Heroína conversa sobre abuso nas relações com interesse, mas sofre pela interiorização.
Por Pedro Strazza
Não é preciso muito tempo para perceber a propensão de Jessica Jones ao noir. Das ruas mal-iluminadas à maior presença dos metais na trilha sonora, a série estabelece essa ambientação no mesmo passo que introduz o perfil de sua protagonista, cuja primeira participação na obra consiste de arremessar um de seus clientes pelo vidro da porta de seu escritório/apartamento.
É nesse ritmo que os treze episódios da primeira temporada do seriado comandado por Melissa Rosenberg deixam claro ao espectador que a história a ser contada será direta e sem maiores delongas. Embora nunca a chegue a pedir de fato por tal urgência narrativa, a vida de detetive particular da superpoderosa do título interpretada por Krysten Ritter e sua trama de vingança contra o maléfico manipulador de mentes Kilgrave (David Tennant) se desenrola com velocidade, apostando no valor imediato das situações que apresenta. Acima de tudo, Jessica Jones trabalha na reviravolta, no uso quase constante do abalo inicial.
Só isso pode explicar o uso de ganchos ao final dos episódios e de viradas na trama, que se acumulam desordenadamente ao longo de quase 13 horas. Se no início essas ferramentas criam uma sensação de imprevisibilidade aos eventos mostrados, com o tempo elas acabam por tornar a série cansativa, como se o roteiro desenvolvido por Rosenberg e sua equipe de roteiristas dependesse destas para manter o espectador atento à história.
Essa necessidade de ser impactante de cinco em cinco minutos faz sérios danos à estrutura do seriado, mas não o suficiente para prejudicar a sua temática. Pois enquanto série que se dispõe a analisar as repercussões dos relacionamentos abusivos na sociedade Jessica Jones funciona muito bem: seja nos núcleos coadjuvantes ou na própria dinâmica exercida entre a protagonista, Kilgrave e eventualmente Luke Cage (Mike Colter), o seriado é eficaz em evidenciar o processo de isolamento social que tais relações criam, dando destaque claro às vítimas mais comuns (a mulher, sempre tida como inferior no cruel sistema patriarcal) sem contudo expor estas como únicas a receber tal tratamento, graças ao processo de divórcio da advogada Jeri Hogarth (Carrie-Anne Moss), aqui retratada de forma quase tão vilanesca quanto o principal antagonista. O ápice vem no clímax do 12° episódio, em que o diretor Bill Giehart eleva a presença do púrpura de Kilgrave na paleta de cores e demonstra no jogo visual a insegurança máxima provinda do abuso.
(Ainda sobre a personagem de Moss, é interessante e positivo perceber como sua personagem é a primeira homossexual nas séries da Netflix a não ter essa sua característica um ponto essencial de seu perfil. O fato dela ser lésbica, assim como nos papéis de Susie Abromeit e Robin Weigert, em nenhum momento é tratada com a mesma importância que sua falta de escrúpulos no trabalho, por exemplo.)
Dito isso, é sintomático na série tratar esse problema como algo particular dos indivíduos afetados e, principalmente, de Jessica. Clichê danoso do cinema, esse processo de interiorização comum às personagens femininas vai de encontro à definição de heroísmo da personagem, impedindo-a de se tornar um bastião contra tais estupros. É algo que também repercute nas conexões com universo Marvel que o seriado ora ou outra se vê obrigado a fazer (e que soam artificiais por essência) e na ação, filmada como obrigação e no fundo desnecessária à obra.
Por outro lado, Rosenberg mostra visível dificuldade em alinhar os núcleos coadjuvantes na narrativa quando estes não estão em consonância com a trama principal. É visível na série que personagens como Malcolm (Eka Darville), Trish (Rachael Taylor) e Hogarth se tornam um aborrecimento nos momentos em que não são necessários e precisam trabalhar sozinhos, mesmo seus arcos tendo alguma importância na cadeia dos eventos.
Ancorada também por uma ótima atuação de Tennant, capaz de absorver a personalidade atormentada e vilanesca de seu Kilgrave com toques de humor refinados, Jessica Jones acaba por sofrer do mal do imediatismo e da falta de atenção. Embora crie situações que no calor do momento sejam eficazes, no longo prazo elas não são capazes de dar uma unidade à série e sua temática. É como se Rosenberg e os roteiristas se contentassem com o impacto da cena, incapazes de amarrá-los em uma linha de desenvolvimento única. Resta o choque, puro e simples.
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