Conversamos com Iván Granovsky sobre a exploração dos limites entre ficção e realidade de seu primeiro longa-metragem.
Por Pedro Strazza.
Selecionado para o Festival de Roterdã deste ano, o argentino Los Territorios parte de uma premissa que é um tanto inusitada mesmo para o campo que adentra, no caso os limites entre os macrogêneros da ficção e do documentário. Situado em um momento posterior ao ataque terrorista à sede do periódico Charlie Hebdo, o longa de estreia do argentino Iván Granovsky percorre uma jornada um tanto fútil com base nas desventuras de seu protagonista, um jovem que ao mesmo tempo é e não é o seu diretor. Entrevistas não faltam ao filme, mas enquanto personalidades como o ex-presidente Lula, o presidente boliviano Evo Morales e até mesmo o jogador de futebol argentino Lavezzi acumulam uma boa carga de realidade ao projeto, outras tantas cenas da vida pessoal do autor mergulham a produção constantemente na fantasia por não encenarem nem por um segundo a verdadeira versão dos fatos ocorridos.
"Eu acredito que este filme não seja um documentário, ele é uma ficção que ocupa elementos da realidade" diz Granovsky em entrevista ao O Nerd Contra-Ataca, feita numa tarde fria e com alguma garoa durante a divulgação do lançamento do projeto no Brasil. "Eu queria fazer um filme que não tivesse tanto respeito por temas tão delicados" ele continua, se referindo ao próprio caráter efêmero do longa que depois ele define como um tipo de cinema mais "incorreto" que outros cineastas poderiam estar seguindo ao abarcar os conflitos da realidade. Esta irreverência ao trabalhar conflitos sociais ao redor do mundo, afinal, é o que essencialmente define a produção, ainda mais porque todos estes assuntos "delicados" acabam sendo um pouco esvaziados de sentido conforme o diretor estrutura uma narrativa que, em suas palavras, se iguala à prática de ler um jornal: "A gente como consumidor de notícias acaba não recebendo todas as notícias: Às vezes elas chegam até você, outras não, às vezes você consome mais uma coisa que a outra. É esta aleatoriedade que eu queria abordar." confirma o cineasta à nossa reportagem.
Confira nosso papo com o diretor a seguir. Los Territorios atualmente se encontra em cartaz nos cinemas de Brasília, Curitiba, Fortaleza, Goiânia, Palmas, Porto Alegre, Rio Branco, São Paulo e Vitória.
No filme há bandeiras de vários países que são colocadas na tela, mas só a da Argentina, seu país de nascimento, aparece invertida. Por que isso?
Eu acho que as bandeiras são só desenhos, eu não acho que elas sejam representações dos países. Para mim o que representa um país é muito mais do que uma bandeira, mas eu adoro bandeiras como desenhos, então achei que poderia fazer uma piada com o desenho da Argentina porque eu não tenho respeito por símbolos que são para a guerra. É uma coisa que só os argentinos sabem, mas a bandeira com o Sol era o jeito que a Argentina tinha de bradar sua conquista sobre os índios e sua vitória contra o Paraguai, enquanto que a bandeira sem o Sol era aquela que não ia para a guerra. Eu achei que tinha que fazer uma piada com isso, uma espécie de provocação.
A narrativa de seu filme é muito particular, ela parte dos vários percalços de sua história pessoal ao longo dos anos e vai intercalando as diversas entrevistas obtidas por você em inúmeros bicos. O que levou você a estruturar o projeto em cima de sua pessoa ao invés destas entrevistas?
Eu tinha mais interesse em fazer da narrativa do filme mais próxima da atividade de se ler um jornal. Quando você lê um jornal, você meio que faz a sua própria ordem de leitura: começa-se do início, do fim, pela seção de esportes ou de política. É também como assistir TV, em que você vai zapeando os canais até encontrar um conteúdo que lhe agrade. Eu gostava desta ideia de que nós estamos sempre mudando nosso foco para diferentes assuntos, e eu queria que este filme proporcionasse esta mesma sensação. Então por conta disto eu não achava que os conteúdos destas entrevistas não eram tão importantes, o importante era a forma.
E depois há também um viés que é mais político em mim sobre cinema e documentário, porque eu acredito que este filme não seja um documentário, ele é uma ficção que ocupa elementos da realidade. Para mim, o diretor de documentário é muita soberbia, ele acredita que pode falar de qualquer coisa como se fosse Deus e sempre tem muito respeito pelo conteúdo, e eu queria fazer um filme que não tivesse tanto respeito por temas tão delicados como a questão palestina. Não que eu não tenha respeito pela causa palestina, eu só pró-Palestina, mas eu acho que o cinema pode achar outros lugares mais incorretos.
Você quer dizer então que você quis imbuir um caráter efêmero às narrativas tradicionais, é isso que você está dizendo?
Isso e que a gente como consumidor de notícias acaba não recebendo todas as notícias: Às vezes elas chegam até você, outras não, às vezes você consome mais uma coisa que a outra. É esta aleatoriedade que eu queria abordar.
Aproveitando que você tocou neste assunto dos limites entre ficção e documentário, o filme mostra vários das relações pessoais que você nutriu ao longo destes últimos anos, seja com a família, as equipes que te acompanharam ou mesmo casos românticos que você teve, e muitas vezes estas cenas partem de uma dinâmica de encenação muito clara aos olhos do espectador, especialmente na cena que mostra você e seu pai discutindo e o microfone aparece. Por que inserir estes momentos?
A gente [a equipe] sempre esteve em um número reduzido, óbvio, e a ideia do cinema metalinguístico nunca foi pensada. Ela acontecia naturalmente, quando eu falo com meu pai na Argentina o microfone aparece porque eu acho que o cinema tinha que aparecer naquele momento, tinha que ficar um pouco mais claro que era encenação porque a cena seguinte mostrava como minha mãe estava custeando a minha próxima viagem. E era isso, às vezes era mentira, às vezes era verdade, e eu acho que quando eu mostro a equipe é pra ajudar a esclarecer como o filme no fim é uma grande construção. Por isso o filme não é político, mas sim interiorizado.
Então todas aquelas cenas com as namoradas não eram reais?
Isso, nenhuma delas foi minha namorada. Além desta discussão entre ficção e realidade, eu sempre penso no relato. Então se a imagem real é melhor para o relato, ótimo, vamos colocar a imagem real, mas se for melhor a imagem de ficção, então vamos colocar a ficção. Um bom exemplo é a personagem da tradutora basca: ela era uma atriz, mas a gente na hora de gravar falou para ela “Olha, nós não temos um roteiro desta cena, mas precisamos que você responda nossas perguntas nas duas línguas e estas perguntas são como se você estivesse dando uma entrevista. Então você responde como se fosse real.”. Mas como ela é atriz, ela trazia algo a mais para o filme neste momento, então a gente fazia muito este jogo durante as filmagens. Mas claro, há momentos que são reais, como as entrevistas com os políticos ou a cena na zona de guerra palestina.
Nestas cenas reais, houve uma que mais te marcou neste processo?
Talvez seja meio clichê dizer isso, mas as cenas que mais me marcaram foram na Palestina em que a gente viu este deslocamento das pessoas em meio à guerra. Esta foi a parte mais forte da produção, mas o momento mais intenso do filme foi a entrevista com Miki Kratsman, que dirige a Breaking the Silence, pois eu lembro que quando a gente foi fazer a fala ele estava resignado, e eu já não sei se isso foi parar no filme ou não mas ele disse naquele momento que o conflito não tinha nenhum fim. O Miki é alguém que está bastante imerso naquela situação, então tinha pra mim uma coisa de olhar a resignação de uma pessoa que é muito forte; eu lembro que eu olhei para trás e vi meu produtor e o meu fotógrafo quase chorando.
Outro momento que eu acho muito forte mas que é muito pequeno no filme é a cena do engarrafamento na Palestina, em que a câmera tá se mexendo muito e ouve-se o chofer gritando muito. Aquele momento foi muito intenso para a gente porque a gente entendeu que, além da violência militar e do sofrimento bélico sentido pelos palestinos, tem uma coisa muito mais normal que é como o caos é local. Foi um engarrafamento gerado no meio do nada só porque uma parte do exército israelense bloqueou a entrada do povo palestino dizendo que tinha uma célula do Hamas ou algo do tipo, e por conta do bloqueio de uma rua por esta justificativa sete quilômetros de trânsito foram criados, porque os palestinos só tem uma estrada para entrar na Palestina. Então quando você vê isso, que é a coisa doméstica, você não está vendo os mortos ou balas, mas você está vendo os efeitos da guerra no cotidiano das pessoas e aí que você se toca que elas estão sofrendo com isso todos os dias. O problema não é que elas sabem que vão morrer, o problema é que elas sabem que vão morrer e que a vida delas é muito ruim. E acho que o filme no fim mexe um pouco com isso, porque estes conflitos estão muito mais ocultos do que se imagina.
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