Em terror intimista, Darren Aronofsky se rende ao lado mais imediatista do cinema de provocação.
Por Pedro Strazza.
[Esta crítica aborda reviravoltas da trama. Se você ainda não assistiu o filme, leia por sua própria conta e risco]
Para bem ou para mal, Mãe! é o filme que debulha o cinema de Darren Aronofsky a seu essencial ao mesmo tempo que busca o impulsionar a novas alturas. Se por um lado o terror intimista protagonizado por Jennifer Lawrence funciona tematicamente no mesmo eixo dos últimos trabalhos do cineasta, ele também serve ao diretor como forma de testar os limites de seu próprio jogo, criando assimilações e paralelos que sem dúvida são os principais fatores para tornar a produção uma obra de provocações, como bem atesta as reações bastante divisivas do público neste primeiro momento do lançamento.
Se os atos de resumir ao que importa e explorar novos caminhos soam como definições opostas no papel, na tela este leve paradoxo está sem dúvida destinado a explodir em sentimentos contraditórios, o que já é um indício do tipo de experiência buscada pelo longa aqui. O roteiro escrito por Aronofsky a princípio flerta com o terror da vida privada, situando temas conhecidos de sua carreira em posição mais ou menos periféricas conforme ele centraliza tudo na perspectiva da personagem de Lawrence. Enquanto a câmera se basta em filmar o rosto da atriz e o seu literal ponto de vista (uma medida traduzida em planos longos e dispostos a criar tensão pelos cantos), constantes da carreira do cineasta como os dilemas do autor e a atração pelas imagens bíblicas permanecem restritas aos outros personagens, e o que persevera a princípio é esse horror quase cômico de intrusão da intimidade - e sob esta perspectiva quem mais se diverte é Michelle Pfeiffer, que se diverte enquanto trabalha este dueto emocional no papel de inquisidora de rotinas femininas.
Esta proposta, no entanto, não passa de um grande jogo de dispositivos de trama farsesco, pois aos poucos a produção devolve os grandes temas de Aronofsky ao seu lugar de direito com intensidade multiplicada. O que era trama se converte subitamente em quadro de simbolismos em constante ressignificação, e conforme Mãe! acelera a cadeia de eventos em "pulos temporais" e mergulha na total insanidade o filme se revela uma grande alegoria imagética dos tormentos de criação, obstinado como O Lutador, Cisne Negro e Noé em transbordar ao espectador as emoções conflitantes do autor.
Não deixa de ser um movimento oportuno que o filme mantenha-se colado à perspectiva da protagonista nesta transição, porém. Crente maior da própria metodologia de seu cinema, Aronofsky parece se entregar por completo aos delírios de grandeza neste novo trabalho, assumindo os paralelos de arte e cristianismo como motores maiores não só de seu modo de operação mas do próprio ato de existir. Se no longa há a noção constante de uma grande interpretação única e que diz respeito somente ao diretor - a metáfora da relação entre os personagens de Lawrence e Javier Bardem, bem como o aceno explicativo nos últimos minutos da projeção, são grandes indicativos desta tendência - persiste também a anulação desta, desde a negação da presença da voz ativa da protagonista ao clímax apoteótico que culmina na autodestruição, uma medida que mesmo atendendo ao direcionamento da alegoria serve para provar e encerrar sua existência única e exclusiva como montagem.
É este caos estrutural que no fundo teima em sabotar e tornar a experiência de Mãe! um tanto sofrível (apesar da missão aparente do filme ser a de instigar), mas há outros elementos em jogo que agravam o cenário da obra, e entre eles o principal é sem dúvida a disposição de Aronofsky em se postar como figura divina em meio a todas as alusões bíblicas que faz - algumas inclusive feitas à toa, um exercício banal de poder, a exemplo da passagem à la Caim e Abel protagonizada por Brian e Domhnall Gleeson. A proposta não só soa como o ápice de todas as provocações realizadas pelo diretor ao longo da produção, mas também termina por tornar ainda mais evidente as limitações do longa enquanto construto, restringindo a alegoria para si da mesma forma que a clareira é o único espaço possível para a protagonista existir.
A disposição de levar o longa ao caos completo não deixa de ser um esforço interessante (ainda mais porque ele de fato parece tirar prazer deste colapso), mas ela sozinha não é capaz de preencher este vazio de significados que a produção parece abraçar com gosto. Não deixa de ser uma pena: enquanto Aronofsky se satisfaz nos delírios com o conteúdo e as reações extremas e distintas da própria obra, seu cinema se entrega na mesma medida a provocações de cunho imediatista ao invés de seguir por novos caminhos, erguendo um culto de imagem que se prende à telona como único resquício de existência. E para um exercício de metalinguagem, Mãe! se mostra contente demais em permanecer interiorizado, dono das técnicas e metáforas que o ajudem a mantê-lo exclusivamente como mestre de seus domínios.
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