Fábula de tolerância sofre com o peso do passado.
Por Pedro Strazza.
De início, soa como inesperada a propensão de Zootopia - Essa Cidade é o Bicho em brincar com o histórico recente de produções da Walt Disney Animation Studios, marcada pela entrada do membro fundador da Pixar John Lasseter no comando. Piadas e easter eggs metalinguísticos nas produções animadas são coisa antiga da empresa, é verdade, mas conforme o longa se desenrola em estabelecer referências diretas e indiretas a antecessores (como Frozen e Operação Big Hero) e alguns de seus sucessores, fica claro que há alguma coisa fora do lugar na história sobre o mundo de animais antropomorfizados.
Esta sensação se repete com incômoda frequência no filme de Rich Moore e Byron Howard, que acima de tudo busca se enquadrar nos moldes das animações Disney e ao mesmo tempo acrescentar algo de novo a esta. São dois objetivos que notavelmente se confundem na narrativa desenvolvida no longa, que além disso ainda se dedica a conferir uma estrutura óbvia de fábula e uma experimentação combinativa de subgêneros em cima da trama protagonizada pela policial coelha Judy Hopps (Ginnifer Goodwin) e o malandro raposa Nick Wilde (Jason Bateman). Com tanto a fazer, a produção sem saber acaba um pouco enrolada em si mesma, presa à burocracia de sua própria mensagem.
Mas que mensagem é essa, afinal? A princípio, o roteiro de Jared Bush e Phil Johnston parece buscar na protagonista coelha uma espécie de eco com a História negra recente dos Estados Unidos, com Hopps sendo um "animal pequeno" do interior que consegue se tornar uma policial na cidade grande, algo nunca antes realizado por qualquer outro de seu grupo "métrico", e que agora precisa lutar para fazer valer sua posição entre os parceiros de profissão. Tão logo isso se estabelece, porém, o filme desiste e parte para algo mais universal, tanto na forma - a maneira como a questão é evidenciada na narrativa parece englobar também o gênero, já que a maioria dos atos preconceituosos só atinge mulheres - quanto na estrutura, quando posteriormente Zootopia vira o tabuleiro de cabeça para baixo e passa a trabalhar o tema sob a ótica de uma intolerância geral entre grupos.
É esquisito, mas considerando a necessidade da obra em querer se encaixar como mais uma animação Disney esse problema é natural. Pois ao mostrar disposição em tratar de um tema mais complexo (o racismo) e simultaneamente manter em foco o caráter universal e simples da fórmula fabulesca que caracteriza as produções históricas das quais ela agora sucede, Moore e Howard criam no longa um problema estrutural gritante, que o impede de funcionar como uma aventura ingênua ou um ensaio ambicioso. As maiores vítimas no processo são Hopps e Wilde, que não funcionam por estarem presos dentro desse fogo cruzado, vítimas de um ambição mal executada de seus diretores.
Por outro lado, quando não indeciso entre esses dois caminhos, Zootopia funciona ao fazer proveito do mundo que cria para situar sua fábula. O que encanta aqui, entretanto, não é a inventividade dos diversos cenários da cidade, mas sim sua utilidade: Moore e Howard são inteligentes em usar a diversidade dos ambientes para trabalhar vários subgêneros do policial, do buddy cop movie (os dois protagonistas na cidade grande, em rápidas perseguições policiais e investigações) até os filme de máfia, com a óbvia menção a O Poderoso Chefão e seus locais de despejo frios.
São essas diversões pontuais que possibilitam ao longa se soltar, ainda que de maneira bastante contida comparada aos esforços monumentais de desenvolver sua moral engessada. E de certa forma, o que no geral parece faltar em Zootopia - e o impede de decolar de falto - é justamente esse senso de diversão, de se mostrar mais aberto em aceitar a própria leveza que, no fim, caracteriza os maiores clássicos do estúdio.
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