sexta-feira, 25 de maio de 2018

Crítica: A Câmera de Claire

De volta aos problemas da vida pessoal, Hong Sang-soo usa olhar distanciado para fazer filme pautado em reconciliações internas.

Por Pedro Strazza.

Embora a coincidência seja tratada pelos fãs e detratores pelas (justas) vias do humor, não deixa de ser uma conversão curiosa a nutrida pelo diretor Hong Sang-Soo em seus três trabalhos lançados no ano passado, respectivamente O Dia Depois, Na Praia à Noite Sozinha e este A Câmera de Claire. Claramente afetado pelo escândalo criado nos tabloides em 2016 por conta de seu caso extra-conjugal com a atriz Kim Min-hee (que não por acaso protagoniza os três projetos), o cineasta sul-coreano parece ter redirecionado a esfera de emoções complexas e provenientes deste momento de sua vida aos seus filmes, que de diferentes formas processam a questão pelas vias de histórias de conteúdos mais ou menos similares. Além de Min-Hee e do ano de produção, as três obras carregam uma mesma premissa de relacionamentos em crise proporcionado (e enxergado) por uma terceira via, a partir disso desenrolando cada uma à seu jeito as questões implícitas deste jogo semitragicômico sempre encenado pelo diretor.

Mas enquanto que O Dia Depois e especialmente o Na Praia à Noite Sozinha traziam para dentro da trama um tom ácido que refletia uma condição de auto-satirização do próprio autor, A Câmera de Claire caminha mais próximo de um processo curativo, não pela via da resolução do conflito mas sim pelo descarregamento de um sentimento de culpa levado pelo cineasta ao longo de quase todo este histórico recente. O longa nunca escapa de assumir um tom jocoso, mas seus desenrolares são muito menos pautados pelo enfrentamento do elefante na sala que pela reconciliação dos personagens consigo mesmos, uma medida por sua vez capaz de revelar um Hong determinado a aceitar sua própria condição perante o caso ou, pelo menos, de enxergar com um olhar mais inocente todos os acontecimentos que o cercaram.

Filmado durante a realização do festival de Cannes de 2016 - ou seja, um pouco antes da notícia do caso estourar nos jornais - o filme conta a história de Manhee (Kim Min-hee), uma assistente da equipe de um cineasta (presente no evento para debutar seu novo projeto) que de repente se vê demitida pela superior sem maiores explicações. Sem rumo após a inexplicável despedida, ela acaba conhecendo Claire (Isabelle Huppert), uma turista francesa na cidade que por meio de suas fotos amadoras acaba revelando sem querer a todos os lados as verdadeiras razões para tamanha confusão.

Por conta do diretor ter começado a trabalhar neste projeto um pouco antes do escândalo, o filme termina sendo menos focado no tema da traição e da perversidade por trás do ato em relação aos seus outros dois contemporâneos, um enfoque que diminui drasticamente qualquer pretensão à auto-chacota do autor. Ao mesmo tempo, porém, esta condição "divorciada" dos assuntos mais pesados permite a Hong que encontre um caminho curativo muito mais forte dentro da obra que se propõe, calcado no ambiente de valor intrínseco ao cinema e nos diversos retratos tirados por Claire ao longo da história. Como a personagem bem propõe na trama, a fotografia é usada pelo cineasta pelo viés do registro em seu tom mais místico, com cada foto transformando automaticamente o fotografado e despindo-o aos poucos da culpa e de quaisquer outros sentimentos ruins que carrega.

Isso não quer dizer, porém, que o diretor tenha abandonado por completo o humor característico de seu cinema em prol de um realismo "mágico" para proporcionar esta purgação de pecados. Seu estilo cômico, em outras instâncias tão voltado ao comentário ácido e subjetivo, assume aqui uma verve mais próxima das comédias de desconforto, ressaltado conforme a situação ao qual seus personagens se inserem vão se revelando cada vez mais ridículas e desprovida de qualquer propósito. Neste sentido, é curioso observar como Hong mais uma vez reinventa a abordagem sobre sua narrativa bem humorada e construída nos planos longos ditados pelo zoom, aproveitando a longa duração de suas cenas para reforçar este peso auto-imposto pelos personagens sob as vias da comédia - e isso chega a acontecer das formas mais descoladas da temática central da produção, a exemplo do primeiro encontro de Claire com o diretor que encontra a piada justo no excesso de cortesia e falta de conteúdo entre os dois.

Mas é na dualidade criada entre Claire e Manhee que Hong no fim encontra uma resolução final aos seus conflitos interiores, impulsionada por esta linha artística envolvendo toda a história. A princípio criado no próprio estranhamento das duas perante o mundo (e neste momento o filme parece acenar para a possibilidade um tanto enfadonha de fazer de Cannes um refúgio das agruras da realidade), o relacionamento entre as duas mulheres é conduzido de forma a proporcionar uma análise mais distanciada da situação passada pela coreana, que graças à amiga e suas fotos se vê livre de seu aprisionamento interior ao apenas enxergar o conflito pelo lado de fora e perceber a banalidade de tudo. Se aos olhos do diretor esta descoberta sirva (mesmo em caráter momentâneo) de conclusão simbólica  a um capítulo difícil de sua vida pessoal, para o espectador o que fica desta tomada de consciência é a alegoria final do que faz o cinema - e as artes - tão apaixonantes em sua efemeridade.

Nota: 8/10

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