Apoiado em Woody Harrelson, adaptação torna trauma em experiência de formação.
Por Pedro Strazza.
Este corte passa quase despercebido em meio ao caos da situação, mas é importante para deixar claro ao espectador qual é o objetivo do diretor Destin Daniel Cretton com a história, a adaptação do livro de memórias homônimo da jornalista Jeannette Walls sobre a infância incomum e sua relação difícil com os pais no período. Embora o filme encene o drama central nos anos 90, com a protagonista agora adulta (Brie Larson) mostrando dificuldade em incluir Rex e Rose em sua vida, grande parte da estrutura deste drama está no passado e na formação familiar de Jeannette, que viveu quase como um nômade enquanto sua família viajava pelos Estados Unidos à procura de um lugar barato para ficar. O sonho de vida do pai, inclusive, é o de dar aos pequenos e à mulher um lar digno de castelo, construindo uma casa feita inteira de vidro que nutra as crianças de raios solares, permita à esposa pintar quando ela bem quiser e os deixe observar as estrelas ao anoitecer.
São planos, porém, que sem surpresa irão se desfalecer frente à dura realidade enfrentada pelo chefe de família, que não só mostra dificuldades para manter a mulher e os filhos em um mesmo lugar como também tem um problema sério com a bebida. Trocando o sustento familiar pela garrafa, imerso em sonhos que nunca serão realizados e brigando constantemente com Mary Rose (a exemplo da cena descrita acima), Rex não deixa de ocupar no longa a figura clássica do pai movido pelo trauma sobre si mesmo - em todos os abusos cometidos por sua mãe Erma (Robin Bartlett) e revelados ao longo da narrativa - ou para os filhos, e é justo aí que a temática de O Castelo de Vidro aparece.
Apesar de ensaiar a princípio um flerte com o conflito geracional, com pais e filhos em choque pelos diferentes cenários que viveram e foram criados, a produção está melhor alinhada com esta tragédia emocional a acometer a protagonista, não importando se ela se manifesta ou não fisicamente em sua vida. Anunciada com certa discrição no início, com o flashback que mostra Jeannette indo parar no hospital graças à omissão da mãe, o trauma reverbera no crescimento da jovem da mesma forma que a marca da queimadura oriunda deste acidente permanece em seu corpo, uma ferida profunda capaz de torná-la mais e mais distante dos pais a ponto de fazê-la renegar o passado enquanto tenta rumar para o futuro ao casar com o bancário David (Max Greenfield).
Deste conflito interno, movido pela incapacidade da personagem em lidar com essas antigas reminiscências familiares, O Castelo de Vidro com surpresa rege o drama em um caráter quase conciliador. Cretton evita guiar o roteiro escrito por ele e Andrew Lanham pelo caminho esperado da negação e superação, optando por abordar a história de vida de Walls sobre um ângulo de formação; mesmo que recuse com naturalidade a lógica do trauma ser benéfico àquelas crianças (poucas coisas são tão pejorativas ao olhar quanto a visão de um menor sendo abusado, e o cineasta inclui este momento afim de reivindicar esta posição), o diretor entende as marcas profundas deixadas pelos pais como parte da construção da identidade dos filhos e a serem assumidas por estes muito depois. Isso nos leva de volta ao corte do plano-sequência, talvez a síntese deste processo não reconhecido a ser descoberto e que conduz o longa independente da forma pela qual esta cicatriz se manifesta.
Estruturado a narrativa sob esta temática maior, Cretton não interfere muito na história e permite que o peso dos acontecimentos e atos pautem o filme, deixando aos atores conduzir os momentos mais difíceis. Esta preferência ao convencional tende a prejudicar a produção conforme ela depois torna o seu motor conciliador numa ferramenta para a redenção típica de cinebiografias - as bolas fora se acumulam quando Rex termina seu arco sendo perdoado de seus erros -, mas ela também se torna um veículo ideal para Harrelson entregar uma atuação poderosa como o patriarca responsável por grande parte dos danos. Se Larson, Watts e o restante do elenco carregam muito bem a dinâmica proposta pelo diretor, cabe ao ator e seu trabalho expansivo preencher as lacunas da aparente contradição desta análise, criando uma aura que ao mesmo tempo atrai e repele aqueles que ama e também o espectador.
Não deixa de ser um movimento curioso mas também esperado que a performance de Harrelson, então, se torne o fio condutor ideal para a materialização deste verdadeiro suplício que O Castelo de Vidro trabalha nas entrelinhas. Se o filme flerta demais com o melodrama mal intencionado, o ator é capaz de reorganizar o longa sob este olhar trágico sem tirar a centralidade das duas atrizes protagonistas, reforçando na tela a importância do ato de reconhecimento deste processo de formação doloroso, carregado na queimadura permanente, no duro aprendizado para nadar ou no trauma a nunca ser superado.
Estruturado a narrativa sob esta temática maior, Cretton não interfere muito na história e permite que o peso dos acontecimentos e atos pautem o filme, deixando aos atores conduzir os momentos mais difíceis. Esta preferência ao convencional tende a prejudicar a produção conforme ela depois torna o seu motor conciliador numa ferramenta para a redenção típica de cinebiografias - as bolas fora se acumulam quando Rex termina seu arco sendo perdoado de seus erros -, mas ela também se torna um veículo ideal para Harrelson entregar uma atuação poderosa como o patriarca responsável por grande parte dos danos. Se Larson, Watts e o restante do elenco carregam muito bem a dinâmica proposta pelo diretor, cabe ao ator e seu trabalho expansivo preencher as lacunas da aparente contradição desta análise, criando uma aura que ao mesmo tempo atrai e repele aqueles que ama e também o espectador.
Não deixa de ser um movimento curioso mas também esperado que a performance de Harrelson, então, se torne o fio condutor ideal para a materialização deste verdadeiro suplício que O Castelo de Vidro trabalha nas entrelinhas. Se o filme flerta demais com o melodrama mal intencionado, o ator é capaz de reorganizar o longa sob este olhar trágico sem tirar a centralidade das duas atrizes protagonistas, reforçando na tela a importância do ato de reconhecimento deste processo de formação doloroso, carregado na queimadura permanente, no duro aprendizado para nadar ou no trauma a nunca ser superado.
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