Por Georgeos Constantim
Criado por Alan Moore e Dave Gibbons para Watchmen, Rorschach apresenta todas as características de um anti-herói. Perverso, não mede qualquer consequência em seus atos e não se importa com os meios utilizados para chegar a seus objetivos, sendo apenas guiado por um inabalável senso de justiça que leva-o muitas vezes a tomar decisões loucas (e trágicas, a exemplo de seu final na graphic novel). Um personagem intrigante, e como é comum na obra, com muito simbolismo, ele é passível de várias linhas de interpretação.
Apresentada de maneira gradativa com o decorrer dos capítulos, seu passado revela uma infância muito conturbada: Da mãe prostituta ao bullying contínuo, o pequeno Walter Kovacs precisou amadurecer rapidamente para sobreviver, gerando uma vida de contínua violência, destruindo aos poucos qualquer traço de humanidade em seu caráter. Rorschach torna-se um vigilante não por apreço ou preocupação às pessoas, mas sim por contestar a indiferença humana em relação à própria natureza violenta. Apesar de parecer um vilão, ele ainda é um herói por seu forte apego a justiça, não medindo esforços para que ela ocorra, e em vários momentos ultrapassa a linha entre o bem e mal.
No contexto da obra, Rorschach é o ultimo heroi dos Watchmen a continuar suas atividades após a aprovação da Lei Keene, que proíbe vigilantes mascarados nas ruas. Traço de sua personalidade, essa aversão às leis do Estado acaba gerando um paradoxo em sua própria função, pois agora ser um vigilante mascarado é considerado um crime pela própria sociedade que ele defende.
Segundo o filósofo Émile Durkheim, o bom cidadão é aquele cuja função se adeque aos propósitos de sua sociedade. Rorschach não se encaixa exatamente nesse perfil (sendo até julgado pelo povo como um maluco) pois ele não integra a sociedade, vivendo em becos e zonas mal faladas em busca de mal feitores, julgando-os à sua maneira e limpando o que chama de “sujeira da cidade”. De alguma maneira, porém, ele é o heroi que a cidade precisa.
Mesmo sendo aparentemente uma sociedade orgânica sobre o ponto de vista de Durkheim, a cidade onde se passa os eventos de Watchmen possue uma heterogeneidade predominante, e portanto sua consciência individual é maior que a coletiva. Aos poucos, a população inconscientemente cria um senso coletivo forte onde, por meio da coerção, impõem-se sobre elas mesmas seus próprios padrões, e logo onde o justiceiro mascarado seria obviamente oprimido e obrigado a fazer parte deste todo.
A justiça de Rorschach, ou mais exatamente a justiça pelas suas próprias mãos, entra portanto em conflito direto com a consciência coletiva, e quando Kovacs procura impor sua própria consciência individual ele é totalmente marginalizado e criminalizado, obrigando-o assim a viver às margens da sociedade que ele procura defender. Em um diálogo com o ex-parceiro Coruja, Rorschach não consegue entender como o amigo se sente normal em uma cidade onde estupros e assassinatos são parte do cotidiano. Nesse momento ele apresenta o mesmo raciocínio de Durkheim sobre essa imposição de costumes da sociedade sobre o individuo, pois falta de sensibilidade de toda a população em torno dos problemas mais visíveis é evidente.
O momento mais forte desse conflito entre essas duas consciências ocorre, porém, no desfecho da obra, quando descobre-se o plano macabro de Ozymandias para a destruição de Nova York. Através de um monstro gigantesco, o heroi tem como objetivo principal unir o mundo da Guerra Fria frente a uma ameaça comum e criar a paz mundial. Rorschach, sob a ótica de seu senso de justiça, é o único que acaba discordando da ideia, mas com todos os outros herois aceitando a destruição em prol do progresso ele acaba por finalmente ser esmagado pela opinião geral e, logo depois, morto.
A força da coerção sofrida pelo individuo em relação a sociedade é portanto, de maneira indireta, um órgão social por onde ele funciona para manter a ordem e a suposta “paz”. Rorschach é ao mesmo tempo uma peça fundamental e desnecessária desse sistema, mas por ser contra o funcionamento deste ele acaba por ser substituído pela própria. Em um desenvolvimento interessante e filosófico, Alan Moore retrata a nossa própria situação, mas, ao contrário de Walter Kovacs, nós ainda podemos mudar a nossa própria realidade e lutar por uma sociedade melhor sem a necessidade de mortes.
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