Ator discute os desafios e a complexidade de se fazer um filme de oito horas.
Por Pedro Strazza.
Novo filme do filipino Lav Diaz, Canção para um Doloroso Mistério vem chamando a atenção do público desde que estreou e ganhou o prêmio Alfred Bauer no festival de Berlim desse ano, mas muito por causa de sua duração. São pouco mais de oito horas de duração, que acompanham primordialmente a jornada de personagens em busca do corpo de Andrés Bonifácio, um dos principais líderes da Revolução Filipina e cujo túmulo permanece perdido até hoje.
Em São Paulo para divulgar o filme, que teve duas sessões na 40° Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o ator Joel Saracho - que faz Karyo, no longa o único homem do grupo de busca comandado pela esposa de Bonifácio, Gregoria de Jesus (Hazel Orencio) - concedeu uma entrevista ao O Nerd Contra-Ataca, dando detalhes sobre como é trabalhar nas filmagens de um projeto tão grande e discutindo o conteúdo do filme, que combina elementos históricos, mitológicos e mesmo da literatura filipina. Confira a transcrição do bate-papo abaixo:
Joel Saracho |
Deixe me contar primeiro o processo do nosso diretor. Quando ele [Lav Diaz] me convidou para trabalhar no filme, nós apenas conversamos sobre o perfil do personagem que eu interpretaria: um senhor de idade que se junta a esse grupo de mulheres na busca por um corpo. “Você irá procurar e morrer em determinado momento do filme”, era isso que eu sabia. Nós nunca tivemos a chance de ler o roteiro inteiro e final, eu só li o primeiro rascunho há cerca de 17 anos, que era bastante diferente do que foi filmado. Então todo dia você recebia no set uma folha de papel com as cenas que iam ser filmadas e os diálogos que tinha que dizer. Então eu pensava: “como vou fazer isso?”. Há um monte de cenas que são só sobre os personagens andando na floresta, então eu tinha que perguntar pro diretor coisas como há quanto tempo estávamos andando para mudar meus trejeitos, a forma de andar e mesmo a tosse, que eu tinha de intensificar aos poucos. Diferente de outros diretores, que diriam como mexer sua cabeça, quando olhar e mover suas mãos, Lav te mostra o plano e te diz “Este é seu espaço, você pode atuar aqui, daqui pra ali. Considere esse seu quadro e ‘pinte’ sua própria cena”. É realmente um grande desafio para atores. Você tem que focar no que você fez, no que você fará, daonde a cena vem e para onde ela irá. É divertido, mas também difícil.
Quanto tempo durou as filmagens? Qual foi seu maior desafio durante essas filmagens?
Você talvez não acredite nisso, mas as filmagens duraram apenas 24 dias. Nós concentramos as filmagens primeiro na parte sul das Filipinas. Ficamos lá por 21 dias e depois fomos para outra parte do país para filmar por outros três dias as cenas que ficamos sentados nas casas. A parte mais difícil foi de achar os fundos para custear o filme, mas depois disso tudo fluiu muito bem. Não sei quanto isso dá em dólares, mas o filme custa algo em torno de 12 milhões de pesos, o que é muito pouco.
Esse não é seu primeiro filme que você trabalha com Lav Diaz, você fez anteriormente um filme de cinco horas e meia chamado Do Que Vem Antes. Como ele trabalhou com você o personagem? Houve uma grande diferença na relação que você teve com o diretor de um filme para outro?
Não foi muito diferente. Deixe-me contar primeiro como é a rotina do Lav no set: Ele acorda às 3 da manhã, toca seu violão e mais tarde escreve seus roteiros para o dia, baseado no que ele escreveu inicialmente. Todo a produção acorda, toma o café-da-manhã, o assistente do diretor passa aos atores o roteiro do dia. Aí você está no set, ele fala pra você “você vem dali e vai pra lá, esse é seu enquadramento, você se pinta nele”. O problema é que ele gosta de fazer planos longos, então você tem que memorizar bem suas falas. Se você comete um erro você tem que refazer tudo desde o início. Você discute seu personagem com ele, mas ele não deixa muito implícito como você deve “atacar” o personagem, ele assume que você saiba. Em Canção você tem esses dois atores que fazem Isagani e Simoun, os dois revolucionários filipinos, que são atores muito populares no país. No primeiro dia de filmagens com os dois, eu nunca me senti tão estúpido na minha vida. Sabe, eles não estão acostumados ao modo de trabalho de Lav. Em filmes comerciais, o diretor te fala exatamente como fazer a cena; no cinema de Lav ele te dá o quadro e você se insere nele, e isso é uma experiência muito diferente pro ator. Como é um plano longo, chega um ponto em que você não sabe mais o que fazer, então algo orgânico só surge se você internalizar e entender a cena e seu personagem.
O seu personagem passa grande parte do filme com um grupo de quatro mulheres. Considerando o processo que vivemos hoje no cinema mais mainstream, em que a figura e o papel da mulher nesses filmes está mudando drasticamente, você chegou a considerar essa relação com essas mulheres na hora de trabalhar seu papel?
Não exatamente. Acredito que o cerne do personagem era de servir a Revolução. Ele queria se juntar à revolução, mas teve sua participação negada porque estava doente, tinha tuberculose. Mas ele queria participar da luta, então quando ele descobre que Gregoria de Jesus está atrás do corpo de Bonifácio, seu marido, acredito que ele toma como missão ajudá-la nessa tarefa para auxiliar a revolução, pelo menos até seu encontro com o tikbalang, um ser mitológico das Filipinas que diz ter a poção que pode curá-lo de seu mal. Então em termos de objetivo do personagem foi bastante claro o que ele queria, ele queria ajudar Gregória de Jesus em sua procura, e isso é a parte mais importante até o momento que ele quer ir embora.
Canção Para um Doloroso Mistério trabalha com elementos de religião cristã, como padres, cruzes e até uma Virgem Maria, mas também com um lado mais místico, a exemplo das criaturas mágicas e as brumas da floresta. Qual sua opinião sobre essa relação no filme?
Eu fiz exatamente esta pergunta para Lav no set. Nós temos três camadas no filme: Temos o lado histórico, que trata da procura pelo corpo de Andrés Bonifácio e é baseada em fatos; os dois revolucionários, que são personagens literários do livro de Doutor José Rizal; e o mito, que são as criaturas mitológicas que acompanham o tikbalang, uma criatura mitológica da cultura filipina que te desvia do caminho. Eu perguntei pro Lav como essas camadas iam se encontrar, e ele respondeu que elas iriam se encontrar na floresta. Na época eu não entendi. Depois tivemos aquela cena do grande jantar celebrada pelo culto, que mostra eles festejando, e essa é a única parte do filme que todos os personagens se encontram. Foi depois dela, quando fui descansar, que me dei conta que “Ah sim, é uma floresta da mente, tudo pode acontecer!”.
Então basicamente são os pensamentos, a consciência de Lav, sua mente pensante que possibilita que esses elementos possam se encontrar, porque a totalidade disso é o que faz o filipino. Literatura, História e mitologia estão incutidos no povo. É a grande consciência, os personagens mitológicos são simbólicos da religião, do mito, e eles podem te levar para a redenção ou te desviar do caminho. Me fascina como ele conseguiu pensar tudo isso para fazer o filme. Tem uma cena que o grupo que está à procura do corpo e as criaturas andam em volta de uma árvore. É muito teatral e representa como eles se perdem na floresta. Essa cena depois é incrível, mas na hora de filmar me soou muito estúpida. Eu me perguntava “O que nós estamos fazendo? O que é isso?” e tudo que podia fazer nessa hora era confiar no diretor.
De fato essa combinação de elementos faz muito sentido dentro do filme.
É, ela é incrível. Inclusive antes do filme ser terminado nós tínhamos medo de que o público não fosse entender como esse três elementos funcionam juntos. Foi somente quando o filme ficou pronto que a equipe falou “É, isso realmente funciona!”.
O mais interessante disso é que, quando o filme foi lançado nas Filipinas, depois da passagem do filme por Berlim, a produção ficou preocupada que o público não iria curtir essa complexidade e aguentar o tamanho do filme, abandonando-o na terceira hora. Surpreendentemente, o público no fim de semana da estreia ficou até o fim da projeção e aplaudiu! Então o filme funciona, e isso que é o mais importante.
O filme é muito sobre arrependimento e perdão. Há o homem que acompanha Isagani (Simoun) e uma mulher no grupo que de formas distintas traem a revolução e acabam com ela... mas tudo isso ocorre em um espectro regional, da realidade histórica filipina. Como então passar o filme desse caráter local para um mais universal, como fazer o público estrangeiro sentir o impacto do longa?
Eu acredito que a beleza do filme é que o diretor não tenta impor uma lógica de que “é assim que o mundo funciona, é assim que as coisas são”. Ele só fala que isso que é o que está acontecendo com o povo filipino, isso é o que temos, isso é o que fazemos e é assim que nós atuamos nessa situação particular. Essa particularidade ressoa para outras realidades porque é muito específica e real, então você enxerga a realidade de seu país de origem ali, a própria luta de seu povo. Não sei se isso faz sentido, mas é assim que eu encaro o filme. É sua particularidade temporal e espacial que o torna tão universal. Quando o filme estreou em Manilla as reações não foram unânimes: Teve quem gostou e quem não gostou. Mas o fato delas terem permanecido por oito horas no cinema e na maneira como o filme virou alvo de discussão em outros ambientes... nesse sentido Lav e o filme foram muito bem sucedidos.
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