sábado, 19 de janeiro de 2019

Livrai-nos do mal

Ou como Colette e A Esposa são em essência o mesmo filme.

Por Pedro Strazza.

Só pode ser uma coincidência irônica do destino que A Esposa e Colette tenham sido produzidos e lançados para a mesma temporada de premiações. Para quem assistiu os dois filmes - o que é uma probabilidade, dado que o primeiro foi lançado nos cinemas praticamente um mês depois do segundo - a sensação de déjà vu é clara mesmo que envolta em uma neblina de sentimentos conflitantes, já que ambas as obras em teoria compartilham apenas uma ou duas características imediatas.

Dado, é válido notar a princípio que ambas surgem de premissas diferentes em contextos diferentes. Enquanto A Esposa é baseado em um livro de ficção ambientado nos tempos atuais, Colette é uma cinebiografia da escritora francesa homônima que viveu entre o fim do século XIX e o começo do XX. Mesmo em suas formatações as duas obras não se assemelham: o primeiro, dirigido pelo sueco Björn Runge e estrelado pelos veteranos Glenn Close e Jonathan Pryce, conduz sua narrativa aproveitando o máximo das predisposições teatrais de seu elenco; o segundo, de autoria de Wash Westmoreland e encabeçado por Keira Knightley, segue o padrão convencional do gênero com alguns poucos twists para manter a história em rotação diferente de outras tantas biografias da telona, sem tirar o espectador do terreno conhecido no meio do caminho.

Ao mesmo tempo, porém, os dois filmes não deixam de possuir os pontos de contato superficiais citados acima, especialmente na questão da relação dos casais principais. Isso porque a grande reviravolta de A Esposa é o ponto de partida de Colette: o marido que toma a autoria (e por consequência, a fama) da esposa. No primeiro, isso é um segredo a ser desvendado pelo espectador, conforme vai ficando clara na condução da história que a relação entre os personagens de Close e Pryce são assombradas de alguma forma por erros do passado - que serão devidamente ilustrados em flashbacks nada discretos. Já o segundo usa isso como base para explorar o relacionamento "atípico" de Colette com o primeiro marido Henry Gauthier-Villars (Dominic West), cujo casamento emulou de certa forma os livros picantes escritos por ela e publicados no nome dele.

Mas se esta coincidência de roteiros de início é, bem, uma mera coincidência, a maneira como tanto Runge quanto Westmoreland lidam com o desenrolar deste fato acaba por converter ambos os projetos a um assustador mesmo ponto de encontro.

O mais bizarro, porém, é como os dois longas cometem os mesmos erros na hora de lidar com uma relação mais ou menos similar. Tanto A Esposa quanto (e em especial) Colette faltam em maleabilidade e, talvez, maldade na hora de lidar com relacionamentos que aos olhos de hoje são vistos - de forma correta, vale acrescentar - como tóxicos. Tanto Runge quanto Westmoreland adotam posturas conservadoras e de julgamento perante a relação de seus respectivos casais, jogando o marido na posição de grande vilão a ser derrubado e privilegiando o drama da esposa que se vê intimada a se submeter a tamanho vil esquema.

É uma narrativa correta e que certamente há de agradar o olhar do público de hoje - que, pelo menos espero, já aprendeu a identificar estas dinâmicas e adotar a devida postura crítica a elas. Ao mesmo tempo, esta decisão pelo julgamento contemporâneo do passado não deixa de carregar um olhar anacrônico de relações: aos olhos do público e do cineasta, é fácil olhar para eventos do passado dos personagens e julgá-los como certos ou errados de sua posição no presente, diagnosticando os momentos - seja em flashback, seja no presente narrativo mesmo - que levaram estes relacionamentos a uma posição tão maléfica.

O mais difícil (e, portanto, mais interessante) nestas horas seria abraçar esta aparente toxicidade declarada pelos olhos de hoje para entender seus mecanismos, algo que nem é tão inédito assim. Só no ano passado, por exemplo, tivemos na mesma época de Oscar o Trama Fantasma de Paul Thomas Anderson que tinha numa toxicidade de relações o seu mote de existência, mas que ao invés de dar o passo para trás e criar uma esfera de julgamento sobre cada um dos personagens fazia este mergulho; havia a constatação de que tanto o marido quanto a esposa tinham suas próprias motivações perturbadoras para viver aquele amor vil, o que só potencializava o drama em torno dos personagens.

É inevitável, então, que ambos os filmes terminem num mesmo poço, mergulhados em problemas parecidos. Enquanto o esposo há de pagar por seus pecados, de um jeito ou de outro sendo despido do amor de sua vida sem perceber a própria tragédia, a mulher liberta-se na confissão ao público - ou, pelo menos, na promessa de que a verdade há de ser revelada, como é o caso de A Esposa.

Não deixa de ser um bom espaço às atrizes envolvidas, que cada uma a seu jeito são obrigadas a carregar estas sinas das produções nas costas. No caso de Close, talvez tenha chamado a atenção dos votantes do Oscar o fato da atriz praticamente ter que fabricar o próprio drama no longa, já que toda a dramaturgia que move sua personagem mora na sua versão mais jovem - que claramente não consegue dar voz à tragédia, vide o caráter funcional que os relances do passado assumem na narrativa.

Em outros tempos (e caso Colette não fosse baseado em fatos, é bom lembrar), seria bem capaz de haver um mote religioso embutido nesta confissão, com direito a "livrai-nos do mal", bíblia e até padre no meio. Uma pena, dada a dedicação dos respectivos elencos protagonistas e dado que o pérfido sempre rende filmes no mínimo curiosos de serem vistos.

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