Continuação se perde na nostalgia, mas encontra no choque de gerações uma maneira de prosseguir.
Por Pedro Strazza.
Lançado em meio à onda de refilmagens e continuações de sucessos do passado que a indústria cinematográfica se encontra nos dias de hoje, T2 Trainspotting carrega um misto de sinais contraditórios que acabam por representar mais o estado da indústria que do mundo. Se o Trainspotting original trazia impresso em sua comédia de humor negro e seus protagonistas viciados em heroína todos os traços do espírito de rebeldia e desencanto sistemático da juventude do pós-punk de meados dos anos 90, a sequência mira um retorno analítico e mais auto-consciente a esta geração e seus tipos, mas involuntariamente termina por tratar dos ecos e dificuldades de relação que as atuais obras "nostálgicas" de Hollywood tem com o próprio passado.
Os indícios desta virada, porém, só irão se manifestar à partir da metade no longa, que de início parece com sucesso evitar as cacofonias de produções análogas e se assume de fato como uma continuação dos eventos mostrados no primeiro filme. Mais de 20 anos depois do dia que traiu seu grupo e fugiu com o dinheiro da venda de um carregamento de drogas, Renton (Ewan McGregor) retorna à Escócia para ver como anda o pai depois da morte da mãe e também para acertar as contas com os amigos, mas encontra um cenário difícil para todos. Enquanto o violento Begbie (Robert Carlyle) encontra-se preso, Sick Boy (Jonny Lee Miller) e Spud (Ewen Bremner) ainda estão ligados a vícios e vidas à deriva - o último manteve-se na heroína e na vida miserável todos estes anos, ao passo que o primeiro trocou a droga para a cocaína enquanto administra um pub na região portuária e segue tocando esquemas de chantagem.
Se a princípio a trama em nada parece se relacionar com a do original é porque o diretor Danny Boyle e o roteirista John Hodge estão menos interessados na permanência dos vícios de seus personagens - uma temática que permanece presente pelo discurso de Renton sobre substituir "um pelo outro", mas é apenas coadjuvante na narrativa - e mais no efeito que o peso das últimas duas décadas tiveram neles, jovens de uma geração que prezava pelo imediato e inconsequente que não conseguiu escapar da passagem do tempo. É uma medida capaz de tornar a proposta deste novo Trainspotting ousada em termos de análise, ainda mais porque ela aproveita as mudanças do cenário econômico no Reino Unido depois da crise e do Brexit. Se estes homens quando jovens podiam desfrutar da estabilidade econômica como um eterno meio de escape à rotina de vício, na realidade atual eles são confrontados constantemente pela responsabilidade e as dificuldades financeiras de quem vive uma época instável e sem salvaguardas.
É uma questão que na direção de Boyle logo se transforma numa divertida comédia de choques geracionais, alimentada pela noção de que seus protagonistas, antes tão insurgentes, se tornaram numa versão distorcida de velhos conservadores. Da hilária cena do canto contra os católicos no pub unionista aos olhares perdidos de Renton e Sick Boy em uma balada, passando por todos os conflitos familiares de Begbie - que tenta sem sucesso ensinar o "ofício" do crime ao filho, esse "ingrato" que quer fazer a vida pela profissão da hotelaria -, o filme sabe tirar do verdadeiro abismo entre as mentalidades do passado e do presente um humor ácido e observador de costumes, invertendo relações para revelar as raízes do clima dominante de comportamentos extremos de hoje.
T2 poderia muito bem se manter auto-suficiente (e ser melhor que grande parte dos outros filmes sobre a crise europeia, como o vencedor da Palma de Ouro Eu, Daniel Blake) caso se centrasse nisso, mas a partir do momento que passa a abordar o passado suas ambições ficam todas desarranjadas. É um problema que parte da própria indecisão da produção sobre qual postura adotar para com o legado: se de início ela se afirma como uma sequência disposta a tomar os próprios caminhos, prosseguindo a história dos personagens e seus novos trambiques, depois de um tempo ele volta a adotar uma postura autorreferente, se bastando a reposicionar peças e emitir cacoetes nostálgicos do original. A derrapada só fica mais evidente na direção fora de tom de Boyle, cujo exageros estilísticos de planos inclinados, projeções na tela e rabiscos luminosos não são capazes de conciliar as tramas e se perdem na tentativa de emular um tom rebelde e explosivo que em nenhum momento se adequa à realidade vivida pelos personagens.
Se esta mudança de eixo gera uma quebra de narrativa das mais significativas - a partir do momento em que se percebe que tudo ali serve à nostalgia a situação de riscos proposta pela produção perde todo o sentido - ela também termina por servir como um reflexo meio maldito e necessário da síndrome do retorno ao passado ao qual muitas produções, artistas e estúdios se sujeitam nos dias de hoje. É uma condição que o próprio Traisnpotting parece perceber e usar a seu favor, conforme ele aos poucos parece encontrar em Spud, personagem que no longa passa por um arco de recuperação, mas também de percepção da necessidade de se recontar as histórias como forma de seguir em frente, o maior protagonismo.
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