Remake em live-action da animação falta em encantamento aquilo que tem de renovação.
Por Pedro Strazza.
Desde que descobriu com Alice no País das Maravilhas a verdadeira mina de ouro escondida nas adaptações live-action de suas próprias animações, a Disney vem testando e aprimorando o formato destas produções em busca da fórmula que ao mesmo tempo satisfaça as gerações de fãs dos trabalhos originais e evite cair em moralismos e lições de valor ultrapassados. É um desafio que só se complica quando se aborda as tradicionais histórias de princesa, contos de fadas clássicos cujas estruturas são mais do que inadequadas às discussões de gênero dos tempos de hoje.
Assim, se no ano passado o estúdio parece ter conseguido encontrar com Mogli e principalmente Meu Amigo, o Dragão um bom ângulo para guiar seus outros remakes em live-action, nas fábulas de personagens como Cinderela e Bela Adormecida ele ainda se encontra em uma cruzada para resolver este equilíbrio delicado entre a nostalgia do passado e a desconstrução do presente. É quase como um enigma da princesa, cujo ponto de resolução está na conciliação de partes a princípio nada relacionáveis entre si.
Neste sentido, a nova versão de A Bela e a Fera chega tanto para aliviar quanto para aprofundar os desafios do estúdio. Alivia porque o remake não deixa de ser uma aposta garantida: além de ser um dos maiores sucessos comerciais da Disney nos anos 90, a animação de 1991 dirigida por Gary Trousdale e Kirk Wise apostava na época na desconstrução de valores tradicionais dos contos de fadas sem destituí-los de seu encanto. São fatores que por si só facilitam o trabalho de adaptação para o live-action, que ao contrário de filmes como Malévola e Cinderela já possui uma linha de raciocínio bem clara a ser seguida.
Não é por acaso, então, que o longa dirigido por Bill Condon seja bastante fiel à história contada há mais de 20 anos, tanto em termos narrativos como também visuais. O roteiro escrito por Stephen Chbosky e Evan Spiliotopoulos refaz os caminhos do amor entre Belle (Emma Watson) e o príncipe amaldiçoado como Fera (Dan Stevens) com leves alterações e adições pontuais para elucidar alguns pontos da trama e facilitar a transição do relacionamento ao romance (as visitas ao passado do casal e de seus pais, por exemplo, ajudam a explicar certos comportamentos do casal, principalmente do segundo), ao passo que Condon aproveita da desmistificação do ideal masculino intrínseco à história para torná-lo em uma questão de igualdade social. Isto acontece tanto pelo lado da hierarquia econômica (o reencontro final dos criados com a vila carrega um pouco desta lição de união) quanto pelo de gêneros, raças e credos, algo ressaltado pelo arco da sexualidade de LeFou (Josh Gad) mas também nos casais interraciais formados pela cantora (Audra McDonald) e o pianista (Stanley Tucci) do castelo e Lumière (Ewan McGregor) e Plumette (Gugu Mbatha-Raw) - a revelação desta última depois de aparecer o tempo inteiro como um espanador branco, inclusive, pode vir a ser uma agradável grande surpresa para quem desconhece a atriz ou sua escalação para o papel.
São boas intenções que o filme carrega porém apenas nas pontas, pois ainda que se proponha como exuberante e luxuoso este A Bela e a Fera prova-se uma tentativa tímida demais de se trabalhar o conto infantil. Culpa talvez da necessidade exagerada do estúdio em revisitar suas produções antigas pela nostalgia, mas também pela inabilidade do diretor: Se Jon Favreau em Mogli demonstrava ter um controle bastante presente sobre o visual da floresta e seus personagens, Condon aqui não consegue encontrar na narrativa um tom capaz de equilibrar a emulação dos cenários e vestimentas da animação com o design mais próximo do gótico que seu longa carrega. Aliado ao visual meio oscilante dos personagens criados em CGI - se a Fera tem uma figura muito pobre e feia digitalmente, os objetos variam entre as soluções criativas (o Cogsworth de Ian McKellen, o armário) e mal resolvidas (o aspecto humano de Lumière, a face do piano) - e os números musicais pouco deslumbrantes - nem mesmo "Be our guest" escapa aos planos fechados -, esta dificuldade criativa de produção ajuda a promover na obra um sentimento de esquizofrenia que no fim barra seu avanço narrativo.
É no casal protagonista, entretanto, onde o filme de fato parece se bloquear em si mesmo. Enquanto Dan Stevens acaba preso dentro de uma Fera má concebida e que não consegue emitir nenhuma emoção, Watson fica refém do próprio papel ao não conseguir resolver a virada na sua relação com a criatura dentro dos ideais de empoderamento ao qual se propõe. Se Belle a princípio surge como uma mulher forte, independente e superior aos rituais ultrapassados do vilarejo onde mora, construindo aparatos e lutando contra preconceitos dos outros habitantes, esta noção se esvai por completo depois de feita a transição no romance com o príncipe no castelo, com Watson falhando em reobter este perfil após sua transformação para "dama" e o longa se restringindo no terceiro ato a realizar apenas a comparação dos perfis de cavalheirismo realizados pela Fera e Gaston (Luke Evans).
São problemas que terminam por tornar este novo A Bela e a Fera em uma espécie de oposto ao Cinderela de Kenneth Branagh, já que este optava por privilegiar no espetáculo aquilo que lhe faltava em atualização depois de também se valer da nostalgia como eixo da trama. É uma comparação que rende ramificações inusitadas dentro da proposta de reformulação ao qual ambas as produções estão no fundo submetidas: na ausência de uma opção capaz de conciliar as duas partes, mais vale a reafirmação com o encantamento de sua história ou a atualização necessária afim de evitar o anacronismo inevitável da moral nas adaptações modernas dos contos de fadas? Para Condon, esta dúvida é o que no fim põe em cheque todos os valores de sua abordagem.
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