Série de nostalgia vai além da volta ao passado.
Por Pedro Strazza.
Produto de uma nostalgia sobre a cultura estadunidense dos anos 80, Stranger Things tem na gênese de sua formação dois tipos de história bastante populares na década. De um lado, o terror de criatura, cuja manifestação misteriosa - seja a identidade de um assassino em série ou, nesse caso, a de um monstro - e seus sucessivos ataques em um curto espaço de tempo por si só já eram suficientes para aterrorizar as vítimas e, por consequência, o público; do outro, a aventura adolescente ou infantil, que tem no senso de bravura dessas idades o motor para suas tramas. A Matt e Ross Duffer, criadores, roteiristas e diretores da série, resta combinar e intercalar então os dois gêneros, apostando como principal gatilho na lembrança desse passado cada vez mais distante mas ainda tão fresco na memória coletiva.
Essa estratégia, mesmo limitadora em um sentido de ambição temática, se prova bastante eficaz na obra. Porque ao contrário de tantas outras tentativas de emulação da aura oitentista, que apostavam na repetição de um estilo exagerado, de elementos marcantes ou até mesmo da abundância de néones da época (e o filme que mais vem de imediato à cabeça nesse momento é o curta Kung Fury) como recurso primário ao disparo desse caloroso sentimento, o seriado dos irmãos Duffer mostra-se mais interessado em resgatar o que de fato impactava nesses produtos oitentistas.
Na trama, depois de uma partida de dez horas de RPG com os amigos Mike (Finn Wolfhard), Dustin (Gaten Matarazzo) e Lucas (Caleb McLaughlin), o menino Will Byers (Noah Schnapp) encontra uma assustadora criatura e desaparece na volta para casa. A partir do fato, a série acompanha o que acontece depois de seu sumiço, tanto nos efeitos quanto na investigação sobre o mistério: ao mesmo tempo em que seus amigos procuram achá-lo e lidam com a aparição inexplicável de uma garota com poderes chamada Eleven (Millie Bobby Brown), sua mãe Joyce (Winona Ryder), seu irmão Jonathan (Charlie Heaton), a irmã de Mike Nancy (Natalia Dyer) e o xerife da cidade Jim Hopper (David Harbour) confrontam cada um à sua maneira com estranhos acontecimentos à sua volta.
Esses personagens rapidamente se agrupam em três núcleos distintos e representativos de fases da vida (infância, adolescência e idade adulta), aos quais os irmãos Duffer sem muito esforço aproveitam para influir o valor nostálgico. De maneira discreta ou direta (os pôsteres nas paredes são rápidos na tarefa), Stranger Things recorre com frequência aos terrores e aventuras populares da época para se alinhar a estes logo em seguida, seja nos ataques do monstro ou nos estranhos fenômenos presenciados pelos personagens ou mesmo em atividades cotidianas. O seriado realiza esse movimento mirando na iconografia, com resultados aqui e ali bem sucedidos - os quais se destaca o uso dado por Joyce às luzes de Natal no terceiro capítulo.
O processo de resgate funciona, mas não deixa de causar alguns ruídos na estrutura. O formato de série desenvolvido pelos Duffer, estabelecido no uso de múltiplos pontos de vista para contar uma história, parece não conseguir comportar o desenrolar do mistério ao qual tanto se baseia, já que a cada episódio há a preocupação de ilustrar as ações tomadas pelo personagem de Matthew Modine e sua equipe para encobrir os traços do monstro que libertaram, suprimindo assim qualquer traço da paranoia de seus personagens. O uso desta mecânica, por outro lado, se traduz depois em uma didática um pouco excessiva, principalmente quando é para se explicar a origem de Eleven.
E se a série tivesse no mistério seu elemento mais forte, esses problemas seriam bastante fatais. A sorte é que a produção - talvez por causa da participação de Shawn Levy, cineasta conhecido por filmes feitos para a família (Gigantes de Aço, a série Uma Noite no Museu), na direção de dois episódios e na produção executiva - se esforça continuamente em trabalhar os dois gêneros ao qual se submete para a temática familiar, cuja moral de união é intrínseco à produção cultural estadunidense dos anos 80. Dessa maneira, conforme converge os núcleos de personagens a um ponto narrativo comum, o seriado também refaz a típica formação familiar em meio ao caos da televisão, quase recriando a disposição da Família Do-Ré-Mi a partir de estereótipos oitentistas atormentados (o xerife em luto, a mãe assombrada pela morte do filho, o jovem esquisito, a patricinha do colégio no desabrochar da adolescência, os meninos bullynados).
Tal qual Super 8, a retomada de tais valores dá uma liga interessante à história de Stranger Things, que também se iguala ao filme de J.J. Abrams no ótimo trabalho do elenco - Ryder está ótima em seus desesperos para reaver o filho, e todas as crianças sabem tirar o melhor de seus papéis. Os irmãos Duffer não acrescentam nem problematizam essa moral, deixando-a intocada para que desempenhe seu papel de encantamento, e isso talvez crie um desgaste a quem não tenha grande identificação com a década em pauta. O curioso, porém, é que para uma série de nostalgia tão dedicada a tal objetivo Stranger Things tenha uma ótima tendência a se desvencilhar desta para criar os próprios caminhos.
0 comentários :
Postar um comentário