domingo, 4 de setembro de 2016

Crítica: Aquarius

Tempo, espaço e questões sociais se complementam em filme sobre a memória.

Por Pedro Strazza.

Segundo longa-metragem de ficção de Kleber Mendonça Filho, Aquarius possui um número particularmente alto de semelhanças com o trabalho anterior do cineasta, O Som ao Redor. Da estrutura em três capítulos anunciada por uma sequência de fotografias em preto e branco ao contexto social em que a história se insere - as lutas de classe da sociedade brasileira em Recife -, os dois filmes possuem uma conexão forte, mesmo que tenham no fundo propósitos diferentes: o mais velho procura atestar a falência do senso comunitário em tempos de hipervigilância; o mais novo, trabalhar com a ideia de memória.

O que permanece de mais importante de O Som ao Redor em Aquarius, porém, é a busca pelos pontos de equilíbrio e desequilíbrio nas relações do indivíduo com o grupo social ao qual se insere, aqui potencializado pelo diretor em uma trama que oscila a todo instante entre o ensaio emocional e a alegoria política. Essas duas vertentes se complementam de maneira bastante orgânica no longa, que acompanha os esforços de Clara (Sonia Braga), jornalista aposentada e moradora remanescente do edifício Aquarius, para evitar que uma empresa imobiliária derrube o edifício e construa um novo e mais moderno no local.

Com a empresa representada na jovem figura de Diego (Humberto Carrão), empreendedor com "sangue nos olhos" que de certa forma representa a inconsequência desse novo, esses conflitos norteiam o filme a uma discussão sobre público e privado, mas também ajudam a estabelecer os campos onde a obra procura encontrar com seus personagens um ponto de contato entre partes distintas. Sejam estas rivais ou amigas, Mendonça Filho continuamente encontra esse equilíbrio de relações pelo viés da empatia, de reconhecer no outro um igual com o qual possa dialogar, e essa sensação surge tanto nos momentos construtivos - o mais belo sendo sem dúvida a cena que encerra o segundo capítulo da história ("O amor de Clara") - quanto naqueles onde tudo parece a ponto de ruir, como na situação da suruba em cima do apartamento da protagonista, cuja resposta com o garoto de programa também direciona à conclusão de outro e parecido momento da trama.

Esses "nirvanas" momentâneos acabam por funcionar tão bem porque o compromisso original do filme com a memória permanece vivo em todos eles. Centro dessa balança de sensações e empregado em um significado mais preservacionista (mas muito distante do lado imediatista e mais comum da nostalgia de hoje), ele serve a Clara como um modo de operação, que guia suas ações para salvar o prédio da demolição e está presente em todas as paredes de seu apartamento, dos vinis à cômoda que logo no início adquire uma simbologia inusitada. Nesse sentido, as músicas que permeiam a narrativa sempre contribuem para tornar mais palpável esse sentimento ao espectador, que por sua vez tende a mergulhar profundamente nos desejos e anseios da protagonista.

O que há de novo na lógica de Mendonça Filho, porém, e que confere à história de Clara e Aquarius uma carga quase sobrenatural é o rumo dado pelo diretor depois de alcançado esse equilíbrio. Deixando afluir o terror desenvolvido com parcimônia nos dois primeiros capítulos, o terceiro ato parece desestabilizar essas relações de reconhecimento, criando essas rupturas pelo comentário político ao qual finalmente se rende por completo. São cenas como do almoço de Clara com um dos poderosos de Recife ou dos conflitos cada vez mais intensos dela com Diego que definem o longa sob um viés de choque, do enfrentamento entre classes sociais que está presente em suas praias e diálogos.

Antitética por definição, essa decisão é fundamental para aliar os discursos de tempo, espaço e sociedade presentes na narrativa, e potencializa sua faceta emocional a níveis mais complexos que o sentimentalismo de momento. O que une tudo isso, claro, é a memória, deixando de ser um recurso passivo da narrativa para confrontar aquilo que ameaça sua própria existência, e o desequilíbrio de relações - uma atitude tão impensável àqueles que como Ana Paula (Maeve Jinkings), filha de Clara, prezam pela etiqueta social e índoles simpáticas, provado no conflito da mãe com os filhos - surge como a melhor opção para a resolução da disputa.

Nesse sentido, a natureza que tanto permeia o ambiente e os personagens de Mendonça Filho adquire uma função de dinamização dessas relações, sejam estas equilibradas ou desequilibradas, e quem a incorpora em tom quase absoluto é Sonia Braga. Quase uma Iemanjá da dita "melhor idade" quando sai do mar da praia de Boa Viagem, a atriz tira da relação com os ambientes uma atuação hipnótica e que atiça as sensações, seja por causa dos efeitos do câncer que teve no passado ou mesmo da conexão de sua personagem com a própria moradia. Pela atriz,o natural e o humano enfim entram em consonância, e ai de quem ousar interferir nisso. Os cupins que saem das toras de madeira jogadas por ela na mesa do escritório da empresa imobiliária no fim do filme, inclusive, parecem sair por seu comando.

No fundo, o que Kleber Mendonça Filho queira fazer por meio de toda essa complexidade de temas e emoções, em zooms de câmera ora aflitivos, ora indicativos, seja resolver a aflição do mundo contemporâneo do que merece e não merece nosso enlaço emocional. Uma tarefa impossível, é válido afirmar, mas que pelo uso consciente da memória como ferramenta de nossos tempos ganha contornos de uma realidade bastante possível.

Nota: 10/10

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