sábado, 23 de fevereiro de 2019

Crítica: A Mula

Despido de pose, Clint Eastwood revisita o arquétipo que definiu sua carreira em filme regado a frontalidades.

Por Pedro Strazza.

Em determinada altura de A Mula, pouco depois do primeiro encontro do protagonista Earl Stone (Clint Eastwood) com o agente do DEA Colin Bates (Bradley Cooper) em um restaurante de beira de estrada, o próprio Bates sai do estabelecimento buscando o senhor de idade para lhe devolver uma garrafa térmica que havia esquecido no local. Após o que é uma segunda breve conversa sobre amenidades, a câmera no minuto seguinte ao fim do encontro registra o alívio de Earl de saber que não foi pego pelo policial, mas menos por uma questão de relaxo e mais de temor; o longa enquadra pela primeira vez o nonagenário de maneira encolhida perante a picape gigantesca - agora quase uma criatura, com vida própria e ameaçadora - que se encontra no primeiro plano.

Por mais trivial que pareça e tardio que esteja dentro da narrativa, este momento é um ponto de virada importante aos rumos do filme por sacramentar uma mudança de perspectiva brutal na visão de seu protagonista, que começa a história fazendo uma opção sem volta pelo trabalho em detrimento da família. Item fundamental na realização do tal do sonho americano, o carro também é naturalmente um elemento dramático central nos caminhos do road movie no qual A Mula se estrutura: os veículos dirigidos por Earl ocupam espaço considerável em seu arco dramático, refletindo parte de suas transformações tanto no campo financeiro quanto no espiritual, o qual desemboca neste cenário onde a picape deixa de ser um membro do personagem para de algum jeito confrontá-lo e assustá-lo.

A grande questão é: por que um carro intimidaria tanto o protagonista?

A resposta é tola mas ao mesmo tempo exige uma certa complexidade contextual, uma que ilustra em parte o jogo narrativo curioso que nutre as ambições e frutos do longa que marca um novo retorno de Eastwood da aposentadoria como ator e mais uma vez o submete ao exercício da própria direção. A volta é curiosa dado o cenário da coisa: oficialmente longe da frente das câmeras desde Gran Torino, o filme não só é a primeira ocasião no qual o artista contorna a própria declaração para trabalhar de novo consigo mesmo (o ator já havia voltado atrás antes com o drama esportivo Curvas da Vida) mas também é o seu segundo projeto com o roteirista Nick Schenk, com o qual havia trabalhado justo na produção de 2008 sobre um idoso sendo forçado a reconhecer que seu tempo havia passado. E embora o Gran Torino do título não esteja presente, a premissa da última colaboração de Schenk com o cineasta aparece aqui novamente, agora baseada na história real de um senhor de oitenta anos pego traficando noventa quilos de cocaína.

O mais curioso de se observar em termos de contexto, porém, é como este novo trabalho de Eastwood se relaciona com seus antecessores no campo temático, mesmo mostrando distância clara em vários aspectos cruciais. Isso porque A Mula no fundo não deixa de servir de continuidade ao processo de desconstrução que o diretor vem exercendo aos próprios valores desde Sniper Americano, levantando contradições cada vez maiores - e desestabilizadoras - dentro do mito de formação dos supostos "heróis americanos" através de histórias reais e ocorridas no século XXI. Se Sniper, Sully e o recente 15h17: Trem Para Paris vieram para formar uma espécie de grande trilogia sobre a fragilidade e a maldição de tal arquétipo dentro deste novo século, faz sentido que agora Eastwood decida redirecionar este processo à própria imagem, ainda mais porque ele já abraça há tempos esta figura do "homem sem nome" que é síntese dos valores de um Estados Unidos passado.

Se esta ideia sugere de início uma auto-homenagem explícita e enaltecedora, o procedimento que guia as quase duas horas da produção revela o contrário. Do alto de seus quase 89 anos, o diretor-ator encarna um personagem claramente frágil, desde o físico "caído" e longe do auge da musculatura até a composição do papel, que denota a mente mais fraca e fadada à falha a qualquer instante, para dar voz a uma atuação que já nos minutos iniciais traça conexões íntimas com a figura de Eastwood; se o flashback para meados dos anos 2000 do prólogo serve para estabelecer a raiz de todos os conflitos morais de Earl no retrato simbólico do abandono de sua família em prol da carreira, ela também resgata uma imagem do passado do diretor, a de cineasta reconhecido e popularizado pela indústria.

O tempo sem dúvida passou para Earl e Eastwood, porém, e esta constatação circunda todos os movimentos da narrativa como uma maldição nunca verbalizada mas bastante presente na residência prestes a ser retomada pelo governo ou o conflito escancarado com a família - somente a neta (Taissa Farmiga), coitada, ainda nutre algum carinho pelo protagonista, talvez apenas pela imagem de avô que ele carregue de maneira inerente. O diretor, enquanto isso, nunca deixa de manter alimentado esta chama que alimenta o espelho para com seu papel, em movimentos que incluem atos drásticos como os de escalar a filha Alison Eastwood para o papel da filha do floricultor e Cooper (com o qual trabalhou em Sniper Americano e depois passou o comando do remake de Nasce Uma Estrela) na função de seu captor, o agente do DEA que depois nutre uma relação quase parental de aconselhamento.

Nestes momentos, o que impera na narrativa é acima de tudo o desmonte, em especial da relação que o protagonista nutre com o trabalho a ponto de levá-lo a traficar para a máfia, e é aí que o filme deslancha pra valer em seus propósitos. Todos os meandros da história se revelam aos poucos convertidos para uma questão de status; ela começa no desejo semi-automático de Earl por "mais" (mesmo quando em certo ponto ele já acumulou o suficiente para viver uma boa vida), mas também passa por outros como o chefe da operação (Andy Garcia), o Julio (Ignacio Serricchio) que acompanha o senhor de idade depois dele se tornar uma das principais "mulas" (e é o "segundo em comando" quem melhor representa os perigos desta ambição pela reputação tratadas pela produção, depois de Earl) ou mesmo os agentes federais cuja sede maior na trama é o "valor midiático" de uma grande apreensão. A Mula, enquanto isso, filma todos estes arcos como um grande ciclo fadado à destruição - o momento da morte do mafioso vivido por Garcia, por exemplo, não esconde a intenção na confusão visual dos tiros disparados "simultaneamente", ainda mais quando eles sucedem uma salva de palmas artificial.

É também esta sensação de frontalidade na representação, aliás, que comanda o longa de forma tão clara quanto seus movimentos. É uma artificialidade aparente que Eastwood carrega de seu Trem Para Paris e que aqui não só reforça a estruturação do projeto mas lhe amplifica sua potência pela banalidade, pois é ela quem despe o cineasta de qualquer postura maior e o mergulha sem hesitação na posição de "alvo". Isto fica claro nas interações com seus membros familiares mais próximos - em especial nos diálogos com a ex-esposa, vivida com muito cuidado por Dianne Wiest no equilíbrio dramático e cômico - mas ganha virulência quando Earl se encontra na estrada e, portanto, em contato com o mundo: suas interações com pessoas como a gangue de motoqueiras lésbicas, o casal negro e o policial de beira de estrada ajudam a acentuar o deslocamento antes não percebido pelo personagem da realidade à sua volta, além de ressaltar os limites e os absurdos de sua própria posição em relação a outros - algo evidente na cena no qual os acompanhantes da "mula" são parados com suspeita pelo oficial, que não repete o mesmo tratamento para o idoso.

O mais curioso deste processo narrativo, porém, é como A Mula admite o tom cômico em meio a tudo isso. Por mais trágicas e dolorosas que suas resoluções sejam (e o último plano não mente nesta condenação literal), a performance e a direção de Eastwood saem leves até onde é possível, num bom humor que talvez reflita a real aceitação de quem produza uma obra destas em um estágio de vida tão avançado. Se Clint entende que sua imagem já se encontra cristalizada na História a ponto de servir de tema de debate, ele aproveita sua "queda" não apenas para (de algum jeito) acertar as contas deixadas em sua trajetória como refletir se sua jornada no fim valeu a pena - uma noção que só poderia estar presente em sua última conversa com o personagem de Cooper, óbvio.

Nota: 9/10

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