O que é loucura?
Por Marina Ammar.
Apesar do início do personagem Licurgo Orival Umbelino Cafiaspirino de Oliveira (mais conhecido como Louco) ter sido marcado nos quadrinhos por uma loucura que era realmente um estado de vesânia, com o tempo o Louco ganhou uma pegada diferente: Quase sempre atormentando Cebolinha, o querido garoto que fala "elado" no quarteto fantástico de Maurício de Sousa, o Louco protagonizava aventuras quase surrealistas, com muito nonsense, sempre cheias de imaginação e extremamente divertidas.
Deixando a narrativa fluir com a maneira como a personagem enxerga sua aventura, Coelho conduz o leitor por páginas que parecem infinitas em sua sequencialidade e movimento, com uma diagramação dinâmica e tridimensional que lembra o trabalho de J. H. Williams III em diversas páginas e permite que a mente e o olhar se misturem durante a leitura, auxiliando na experiência de, junto de Louco, “viajar de história em história”.
A narrativa em linguagem, porém, é fraca. Não de forma catastrófica, ou tosca,
mas deixando a desejar. Iniciada no momento em que Louco foge dos nomeados Guardiões do Silêncio – de formas,
atmosfera levemente sombria e riqueza em detalhes que lembra o trabalho de Dave McKean, principalmente no interior
de seu palácio – a história mostra uma ave dourada a quem Licurgo chama de
“amigo”, e enquanto ele escapa, a ave permanece prisioneira dos Guardiões, e
Louco promete voltar para busca-la. E dito isso, atravessa para a história
seguinte em busca de refúgio, caindo no conhecido Bairro do Limoeiro, e se
disfarça de mágico, onde, em uma apresentação, conhece o quarteto do Limoeiro.
Intercalando a interação de Louco com Mônica e seus amigos, a própria história,
e lembranças de sua infância e o primeiro encontro com a ave dourada, Coelho
traça a trajetória do personagem e nos conta como a ave surgiu: criado por um
misterioso escritor, o pássaro dourado protagonizava uma história onde ele era
a inspiração, e levava aos outros, com seu canto, o dom e a vontade para
imaginar, criar, e por consequência, ser.
O escritor, porém, decidiu que apenas a ave não bastava, e criou para sua
história os antagonistas, os Guardiões, que, dedicados a silenciar o canto da
criação, foram aprisionando todos aqueles que ousavam imaginar, até que por
fim aprisionaram a ave (silenciando a história inteira), que é mais tarde
resgatada pelo pequeno Louco – fato de que ficamos sabendo em sua recapitulação
às memórias de infância, com folhagem lúdica e detalhada e tonalidades ouro e
sépia que trazem as matizes e encaixes sobrepostos do trabalho de Klimt à mente.
Após resgatada, a ave leva o pequeno Licurgo para o local sem nome onde todas
as histórias são criadas, e onde ele descobre que pode estar na história que quiser
com um único passo.
Apesar do trabalho primoroso na apresentação artística de sua narrativa, a alta
sutileza de Coelho em sua ode à imaginação muitas vezes leva as frases ao
cliché, que ainda que bem utilizado, não surpreende, e pode arrastar a leitura
por ser utilizado no ponto clímax, onde, cercado pelos Guardiões, Louco
descobre que existem vilões para “fazer com que o herói fique mais forte!”, e unido
ao canto incessante de seu companheiro dourado ainda aprisionado, deixa elevar
sua esperança na própria capacidade, e na capacidade da história, e observa,
não surpreso, a queda explosiva dos Guardiões.
Esse trecho, de outros, deixa a desejar que a escolha de Coelho para a
apresentação dos pensamentos e narrativa de Louco muitas vezes fosse outra na
linguagem, que se apresenta vaga em certos, e em outros, apenas um pouco
confusa – o Louco, como personagem, continua de fala rápida e divertida, mas
seus pensamentos, apesar de soltos, são bem organizados, e levemente formais.
Ainda assim, a questão pouco atrapalha. No quadro geral, a narrativa flui em
sincronia com as imagens, e a obra de Rogério Coelho lembra, em meio a homenagens
à outras Graphic MSP, que o maior
poder de nossa mente é a capacidade de criar e viajar, que o antagonista de
qualquer história está lá para que acha um motivo pela busca da melhora, e
canta ao leitor para que não confunda mera loucura com a capacidade de imaginar,
que se lembre do poder contagiante da mesma, e que se mantenha, como nossos
adorados personagens, sempre com um pé em infinitas histórias.
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