Spin-off de série da Vertigo prova, nos próprios tropeços, que às vezes uma grande história necessita de manter seus mistérios.
Por Marina Ammar.
Antes de mergulhar na crítica de O Inescrito: Tommy Taylor e o Navio que Afundou Duas Vezes, é necessário primeiro uma curta compreensão do que é “O Inescrito”, série de Mike Carey e Peter Gross.
A história (lançada atualmente em encadernados pela Panini), segue Tom Taylor, filho do renomado escritor de fantasia Wilson Taylor, que estourou no mundo literário e diversas outras mídias escrevendo as aventuras de Tommy Taylor, seu menino-bruxo (de propósito ou não, uma brincadeira óbvia com o sucesso de Harry Potter). Tendo publicado a primeira aventura de Tommy, e declarado a público o nascimento de Tom no mesmo dia, Wilson amarrou o filho ao destino imbatível de para sempre ser visto como a personificação de Tommy Taylor, o que gera para ele não apenas fama fácil, como uma eterna crise de identidade e uma relação entroncada com o pai, aparentemente mais interessado nos seus produtos literários do que Tom. O Inescrito logo mostra, porém, que as ações de Wilson Taylor foram calculadas, que Tom é muito mais e muito menos do que sabe ser, e que as histórias, com o poder daqueles que as apreciam, são muito mais reais do que aparentam.
Portanto, em O Navio que Afundou Duas Vezes, Carey e Gross trazem à tona páginas do diário de Wilson Taylor, entrelaçadas com a trama do que seria o primeiro livro de Tommy Taylor, homônimo ao encadernado.
E é aí, na escolha da revelação de qual seriam os conteúdos do mundo fantástico de Wilson Taylor, que Carey e Gross erram. Pois apesar de apresentados com ilustrações tão sensíveis e fantásticas, e de possuírem o costumeiro trio de personagens cativantes, as aventuras de Tommy são tão previsíveis quanto simplórias, remetendo demais a outros livros existentes, e tentando, em vão, criar uma mitologia própria (onde a maior parte das tentativas bem-sucedidas se deve ao fato das ilustrações serem suficientemente criativas e engajantes). Sendo assim, o mundo que antes era apenas mencionado no quadrinho se torna tão palpável quanto decepcionante, pois nada justificaria o sucesso que foi feito dentro do universo de O Inescrito.
A questão, porém, gera uma reflexão: o que fez, então, com que certos livros reais de fantasia tenham adquirido o nível de sucesso que até hoje, retém? Assim, desafiando o leitor a compreender o sucesso desbaratado do romance de Wilson Taylor, a história corta para os trechos do diário do autor, e afinal, mais do intelecto e dos sentimentos de um dos personagens mais distantes da série é revelado. Ainda que sua aflição seja tangível e seu planejamento impecável, Wilson não ganha a decência humana necessária, e entre uma figura de medo e planejamento impenetrável, Taylor tropeça através das páginas para contar ao leitor sua visão daquilo que criou, que apesar de um pouco mais humana, pouco justifica muito de sua postura ao longo dos acontecimentos.
O que poderia, porém, ser apontado como erro terminal – do personagem que não parece evoluir, ou se tornar nada que não um catalizador de ocorridos – funciona aqui de maneira perfeita, pois O Inescrito segue em sua trajetória apresentando personagens, inclusive seus protagonistas, que lutam eternamente contra confusões, ego e a falta de capacidade de expressar aquilo que realmente pensam ou sentem, dando a cada um, tanto uma humanidade incômoda quando a característica romântica que gera a capacidade de trespassar seus defeitos por um bem maior.
E nisso, O Navio que Afundou Duas Vezes oferece a frieza de Wilson e sua alienação a tudo que não seu propósito em paralelo com sua criação, Tommy, apesar de repleto de compaixão e vontade de fazer o que é correto, segue caminhos também devido apenas a gana própria, realizando o bem simultaneamente a si mesmo e aqueles ao redor mostrando que existem diversos caminhos para um fim; em sua história, os outros aprendem com as atitudes de Tommy, e em sua realidade, Wilson afasta ou prejudica todos aqueles que ama e que oferecem recíproca.
A história cria, enfim, o comparativo mais desafiador: seria Wilson, desumanizado por sua missão, o personagem mais altruísta da história, ainda que incapaz de passar adiante seus valores, ou seria o imaginário Tommy, dono de coragem e compaixão, mas amor próprio indestrutível, o verdadeiro ser altruísta?
E o qual a diferença no âmago, afinal, quando são criador e criatura o mesmo ser, e realidade e história se misturam?
Carey e Gross entregam, portanto, mais uma história que instiga o leitor a deixar que o pensamento dê um passo adiante, e que a mente vá muito além das páginas dadas, e procure respostas naquilo que ainda não foi escrito.
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