Nova versão do herói compensa nas dinâmicas colegiais as falhas de seu processo de reformulação.
Por Pedro Strazza.
[Esta crítica aborda reviravoltas da trama. Se você ainda não assistiu o filme, leia por sua própria conta e risco]
Por se tratar da terceira encarnação de um personagem feita em quinze anos, Homem-Aranha - De Volta ao Lar é um filme que sem surpresas precisa lidar desde o princípio com processos de ressignificação da mitologia de seu herói. Essa era uma dificuldade já bastante sentida nos dois O Espetacular Homem-Aranha, mas que aqui se acentua em caráter quase exponencial: afinal, é difícil trabalhar um protagonista e sua jornada se sua história e valores já foram incessantemente martelados duas vezes no imaginário do público há muito pouco tempo.
Talvez seja por isso que o filme dirigido por Jon Watts, no esforço de criar novos caminhos ao herói, opte então por evitar muitos dos elementos que configuram a persona trágica do personagem - bastante exploradas nos outros longas - e prefira uma abordagem descompromissada e mais interessada no espaço ocupado por sua história. Como em Homem-Formiga e nas séries de vigilante da Netflix, De Volta ao Lar aproveita muito do seu status de capítulo periférico à grande trama das produções do Marvel Studios para conceber sua estrutura e dinâmicas, se estabelecendo como uma obra que busca contemplar o olhar daqueles que servem de meros espectadores às grandes batalhas entre deuses, alienígenas e figuras de inspiração.
Ao escalador de paredes, essa mudança de ponto de vista não só reflete numa transição de espaço - sai Manhattan e sua aspiração grandiosa de toques operísticos, entra o Queens e sua rotina de quase cidade pequena - como também de curva de aprendizado. Se os Aranhas de Garfield e Tobey Maguire tinham na responsabilidade de seus atos uma eterna maldição a ser compreendida, esta nova versão vivida por Tom Holland encontra na vida dupla de super-herói o dilema de estar ancorado em dois mundos distintos, um de constantes preocupações maiores e outro de vida simples e cujas maiores ambições são de vencer uma competição de conhecimentos acadêmicos em Washington e saber quem levar para o baile do colégio. É uma temática presente inclusive no grande vilão da história, o Abutre (Michael Keaton, ótimo), cujo perfil de ladrão de sobras dos conflitos dos Vingadores e discurso de "Nós não somos como eles" traz à tona esta divisão espacial sob o viés do revanchismo - o que não deixa de ser um grande clichê na lógica de formação do antagonista, mas isso ajuda a dar distinção e peso suficientes ao personagem e seu grupo de caçadores de sucata, que inclui duas versões do Shocker e uma do Consertador (Michael Chernus).
Esta noção de "eles" e "nós" fica um pouco subaproveitada na direção de Watts, que não se mostra muito habilidoso na hora de conciliar as duas esferas e redirecionar esse choque ao arco de Peter Parker da mesma maneira em que mostra dificuldade sincera para trabalhar a ação - cuja execução burocrática e confusa frustra o potencial de seus cenários, especialmente o do clímax final que envolve camuflagem em grandes altitudes -, mas ele consegue compensar parte destes problemas na hora de enquadrar a rotina escolar do roteiro. Com claras ambições ao cinema de John Hughes (referência repetida quase à exaustão na narrativa) e sabendo tirar o melhor de seu elenco (uma qualidade à qual Watts já havia demonstrado no fraco A Viatura), De Volta ao Lar sabe como expandir as dinâmicas colegiais ao resto da trama, personificando estereótipos feitos do ponto de vista pré-adolescente a figuras da estrutura típica dos filmes de super-herói, como a imagem paterna em cima de Tony Stark (Robert Downey Jr.) ou do pai da namorada ao vilão - uma sacada de roteiro que mesmo acontecendo muito tarde na trama é ótima para reorganizar e dar novo sentido ao enfrentamento do herói com o inimigo.
São dessas boas sacadas e de um humor bem pontuado (junto da própria adequação ao caráter local, colegial e "pé no chão") que o longa no fim se sustenta, algo mais evidente não apenas fora dessa lógica - como em Homem-Formiga, a presença dos Vingadores pode soar um pouco à toa - mas também nos momentos em que se sente a ausência dos elementos responsáveis por fazer a figura do personagem nas outras encarnações. Destituído aqui da tragédia - Tio Ben nem chega a ser citado - e encarado como um herói em formação que precisa se conformar com a demora de sua jornada, a dualidade Peter Parker/Homem-Aranha acaba esvaziada de um sentido maior ao ser presa no que pode ser considerado um experimento muito controlado de reformulação do personagem, feito no sentido de conferir novos significados ao herói e diversos pontos de sua mitologia, desde a questão da identidade secreta até sua relação com determinados coadjuvantes (incluindo aí a surpreendente inversão de relação realizada com a MJ de Zendaya).
Não que este processo seja de algum modo um fracasso - ele está bem à frente, por exemplo, de todos os equívocos realizados na fase vivida por Garfield - mas De Volta ao Lar deixa claro que não possui o necessário para obter os mesmos resultados dos três capítulos dirigidos por Sam Raimi, que compreensivelmente servem à produção como referência e obra a se tomar distância. Se Watts não ambiciona a mesma grande compreensão do significado de ser um herói, ele busca repetir em cenas desta nova versão (como a do barco ou dos escombros) a força dos pequenos atos de valor oriundos do heroísmo, uma consequência imediata daquela lógica que sozinha não providencia a mesma catarse ao filme.
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