Jia Zhangke estabelece pesos iguais a universal e local em filme sobre tradição e a dificuldade de se comunicar.
Por Pedro Strazza.
Filmes de panorama tem no âmago de sua concepção uma inclinação de se dedicar mais às alegorias que fabulam em detrimento dos personagens e situações elaborados para tal fim. Essa decisão não é ruim, dado a própria complexidade e grandiloquência de temas aos quais estas obras se sujeitam a explorar, mas pode surgir depois como uma espécie de efeito limitador da aproximação que esses longas podem chegar a ter com o espectador, restringindo seu alcance a um âmbito muito mais local que seus realizadores gostariam de início. Em As Montanhas se Separam, o diretor Jia Zhangke encontra uma solução interessante para este aparente paradoxo.
A produção se divide em três momentos históricos distintos, que ocupam identificações simbólicas de tempos passado, presente e futuro. No primeiro, situado na Fenyang da virada do século XX para o XXI, o público é apresentado a Shen Tao (Tao Zhao), uma jovem trabalhadora que tem seu coração disputado por Zhang Jinsheng (Yi Zhang), um rico proprietário de um posto de gasolina, e Liangzi (Jing Dong Liang), típico minerador pobre da região; depois, a trama pula quinze anos no futuro para acompanhar as consequências mais imediatas da decisão tomada por Shen, que incluem ter de lidar com a morte recente de um membro de sua família e se aproximar de seu filho pequeno, Zhang Daole (Zishan Rong); por fim, o longa se situa no futuro de 2025, onde um agora adolescente Zhang, renomeado Dollar (Zijian Dong) e cidadão australiano, encontra-se indeciso sobre que caminho seguir com sua vida e é atormentado por um passado do qual não consegue se recordar.
Ainda que se torne visível somente no terceiro ato, esse tormento passado por Dollar não é exclusivo do personagem, mas também serve ao filme como uma emoção recorrente. Da evolução progressiva da trama em seus três momentos, Zhangke faz um retrato da entrada da China no novo século guiado por uma amargura subentendida, estabelecida no choque da tradição cultural do país com a globalização à qual este abraçou no campo econômico e que depois possibilitou o crescimento de sua importância no cenário mundial. Tal choque, porém, implica uma tragédia implícita, que promove a derrocada das tradições que caracterizam a unidade nacional e limam valores dos quais a sociedade se baseou para a sua própria formação cultural, em ordem de substituir estas por outras mais universais - uma questão problemática comum deste processo político-econômico do qual vive o mundo contemporâneo.
Esse drama local, tema central do lado panorama de As Montanhas se Separam, ocupa esta sua posição de direito nos dois primeiros terços do roteiro, que deixa evidente seus esforços de maneiras distintas em cada realidade apresentada. Se nas cenas de 1999 Zhangke recorre com frequência a materiais filmados por ele mesmo na época, capazes de levar o espectador àquele tempo e também criar imagens de impacto (a cena do caminhão com carga de carvão atolado ou da multidão em dia de ano-novo, por exemplo), no presente ele prefere ressaltar a mudança naquela cultura pela tecnologia e o contraste com o cenário, mostrando várias vezes seus personagens portando celulares e tablets de forma ostensiva e ao mesmo tempo retomando lugares envelhecidos e carcomidos pelo tempo. O cineasta também abre espaço para elementos presentes nos três momentos, e a que mais chama a atenção nesse caso são duas músicas ("Take Care", cantada em cantonês pela artista pop chinesa Sally Yeh, e "Go West", hit dos Pet Shop Boys) cuja oposição simbólica serve de tema musical ao filme.
Mas por mais fundamental que seja essa grande análise sociocultural, é na parte fantástica que o longa de Zhangke de fato se desprende de suas amarras e ganha uma intensidade quase sobrenatural. Isso porque a mudança de eixo (seja de protagonismo, com Dollar assumindo o posto da mãe Tao, ou da transição de realismo para uma imaginação do futuro) possibilita ao diretor que consiga explorar dramas humanos em tom mais igualitário com o quadro geral, sem que este de fato sofra perdas significativas de conteúdo.
Assim, o mundo de amanhã da produção, dominado pela globalização e marcado pelo abandono de tradições fundamentais (até mesmo a língua chinesa parece minguante!), cria um espaço cinematográfico peculiar a esta. Ao mesmo tempo que o filme se transporta de um ambiente local para um mais global, ele também particulariza e torna mais íntimo as situações vividas por seus personagens, cujos dramas por sua vez parecem intensificações da atualidade.
Mas que dramas seriam esses, capazes de envolver tanto o dilema cultural proposto por Zhangke no primeiro ato (um grande prólogo, bem pontuado pelo surgimento do título ao seu fim) e o mundo de hoje? A dificuldade de se comunicar soa como um capaz de arregimentar o todo, dado a própria tendência do diretor em se dedicar a apresentar momentos que evidenciem a artificialização dos meios comunicativos - o conflito entre Jinsheng e Liangzi no passado, as conversas constantes de Daole com a madrasta (que nunca é apresentada) pelo Skype e o uso massivo de celulares no presente - e aprofundem o tema em momentos críticos, como na luta de Dollar para conversar em inglês com o pai (cuja identidade não será revelada aqui para preservar a trama) reticente em deixar de falar o chinês ou, depois, na natureza do relacionamento do protagonista com sua professora Mia (Sylvia Chang).
Dessa maneira, Jia Zhangke cria uma concomitância fascinante entre uma problematização de uma tema de ambientação local (a evaporação e a tentativa da preservação da tradição move a trama em todos os instantes) com a abordagem de questões universais e de fácil identificação. Isso tudo dentro do campo de uma imagem que, apesar de atualizada a cada pulo temporal, ainda é capaz de causar uma impressão e fazer o espectador questionar a própria natureza do objeto em real análise aqui: a tradição. Partindo de passado e presente para atingir o futuro, As Montanhas se Separam é um filme dotado de uma transcendentalidade temporal extraordinária e, felizmente, bastante única.
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