Compilação de Fernanda Pessoa é retrato, análise e diálogo.
Por Alexandre Dias.
Devo revelar, antes de qualquer coisa, que o que tinha em mente sobre as pornochanchadas era basicamente aquele estereótipo clássico: filmes que não abordavam temas densos, orçamentos pífios, produção bizarra e erotismo brega. O conteúdo raso era apenas o "permitido" a ser feito no período da ditadura militar no Brasil, algo que não comprometeria o governo e suas ideias altamente retrógradas. Será que era mesmo?
Histórias que Nosso Cinema (Não) Contava é a desconstrução perfeita de como esta vertente do cinema nacional não era tão repleta de ingenuidade assim; ou, pelo menos, mostra que o descompromisso aparente que a cercava tinha - ou poderia vir a ter, como posso utilizar-me de exemplo - um efeito social significativo. Por meio de um conceito baseado na pesquisa e o recorte de informações, da mesma forma que Eduardo Coutinho concebeu Um Dia na Vida, a diretora Fernanda Pessoa consegue fazer um retrato de um ciclo em paralelo a um diálogo com a atualidade.
O documentário é estruturado pelos trechos das obras, em sua maioria dos anos 70, alinhados por assunto, além de uma introdução rápida do contexto político e uma conclusão. Tortura, aborto, comunismo, machismo e influência externa são apenas alguns dos campos percorridos no longa-metragem. É impressionante ver como quase cinco décadas depois ainda estamos no mesmo ponto de “debate”. O modo debochado como os personagens – grande parte homens – falam sobre isso de uma maneira conservadora – para, na maior parte, mulheres – soa tristemente familiar. Basta ligar a televisão hoje para observar candidatos à presidência que fazem apologia ao estupro e recusam a lei do feminicídio.
Assim, é notável o alcance do trabalho de Fernanda Pessoa, porque a desolação trazida ao comprovar que as coisas não mudaram tanto desde aquele período vem em formato de reflexão. Ou seja, a nossa "democracia" atual tem aspectos semelhantes à da ditadura militar. Isso é muito grave, tornando a função desse filme mais importante ainda. Não é só um produto que conversa sobre política. Ele é político. E isso é bom, ao contrário do que alguns espectadores podem pensar. Não há nenhuma apelação, a exposição de ideias e argumentos são inteligentes e fluidas.
A cineasta responsável pelo projeto, que também assina o roteiro, merece grande destaque, porém não há como não trazer à tona o nome de Luiz Cruz, organizador da montagem. Os 80 minutos de duração são perfeitamente bem utilizados, sem cansar quem está assistindo e sempre provocando a curiosidade do que será o próximo tema. Os fragmentos extraídos das obras variam o seu tempo, alguns sendo mais curtos e outros mais longos - há verdadeiras cenas de discussão entre os personagens, assim como pequenos comentários e atos.
A propósito, o fato do "gênero" da pornochanchada ser o assunto em questão foi destrinchado com eficiência. O besteirol desses longas conseguem causar risadas pela breguice, o que, por outro lado, auxiliou muito na ironia da produção, algo que Pessoa valorizou para passar alguns de seus pensamentos. Nem por isso não há momentos chocantes e perturbadores. Nunca pensei que um filme assim teria uma cena de tortura, por exemplo, como a que uma mulher é amarrada pelas mãos e os pés e é agredida por homens, ou um momento realmente dramático, representado pela jovem que debate aborto com a sua família católica tradicional. Há, mais uma vez, uma dupla função: gerar uma análise e desfazer um rótulo.
Dizer que as pornochanchadas eram trabalhos com uma sabedoria enrustida não é propriamente uma verdade, mas com certeza pode-se afirmar que representaram uma sociedade e os seus pontos diversos, ainda que sem querer. Portanto, é admirável a tarefa que Fernanda Pessoa trouxe para si, de entender como aquele cinema era uma janela do nosso mundo e colocar isso em questão, trazendo uma abertura de diálogo para os dias atuais que é urgentemente necessária.
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