quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Crítica: Belos Sonhos

Trauma da perda da figura materna é ponto de partida para Bellocchio trabalhar relações familiares fundamentais.

Por Pedro Strazza.

Diretor bastante reconhecido pela carga política e de forte crítica religiosa de suas obras, Marco Bellocchio não deixa de ser mais um cineasta italiano a trabalhar a unidade familiar em seus filmes, tema forte e um dos pilares fundamentais do cinema do país desde sempre. A união de seu cinema com a problematização destes valores tradicionais gera sempre resultados fascinantes de serem observados, desde os primeiros trabalhos - De Punhos Cerrados, A China Está Próxima - até mais recentes como o explosivo reconto da história de vida da amante de Benito Mussolini em Vencer. Belos Sonhos de certa forma ainda mantém esta mesclagem de assuntos familiares e políticos na pauta, mas não é nem por um instante o grande foco do diretor aqui.

Adaptação do romance autobiográfico de Massimo Gramellini e escrito por Bellocchio em parceria de Valia Santella e Edoardo Albinati, o filme centra-se na vida de Massimo (Nicolò Cabras quando criança, Dario Dal Pero quando adolescente, Valerio Mastandrea quando adulto), um jornalista esportivo que perdeu a mãe (Barbara Ronchi) de forma misteriosa na infância. Bastante ligado à figura materna, a brusca separação gera um trauma no garoto, que cresce sob sua ausência e o constante atrito com o pai (Guido Caprino). Depois de adulto e realizado na profissão, resta a Massimo confrontar os fatos de sua família e entender o que aconteceu naquela fatídica noite antes de prosseguir com sua vida.

A princípio, Belos Sonhos possui como elemento central de seu drama a mesma disrupção entre mãe e filho de a A Hora da Religião, filme que alimentava o conflito entre os dois membros pelo processo de canonização ao qual a figura materna do protagonista era envolvida após sua morte. A diferença entre as duas obras está no direcionamento: se o longa de 2002 usava desse conflito para tratar de instituições que cercavam seu personagem principal (como a família e, óbvio, a religião católica), Massimo se vê envolvido em questões muito mais íntimas, dramas interiorizados que a partir do falecimento de sua mãe o perturbam mesmo depois de adulto por meio de ataques de pânico e lembranças de Belgrano, criatura de um filme de horror italiano antigo que lhe serve de amigo imaginário.

Nesse sentido estabelecido pela história, Bellocchio a aproveita para conceber uma jornada em torno do crescimento e amadurecimento de seu protagonista com a tão sentida falta da mãe. Por meio de uma narrativa que vai e volta no tempo constantemente, mostrando relances do presente para depois retornar ao passado, o diretor insere uma confluência de elementos simbólicos que juntos permitem ao espectador adentrar e navegar pelo espírito atormentado de Massimo. Esporte, música, figuras de Napoleão, mesmo a imagem assustadora de Belgrano são todas derivações diretas - a dança soa como o maior trauma remanescente da vida do jornalista, com sua reconexão só se dando em um momento de libertação pelo relacionamento com a doutora Elise (Bérénice Bejo) - ou indiretas - Massimo só se apaixona pelo futebol porque o pai o levava aos jogos do Torino para, mesmo que só por um momento, se conectar com ele - da perda na infância.

A morte da mãe, então, torna-se no conduíte máximo da história do garoto, com o mistério por trás de sua ocorrência servindo de enigma à sua existência. O longa, ainda que cadenciado pela investigação dos fatos, aproveita deste ponto central da trama pela separação bruta que a caracteriza e pela observação de Massimo como sobrevivente do fim de sua relação familiar mais vital. A procura por algo que substitua a mãe e suas tentativas de perceber sozinho o que de fato aconteceu (a situação da criança no videogame durante o cerco a Sarajevo é um momento curioso desta linha) são a forma encontrada pelo diretor para materializar essa angústia de lidar com a verdadeira tragédia ao qual se encena, como se o cineasta diagnosticasse como fundamental esta relação maternal na sociedade italiana.

Uma relação que, como qualquer outra no cinema do país, é tempestuosa e bipolar. O próprio Massimo define depois na resposta dada a uma carta escrita para o jornal onde trabalha, mas a cena que mostra a conexão difícil de seu amigo de escola com a própria mãe (Emmanuelle Devos) já antecipa esta dificuldade latente do italiano (e, por consequência, do ser humano) de demonstrar amor pela figura materna mesmo que esta o trate com tanto carinho. Entender as maneiras misteriosas pela qual esta relação se dá é algo que no fundo também rege o cinema de Bellocchio, e em Belos Sonhos sua solução temporária ao desafio imposto talvez esteja melhor traduzido nas reações do protagonista quando na infância brinca de esconde-esconde com a mãe e não consegue a encontrar.

Nota: 8/10

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