje atuam quase que mecanicamente, é horrível. Falta conteúdo, eles parecem marionetes.

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